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"O Rap do Pequeno Príncipe Contra as Almas Sebosas" documenta violência urabana
A cena é impressionante. A vista aérea mostra a periferia imensa, que parece avançar sobre a "cidade", enquanto o rap de Mano Brown vai enumerando, monotonamente, incisivamente, os nomes desses bairros esquecidos por Deus e pelos homens. A seqüência aérea faz parte de de "O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas", de Paulo Caldas e Marcelo Luna, que estréia depois de ter participado de alguns festivais, entre eles o de Veneza, em uma de suas mostras parelelas. O documentário representa o Brasil no próximo Festival de Havana, que acontece de 5 a 15 de dezembro.
O título em si já é curioso, mas, como se verá, o filme não se esgota na mera curiosidade nem faz apologia do pitoresco. "Pequeno Príncipe" não se refere ao livro de Antoine de Sain-Exupéry, aquele que era sempre muito citado nos concursos de misses do Brasil. É o apelido, codinome, ou nome de guerra de Helinho, Hélio José Muniz, "justiceiro" de Camaragibe, no Grande Recife, uma das periferias mais pobres do País. "Alma sebosa" é aquele indivíduo que não presta, que faz mal à comunidade e portanto merece ser despachado desta para a melhor. Tudo isso acontece nesses lugares onde a polícia não entra, o Estado não atua e a sociedade procura (em vão) esquecer. Nessas paragens, "pequenos príncipes" e "almas sebosas" foram feitos uns para os outros.
Com seu Rap, os cineastas contam uma história exemplar. Ou melhor duas. Duas vidas paralelas, como aquelas de Plutarco. Helinho, já sabemos, tornou-se matador. Vive hoje numa penitenciária de Pernambuco onde responde por cerca de 70 assassinatos. A outra vida é a de Garnizé, que cresceu no mesmo ambiente miserável de Camaragibe e tornou-se líder de uma banda de rap, "Faces do Subúrbio". Uma é espelho da outra, mas em direções contrárias, pois tomaram caminhos inversos. Nascidos da mesma carência, crescidos no mesmo abandono, um tranformou em música a raiva e a impotência que o outro pratica, sem nenhuma mediação simbólica.
Paulo Caldas, em entrevista, disse que procurava alguma história ligada à violência urbana, tema que o preocupa. Ouviu falar de Helinho e ficou impressionado. A dupla de realizadores foi à cadeia e gravou um longo depoimento com o matador. Caldas ficou particularmente chocado com o ar ingênuo daquele rapaz de 21 anos, que tinha tantas mortes nas costas, e falava de suas vítimas com o ar mais natural do mundo. Considera sua profissão tão boa como outra qualquer e se acha um benfeitor da humanidade um protetor da sua comunidade.
Com Helinho, Caldas e Luna tinham metade da história sobre a violência urbana. A outra metade veio com Garnizé. Os dois se conhecem porque Garnizé foi assaltado numa das encruzilhadas de Camangibe. No dia seguinte, a "alma sebosa" já tinha sido despachada. Helinho tinha providenciado "justiça" porque era admirador do músico. Ganhou a gratidão eterna de Garnizé, artista politizado, à sua maneira. Confessa-se admirador de Che Guevara, Malcolm X, Zumbi dos Palmares.
O filme é um retrato bastante fiel das condições da periferia brasileira. Não apenas pela escolha inteligente desses personagens diferentes, porém complementares. Tudo, na tela, traduz essa pulsação, cheia de energia, raiva e impotência que vem das margens do sistema. A sugestão é que essa energia pode ser canalizada, para um lado ou para outro, de uma maneira ou de outra. Sugere, também, que talvez a sociedade tenha alguma coisa a ver com esse tipo de escolha dos personagens.
"Rap do Pequeno Príncipe", no entanto, evita fazer qualquer tipo de análise intelectual. Limita-se a registrar uma situação de constraste, e a maneira como ela é "lida" e interpretada por dois seres diferentes. Procura ser um espelho da condição social brasileira e de como ela se converte em um barril de pólvora prestes a explodir. Não há, no entanto, nenhum discurso definitivo sobre o assunto. É como se os cineastas tivessem resolvido apresentar uma situação exemplar, com todos os ingredientes que foram capazes de reunir, e deixassem a conclusão por conta do espectador.
Não se trata, também, daquele tipo de filme alarmista, que usa a violência de forma sensacionalista, como fazem alguns programas de TV. Nestes, a violência é uma atração a mais, capaz de elevar o ibope das emissoras. No documentário, fala-se, de uma maneira ou de outra, de violência. O tempo todo. Não de violência estilizada, como nos produtos de mercado de Hollywood, mas das condições sociais de sua existência. Trata-se de uma reflexão, serena, sobre o fenômeno da violência numa sociedade pobre e muito desigual.
Com este documentário, Marcelo Luna e Paulo Caldas (mas não apenas eles) recolocam a produção brasileira na linha do cinema urgente. Ou seja, aquele cinema colado ao social, que se faz no corpo-a-corpo com as contradições do País. Não, claro que não é o único tipo de cinema aceitável. Seria muito chato se fosse. O leque de possibilidades do cinema comporta de tudo, do entretenimento, passando pela comédia e o drama social. Mas é verdade que o documentário brasileiro tem ocupado o espaço vazio do cinema crítico e de fundo social, que a ficção tem deixado de lado. Com raras exceções, é no espaço documental que a realidade brasileira tem encontrado vez para ser discutida a fundo. O tema das periferias tem aparecido com freqüência, assim com o da religiosidade, como resposta transcendente à existência carente das pessoas.
"Rap do Pequeno Príncipe", justamente por colocar em cena o conflito que estrutura a sociedade brasileira, é aquele tipo de filme capaz de despertar discussões e opiniões divergentes. No Brasil, em geral, procede-se por divisão e isolamento. Parte da sociedade prefere não saber do que se passa ao seu lado, com seus vizinhos indesejáveis. Esse tipo de filme abre uma fresta entre um mundo e outro. Não é pouca coisa. Deve ser visto, mesmo por quem acha que merecia ter nascido no Primeiro Mundo e nunca colocou um disco de rap no CD player do carro.(Luiz Zanin Oricchio/ Agência Estado)
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