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Polanski aborda esquizofrenia sem compaixão em Repulsa ao Sexo
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Lacanianos são loucos
por cinema. O próprio Lacan adorava El, de Luis BuÏuel, gostando
de exibir o filme, que passou como O Alucinado no Brasil, para
seus discípulos. Considerava-o a abordagem perfeita de um caso de paranóia.
Não há como deixar de pensar em Lacan, BuÏuel e El, mas também em Alfred
Hitchcock e Psicose, a respeito de Repulsa ao Sexo. O filme
de Roman Polanski reestréia amanhã. É um clássico, excepcionalmente bem-feito,
mas também coloca problemas que ultrapassam os domínios da estética e
ingressam no território da ética. Repulsa ao Sexo é perfeito como
abordagem de um caso de esquizofrenia. Mas falta a compaixão que poderia
tornar mais emocionante para o espectador o processo de desintegração
da personalidade de Carol, a manicure interpretada por Catherine Deneuve.
(Não deixa de ser curioso, a propósito, comparar o filme de Polanski com
Instituto de Beleza Vênus, de Tonie Marshall, que usa o mesmo cenário
numa perspectiva diferente, até mesmo mais fantasiosa.) Se é verdade que
o cinema começa e se dilata na epiderme dos atores, o primeiro trabalho
de Polanski foi com a bela Catherine. Ele a esvazia de toda expressão
e descobre, por trás daquele rosto de anjo, uma dimensão doentia, realçada
pelos gestos mecânicos, como o irritante esfregar das mãos ou a maneira
de tirar da roupa vestígios de uma sujeira imaginária.
Nesse sentido, Repulsion (título original) prepara o caminho para
A Bela da Tarde, que BuÏuel fez em 1967. Terá BuÏuel visto Repulsa
ao Sexo? Ninguém nunca fez a pergunta ao mestre espanhol. Pelo menos
a resposta nunca apareceu publicada. Já Polanski viu, com certeza, os
filmes de BuÏuel. Há ecos de O Anjo Exterminador em Repulsa
ao Sexo. E mais - aquele trio de velhinhos deformados que passa com
sua música, nas ruas de Londres, talvez seja a imagem mais buÏueliana
que BuÏuel não filmou. Pode-se discutir o título brasileiro, que condiciona
mal o espectador. Pois embora o sexo seja decisivo e até fundamental como
se percebe no desfecho, no olhar da garota no retrato (fique atento para
quem ela dirige sua atenção), a repulsa é mais ampla e generalizada. Nos
105 minutos do filme, o espectador acompanha o processo de alheamento
de Carol, a forma como ela suprime suas pontes com o mundo e isola-se
na doença que a leva ao crime. Alguns críticos gostam de discutir se Repulsa
ao Sexo é tão ou mais assustador do que Psicose. Pois Polanski
cria o que não deixa de ser um shocker - um filme de terror cujo objetivo
deliberado é assustar. Ele mesmo conta isso em sua autobiografia - Roman.
Simultaneamente,
o filme dá substância psicológica ao processo vivido por Carol. Não é
só o movimento final de câmera que desvenda o segredo da fratura mental
da heroína - à maneira do Rosebud de Orson Welles, no desfecho de Cidadão
Kane. Passo a passo, degrau a degrau, cenas e situações são armadas
para expor, quase clinicamente, o que o desfecho termina iluminando.
Desconcerto - Em 1965, quando o filme surgiu, desconcertou os críticos,
ao mesmo tempo que produziu admiração. Muita gente não conseguia entender
o cosmopolitismo de Polanski - a trajetória sinuosa que o levou de Varsóvia
a Paris e daí a Londres e Hollywood. A carreira iria mudar mais ainda
- com novos filmes de gênero, no cinema americano, como o terror de O
Bebê de Rosemary e o noir Chinatown (a obra-prima do diretor).
O que une todos esses filmes, malgrado as diferenças de produção e até
de estilo, é um certo humor (negro) e a atração pela origem do mal.
Carol avança por um corredor - mãos surgem das paredes e percorrem seu
corpo; o pretendente a namorado a beija e ela corre a lavar a boca; o
operário que ela cruzou na rua surge à noite para violá-la, sucessivamente,
e tudo isso alimenta a repulsa da personagem, que termina liberando sua
pulsão assassina. Carol é criminosa porque é doente, mas Polanski, ao
examiná-la como um entomologista, mantém a distância e não estimula a
compaixão do espectador - o que Hitchcock fez no admirável Marnie,
as Confissões de uma Ladra, quando o próprio mestre do suspense deu
um passo à frente de Psicose. "Marnie" reedita Norman Bates, em
versão feminina, com a diferença de que pode ser curada. Um dos grandes
momentos do filme (e de toda a obra de Hitchcock) é o grito de Tippi Hedren
- "Alguém me ajude, pelo amor de Deus." Essa mesma angústia foi expressa
(já que se trata mesmo de uma obra-prima expressionista) por Fritz Lang
no clássico M, o Vampiro de Dusseldorf, quando o personagem de
Peter Lorre, outro enfermo, é acuado pelo submundo do crime. Ele grita,
desesperado, e aquela mão que pousa sobre seu ombro representa a nossa
compreensão, enquanto espectadores, do triste, mas verdadeiro, espetáculo
da miséria humana.
É essa complexidade que falta em Repulsa ao Sexo. Polanski recorre
aos clichês de filmes de horror, mas nem Carol nem o pesadelo em que ela
vive no apartamento fechado conseguem ser tão devastadores como o Noah
Cross que John Huston criou com tanta genialidade em Chinatown.
Polanski mostra ali o mal em sua expressão mais acabada, o que faz daquele
filme com Jack Nicholson e Faye Dunaway a experiência mais memorável da
carreira do diretor.
Pode-se
discutir Repulsa ao Sexo, mas se trata, com certeza, de uma obra
impressionante. A maneira como Polanski usa o som (o sino), os atores
(Catherine é maravilhosa), os detalhes, enfim - o progressivo apodrecimento
do carneiro, as batatas que desenvolvem raízes, as rachaduras nas paredes
-, tudo isso revela que se trata de um verdadeiro homem de cinema. Impressiona
mais ainda, ou mais do que tudo, a importância que ele atribui ao cenário,
transformando o próprio apartamento num personagem. Ele altera suas dimensões
reais - expande as peças e os corredores, movimenta paredes e faz largo
uso da grande-angular para que o público possa sentir o pleno efeito da
visão distorcida de Carol. Pode-se até não gostar do filme, mas é impossível
deixar de admirá-lo como cinema. Polanski ainda faria coisas melhores.
Era grande e é essa constatação que torna ainda mais decepcionantes seus
trabalhos recentes - Lua de Fel e O Último Portal apontam
para a decadência do diretor.
(Luiz Carlos Merten/Agência
Estado)
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