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Cuidado, Harry Lime. O Terceiro Homem está de volta. Cinqüenta anos depois de lançado, o filme de Carol Reed que romantizou a partilha da Europa no pós-guerra e revelou a crueldade dos agentes clandestinos que infestavam cidades como Viena - reaparece, mais fascinante do que nunca, em DVD, CD e livro. É barba, cabelo e bigode. O DVD exibe a cópia restaurada, com a extraordinária fotografia em preto-e-branco tinindo nos contrastes e nos meios-tons, e recupera as falas e cenas expurgadas pelo co-produtor David Selznick no lançamento em 1950 e na versão em VHS que circulou até há pouco (mais sobre isso adiante). O CD é uma abrangente edição da trilha sonora, incluindo as falas mais importantes e toda a música do citarista vienense Anton Karas, que agora pode ser devidamente apreciada sem provocar enjôos (porque, pelos dez anos seguintes, todo mundo, exceto talvez a Lira de Xopootó, gravou o Tema do Terceiro Homem). E o livro, In Search of the Third Man, do inglês Charles Drazin, é um raios-X do filme, envolvendo sua concepção e produção, as implicações políticas e até seu uso turístico - sim, se você for hoje a Viena pode fazer, se quiser, "o tour do Terceiro Homem". Durante décadas, a boa (ou má) fé de muitos fez crer que O Terceiro Homem, assinado por Carol Reed, teria sido uma espécie de filme "secreto" de Orson Welles, espremido entre Macbeth (1948) e Othello (1952) em sua filmografia. E, de fato, havia indícios para endossar essa suposição: Orson está no elenco (no papel de Harry Lime, "o terceiro homem"); é dele a fala de Lime a respeito de como, durante 30 anos sob os Bórgias, a Itália conheceu a guerra e o terror, mas produziu Michelangelo, Da Vinci e a Renascença, ao passo que a Suíça teve 500 anos de paz, amor e democracia, e só produziu o relógio-de-cuco; e, principalmente, o visual expressionista do filme, lembrando o de Cidadão Kane (1941), O Estranho (1945) e A Dama de Shanghai (1947). Sempre que perguntado, o maroto Orson "negava" a autoria do filme, mas insinuava que seus "palpites" eram aceitos por Carol Reed - o que se entendia como modéstia de Orson. No fundo, era como se O Terceiro Homem fosse "bom demais" para ser de Reed, um diretor cujos grandes filmes até então (O Condenado, 1948, e O Ídolo Caído, 1949) estavam perdidos na zona fantasma. Além disso, Reed nunca mais fizera nada parecido com O Terceiro Homem. Logo, este só poderia ser de Welles. Mas não é. Nunca foi. O Terceiro Homem foi uma criação de três ingleses: Carol Reed, o romancista Graham Greene e o produtor Alexander Korda, que já haviam trabalhado antes em O Ídolo Caído. Reed e Korda pediram a Greene uma história que se passasse na Viena então dividida em zonas controladas pelos ingleses, russos, americanos e franceses. Duas semanas e várias caixas de uísque depois, Greene propôs a do homem que se faz de morto para não ser apanhado como traficante de penicilina adulterada. Reed e Greene escreveram o roteiro. Mas Korda precisava de um sócio americano no projeto. O que mais se parecia com ele nos EUA era David O. Selznick. "Veneno de bilheteria" - Selznick topou financiar parte do filme, em troca da bilheteria americana e do direito de aprovar o elenco. Korda e Reed, desde o começo, queriam Orson Welles como o terceiro homem, idéia esta rebatida por Selznick, para quem Welles era "veneno de bilheteria". Por ele, o papel caberia a Cary Grant, depois de Robert Taylor, David Niven e Robert Mitchum. Qualquer um, menos Orson. Finalmente, Selznick foi obrigado a engoli-lo, mas emplacou os dois astros: Joseph Cotten e a italiana Alida Valli, seus contratados (o que descarta a idéia de que Cotten tivesse sido imposto por Welles). Carol Reed dirigiu O Terceiro Homem com toda liberdade e com Korda estimulando-o a ignorar os palpites de Selznick no roteiro. Embora o herói (Cotten) e o vilão (Welles) sejam americanos, o filme é europeu de alto a baixo, até nos maravilhosos coadjuvantes - Trevon Howard, Bernard Lee (o futuro "M" de James Bond), Wilfrid Hyde-White e, em papéis menores, grandes atores alemães e austríacos no desvio. Reed dividiu a equipe em três (a das cenas diurnas, a das noturnas e a dos esgotos) e dirigiu-as 24 hora por dia, à custa de muita Benzedrine. A maior parte da ação transcorre à noite e nunca uma cidade européia foi tão fabulosamente fotografada. Até os esgotos de Viena, onde se passa a seqüência final, eram fotogênicos. Robert Krasker ganhou o Oscar pela fotografia de O Terceiro Homem, mas, na cena mais famosa do filme - o rosto de Welles surgindo pela primeira vez naquele pórtico -, o iluminador e o câmara foram John Wilcox e o lendário alemão Hans Schneeberger, ex-namorado de Leni Riefenstahl. A revelação, entre muitas outras, é de Charles Drazin em seu livro. E outra, mais surpreendente ainda, é a de que, quando se vê a sombra de Harry Lime fugindo pelos esgotos, o autor em cena não era Orson Welles. Era o diretor-assistente Guy Hamilton (futuro diretor de 007 Contra Goldfinger), usando um sobretudo com cabide e tudo sobre os ombros para combinar com o tamanho e largura de Welles, que era quem deveria estar ali. Deveria, mas não estava. Orson só apareceu em O Terceiro Homem porque devia favores e dinheiro a Korda, mas atrasou enquanto pode sua chegada a Viena para filmar. Já com o organograma atrasado, Reed resolveu atacar a seqüência dos esgotos sem ele, usando Hamilton como dublê. Finalmente Welles apareceu, mas, depois de um dia nos esgotos, gemeu que a umidade lhe faria mal à asma e exigiu que eles fossem reconstruídos em estúdio. E só por isso todas as cenas em que Orson é visto nos esgotos de Viena foram rodadas em Shopper, na Inglaterra. No todo, sua participação em O Terceiro Homem não durou mais que uma semana (contra os três meses de filmagem), tempo em que sua contribuição extra-papel limitou-se à frase sobre o relógio-de-ouro - cuja idéia, por sinal, ele tirou de um texto de 1885 do escritor inglês James McNeill Whistler. A pior interferência sobre O Terceiro Homem partiu do provinciano Selznick. Durante toda a filmagem, ele insistiu em que houvesse mais americanos do que ingleses em cena, no que foi lindamente tapeado por Reed e Korda. Queria também que o papel de Joseph Cotten fosse aumentado e que Alida Valli (que interpreta uma corista de teatro, sem dinheiro para se vestir numa Viena arruinada) tivesse um guarda-roupa glamuroso. Foi derrotado em todas as instâncias. Mas vingou-se quando o negativo enfim chegou às suas mãos para ser exibido nos EUA. Reedição - Para começar, Selznick alterou a voz off que narra o começo do filme. Na versão européia, a voz (gravada pelo próprio Carol Reed) pertence a um traficante anônimo e cínico, que introduz a história e fala do personagem de Cotten como um americano ingênuo que veio se meter numa cidade perigosa. É uma voz e uma fala "casual", que trata de amoralidade da Viena do pós-guerra como um fato de vida, sem julgamentos a priori. Na versão americana, a "casualidade" foi expurgada e a voz é do próprio Cotten, que começa a narrar a história em flashback - história essa da qual ele é o herói que sobreviveu, o que muda consideravelmente as coisas. Graham Greene, Reed e Korda ficaram fulos, mas estavam impotentes: protegido pelo contrato, Selznick podia reeditar o filme para o mercado americano (no que aproveitou e tosou-lhe 14 minutos). Foi essa a cópia que os EUA e certamente o Brasil viram em 1950 - e, mesmo assim, o filme foi o que foi. A nova versão em DVD restaurou a fala original, repôs os 14 minutos cortados e passou por nada menos que 22.000 correções eletrônicas no desgastado negativo original. Provavelmente nunca O Terceiro Homem foi tão espetacular. E há a canção de Anton Karas, o humilde músico de aluguel, então com 45 anos, que Reed ouviu por acaso numa reunião em Viena e convidou a musicar o filme. Charles Drazin faz uma comparação engraçada: "Seria como, hoje, Steven Spielberg convidar um músico que ele ouviu tocando acordeon na saída do metrô." Pois bastou o filme ser lançado em Londres para que a produtora de Korda começasse a receber telefonemas de gente querendo saber onde encontrar o disco com "aquela música". Só que, no delicioso amadorismo de 1950, ninguém se lembrara de fazer esse disco. Ele foi então gravado às pressas, vendeu milhões e Karas viu-se transformado numa disputada e rica atração internacional. Pois quer saber o que ele fez consigo e com o dinheiro? Voltou para Viena, abriu um restaurante e nunca mais saiu de lá. O restaurante chamava-se , evidente, O Terceiro Homem. The Third Man. Filme de Carol Reed. DVD da Criterion. Preço: R$ 90,00. The Third Man. CD da Soundtrack Factory. Preço: R$ 40,00. In Search of the Third Man. Livro de Charles Drazin. Methuen, Londres, 210 págs. Preço: R$ 75,00. Disponíveis na Sight & Sound. Tel.: (0- -21) 294-7399
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