Verbetes de enciclopédia varrem produção de 500 anos
Sexta, 14 de setembro de 2001, 15h33
Os verbetes da enciclopédia de Juvenal Fernandes revelam aspectos desconhecidos da história da música brasileira. Como especialista na obra de Carlos Gomes, ele se debruça sobre a formação do compositor. Versionista e letrista, analisa a controversa questão dos erros cometidos pelos intérpretes, entre eles a cantora Gal Costa. Traz a biografia estética de Lampião, que, além de cangaceiro, foi compositor e responsável pela criação do xaxado. Leia abaixo trechos de três verbetes.
ERROS - Diz o ditado que errar é humano, mas insistir no erro é burrice. Algumas músicas brasileiras foram gravadas com erros crassos nas letras, mais por falta de pesquisas, informações junto aos autores ou mesmo por preguiça, limitando-se, alguns intérpretes, a copiar outras gravações, repetindo os erros. O radialista, produtor e também compositor Walter Silva, conhecido como Pica-Pau, fez um levantamento sobre alguns erros feitos por cantores e até editores que modificam o sentido da música ou desacordam letra e música. Tal é o caso da edição de 'Ronda', de Paulo Vanzolini, onde uma palavra não se encaixa com a melodia. O original diz 'desiste, essa busca é inútil, eu não desistia', enquanto na edição aparece '...desiste dessa busca inútil ...'. No LP com músicas de Ary Barroso, a cantora Gal Costa, na gravação de 'Camisa amarela', onde a letra original diz '... me pediu ainda zonzo um copo d’água com bicabornato', Gal diz: '... me pediu ainda às onze', etc. etc. E, o que é pior, no disco, consta o nome de um responsável pela pesquisa de repertório, o do compositor e historiador Paulo Tapajós. Para quê? Nesse mesmo disco, Gal Costa comete outra asneira interpretativa, na faixa 'É luxo só', do mesmo Ary Barroso, em parceria com Luís Peixoto. Onde ela deveria dizer '...Olha, essa mulata quando dança, é luxo só', Gal diz: 'Olha, essa mulata quando samba, é luxo só'. Como é que ela vai rimar samba com embalança que vem a seguir? Já Caetano Veloso, por ter tirado a letra de 'Chuvas de verão', de Fernando Lobo, da gravação feita por Orlando Silva, e não da original que foi gravada por Francisco Alves, incorreu no mesmo erro de Orlando, ao dizer '... trazer uma aflição dentro do peito é dar vida a um defeito que se extingue com a razão', quando o certo é '... que se cura com a razão'. Pior ainda fez Emílio Santiago, ao gravar 'As rosas não falam', de Cartola: em vez de dizer '...Queixo-me às rosas, mas, que bobagem, as rosas não falam', Emílio saiu-se com '... queixam-me as rosas ...'. Mudou todo o sentido da letra, o moço Emílio. Milton Nascimento, numa gravação em fita que anda por aí, também comete um monte de imbecilidades na letra de Lauro Maia, 'Deus me perdoe'. Esperamos que, se ele vier a gravá-la difinitivamente, corrija todos os erros que cometeu nessa gravação feita para um show realizado no auditório da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo. O fato que mais preocupa não é apontar o erro das gravações. É que é preciso alertar as gravadoras pelo fato de que elas são responsáveis pelos discos que colocam na praça. (...) Um artista, ao entrar num estúdio de gravação, deve ter à mão não só a gravação original da música antiga que vai gravar, mas, se possível, até a partitura original com a letra, e todas as informações originais, para não cometer erros comprometedores como os que enumeramos acima.
GOMES, Carlos (Antonio Carlos Gomes). Compositor, regente, Vila de São Carlos, atual Campinas, SP, 11-07-1836 - Belém, PA, 16-09-1896. Ainda na infância, aprendeu os primeiros rudimentos musicais com seu pai, o mestre de banca Manuel José Gomes, dedicando-se à composição e fazendo arranjos de obras conhecidas. Sua primeira aparição pública data de 1846, numa apresentação pública para dom Pedro II, durante a visita do imperador a Campinas: sob a regência do pai, tocou triângulo como integrante da Banda Marcial. Aos 15 anos, compunha valsas, polcas e peças sacras. Em 1854, compôs sua primeira missa, cheia de misticismo e amor sagrado. Trabalhava ao mesmo tempo numa alfaiataria, algumas horas por dia. De 1855 a 1859 abriu um curso de ensino de piano, canto e música junto com Ernest Maneille. Quando não dava aulas compunha melodias (como 'A rainha das flores', valsa para piano, 'Bela ninfa de minha alma', romance, e 'Caiumba', congada), fazia estudos e praticava exercícios musicais. A 4 de abril de 1859 apresentou algumas de suas composições para amigos e parentes, encantando a todos e especialmente ao amigo Henrique Luiz levy, também músico, que o incentivou a dar um recital da fantasia 'Alta Noite', no Teatro São Carlos, em Campinas, em 17 de abril de 1859, onde tocou piano, seu único irmão do mesmo pai (que teve outros 24 filhos de quatro casamentos) José Pedro de Sant'Anna Gomes (Juca) tocou violino e Levy, clarineta. Depois de algumas outras apresentações íntimas, para estudantes de São Paulo que moravam no interior, estes o convenceram a partir para a capital paulista, onde foi se aperfeiçoar ao violino com Paul Julien (violinista premiado pelo Conservatório de Paris) e conviver em repúblicas de estudantes com poetas, juristas e artistas, compondo aí o 'Hino à Mocidade Acadêmica' (com versos de Bittencourt Sampaio), definida pelo poeta Luiz Guimarães como 'a Marselhesa da mocidade'. Em seguida musicou outra poesia de Bittencourt Sampaio, 'Quem sabe?' (que a princípio teve o nome de 'Tão longe, de mim distante') dedicada a Corrêa do Lago, irmão de Ambrosina, moça de Campinas que foi seu primeiro grande amor de adolescente. Aconselhado por estudantes e amigos, que consideravam São Paulo pequena para suas aspirações - sem avisar seu pai - embarcou para a Corte (Rio de Janeiro) em junho de 1859, onde, depois de transpor muitas barreiras e dificuldades, conseguiu chegar até o imperador dom Pedro II, que o recomendou então o diretor do Conservatório Imperial de Música, Francisco Manuel da Silva (autor da melodia do 'Hino Nacional'). Ali começou a estudar contraponto com Gioachino Giannini e a compor e, em 15 de março de 1860, apresentou a cantata 'A última hora do calvário', regendo-a e sendo premiado pela Academia de Belas Artes do Rio de Janeiro. Passados 20 meses de aperfeiçoamento e já como ensaiador e regente da Academia de Música e Ópera Nacional, procurou o diretor da Ópera Nacional, D. José Amat, solicitando um libreto para musicar. Foi-lhe apresentada a adaptação de Antonio José Fernandes dos Reis sobre o poema 'A noite do castelo', de Antonio Feliciano de Castilho. Esta sua primeira ópera, com texto em português, foi encenada de 4 a 7 de setembro de 1861 no Teatro Provisório (ou Fluminense), dedicada à S. M. o Imperador D. Pedro II. O sucesso foi total, levando o público ao delírio, merecendo do 'Jornal do Comércio' uma crítica bastante elogiosa que terminava assim: '... dois são os méritos principais dessa composição: um é a expressão maravilhosa que envolve as passagens constantes de uma harmonia a outra; o segundo é a incontestável originalidade da música, tão difícil de conseguir nestes nossos tempos de imitação e plágio'. Dois anos depois, agraciado pelo imperador dom Pedro II com a Ordem da Rosa, apresentou a ópera 'Joana de Flandres', baseada no libreto e enredo de Salvador de Mendonça, que foi encenada com muito sucesso em 15 de setembro de 1863, cujo êxito permitiu que obtivesse uma pensão do governo imperial para estudar no exterior. Com apenas 27 anos, ele já estava convicto de que seu destino era a Europa e, em dezembro de 1863, a contragosto do imperador, que preferia a Alemanha, embarcou para Portugal, onde foi encaminhado para o maestro Lauro Rossi (1810-1885) em Milão, Itália, onde, três anos mais tarde, prestou exames finais, apresentando sua composição 'La Fanciulla delle Asturie' e, em 6 de julho de 1866, recebeu o título de Maestro Compositor. À época, Milão era um verdadeiro campo de batalha, onde os nomes respeitados eram os italianos como Rossini, Donizetti, Verdi e outros, e os estrangeiros - entre eles Bizet, Gounod, Wagner e outros -, apesar de seus méritos, eram considerados 'intrusos'.
LAMPIÃO - Virgulino Ferreira da Silva. Compositor, cantor, cangaceiro. Vila Bela, atual Serra Talhada, PE, 07-07-1897 - Angicos, SE, 28-07-1938. Segundo Luís da Câmara Cascudo, Lampião, além de compor, era dançador, criador e divulgador do xaxado, além de cantador de emboladas e sambas (de acordo com pesquisas realizadas por Frederico Bezerra Maciel). Antes de Lampião, não havia música no cangaço. Não havia nem mesmo cangaço no sentido social, somente um ou outro grupo de cangaceiros. Lampião criou um estilo, uma modalidade de música popular sertanejo-nordestina, uma linguagem que chegava a todos naturalmente. Era um lírico que se deslumbrava na contemplação dos cenários da natureza, de uma flor, de um regato, do cheiro da terra molhada, do gotejar de uma bica; as coisas mais simples e puras da natureza, do canto dolente do aboio. Compunha, era poeta. Criador do xaxado, traduzindo o ruído, rangente ou xaxante, peculiar da pisada das 'apragatas' no chão seco, pedregulhento e de poeira quente dos caminhos do sertão. Sua criação máxima foi o baião 'Mulher rendeira', que se tornou no hino de guerra do sertão (ainda segundo Cascudo, em 13 de junho de 1927 atacou a cidade de Mossoró, RN, com mais de 50 cangaceiros, em pleno dia, cantando 'Mulher rendeira'). Tinha 24 anos na época da composição, inspirada no aniversário natalício de sua avó materna, d. Maria Jacosa Vieira Lopes, 'Tia Jacosa', a 15 de setembro de 1921, com o objetivo de homenagear a aniversariante, de profissão 'rendeira'. O período de elaboração é de setembro de 1921 a fevereiro de 1922, tempo entre a deliberação e a apresentação, na fazenda Poço do Negro, município de Floresta, Pernambuco, em 22 de fevereiro de 1922. A natureza musical da obra, o ritmo, é toada-baião. Apresentada por grandes artistas, corais e conjuntos, dominou todas as classes sociais; incluída no filme 'O cangaceiro', e interpretada por Alfredo Ricardo do Nascimento, o Zé do Norte. Teve como intérpretes renomados musicistas, destacando-se, entre eles, Michel Legrand e Pierre Dorsey. Lampião não conhecia teoria musical; não sabia escrever música. Disse Ventania, um dos cangaceiros do grupo de Lampião: 'Ele inventava a musga com as palavras e adespois ensinava a nóis até todo mundo aprender.' Diz o major Optato Queirós: 'No começo da vida revelou-se Virgulino Ferreira um gênio em tudo que pretendeu realizar. Foi ótimo seleiro, currieiro (organizador do curral), agricultor, comerciante, tocador de sanfona, domador de cavalo, afamado vaqueiro, domador de burros bravos de Vila Bela, poeta, almocreve (condutor de bestas de carga), músico, artista, bom tino político e, por último, bom parteiro e enfermeiro.' Lampião tocou raríssimas vezes instrumentos de sopro, como o 'pife' (pífano ou pífaro) e o 'vialejo' (realejo ou gaita de boca). Fez algumas tentativas com a rebeca. Seus instrumentos favoritos eram a harmônica (sanfona de oito baixos) e a viola. De vez em quando tocava violão, pandeiro, ganzá, maraca, triângulo e o reco-reco. Era grande festeiro e usava o recurso psicológico da alegria e da arte, da música e da dança para dominar seu grupo de cangaceiros. Nunca compôs nenhuma música para comercializá-la. Ensinou o xaxado e nos bailes dançava a valsa, marcha, polca, baião, samba-do-sertão, quadrilha (nas festas juninas), mas o que ele mais gostava era do coco-do-sertão, oportunidade em que se soltava no improviso dos repentes e em loas de todas a sorte. Além de 'Mulher rendeira' ('Mulé rendera' na linguagem local), compôs ainda as seguintes músicas: 'Teus lábios', 1915 (hoje perdida), 'Vaqueiro eu sou', 1916 (perdida), 'Escuta donzela', baião, agosto de 1922, 'Ia pra missa', xote, 1923, 'Sabino e Lampião', xaxado, 1924, 'Sangue e justiça', 1925 (perdida), 'É lamp, é Lampião' (chamado de 'O toque de Lampião', considerado o segundo hino de guerra do grupo), 1926, 'Eu não pensei tão criança', baião, 1927, 'Acorda Maria Bonita', toada, 1930, 'Se eu soubesse', toada, 'A laranjeira', baião, 1930.Veja também:
Pesquisador elabora enciclopédia sobre a MPB
Luís Antonio Giron Investnews/Gazeta Mercantil
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