Da comunidade à fiscalização: como Noronha se tornou referência ambiental no Brasil
Orgulho nacional quando se fala em sustentabilidade, arquipélago está entre os mais consagrados destinos do ecoturismo mundial
Fernando de Noronha se destaca como referência em preservação ambiental por integrar turismo sustentável, engajamento comunitário e fiscalização rigorosa, protegendo sua biodiversidade enquanto fortalece a economia local.
Considerado um santuário ecológico e um dos mais deslumbrantes e consagrados destinos do ecoturismo mundial, Fernando de Noronha vem mostrando que a preservação ambiental e o turismo ecológico podem não apenas coexistir, mas se fortalecer mutuamente. O modelo de desenvolvimento sustentável da ilha é fundamental para proteger sua rica biodiversidade marinha e terrestre, ao mesmo tempo em que impulsiona a economia local através da geração de emprego e renda.
Mas, afinal, como Noronha se mantém como essa referência em sustentabilidade?
O arquipélago de Fernando de Noronha é formado por duas Unidades de Conservação federais: o Parque Nacional Marinho e a Área de Proteção Ambiental (APA). Mas, para o visitante, além de deslumbrar sua rica biodiversidade, Noronha impressiona pelo engajamento de sua comunidade. A população local atua em sintonia com os órgãos ambientais, em um esforço diário de fiscalização e proteção do território.
Esse compromisso coletivo é tão forte que, se um visitante comete qualquer infração ou ato prejudicial ao meio ambiente, dificilmente passará despercebido – é grande a chance de ser advertido primeiro por um morador que testemunhe a cena.
Segundo Cintia Brazão, analista do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) e coordenadora da Área Temática de Uso Público da ilha, um dos pilares fundamentais para a preservação de Fernando de Noronha está exatamente na integração entre turismo, comunidade e conservação. A economia local gira em torno do turismo sustentável, com a maior parte dos postos de trabalho ligados à hotelaria, agências de passeio e restaurantes.
Conscientização e sustentabilidade
O trabalho do órgão ambiental foca em ensinar moradores e visitantes a como interagir com a fauna local, especialmente a marinha e as aves. Condutores e monitores são capacitados para orientar os turistas. "É interessante que as pessoas saibam assim: 'Eu posso nadar próximo de um peixe, mas eu não vou tocar nesse peixe' que está passando na minha frente", ilustra Cintia. O objetivo é claro: observar sem interferir, respeitando sempre o habitat desses animais.
A presença de monitores nas praias e pontos de informação do Parque Nacional é importante para tirar dúvidas, como, por exemplo, "como se comportar ao encontrar um tubarão?". Graças ao ecossistema equilibrado da ilha, os tubarões não veem humanos como presa. "O que acontece, às vezes, são acidentes, porque assim como qualquer outro animal, o tubarão vai se defender", explica. Esses incidentes, portanto, são quase sempre causados por uma aproximação inadequada ou desrespeito às regras, e não por um comportamento predador natural.
A sinalização, a presença de monitores e a própria comunidade são pilares da fiscalização. "Os condutores são parceiros e fazem parte dessa fiscalização", destaca a analista. Muitas denúncias partem de moradores ou guias que testemunham infrações.
Recentemente, multas --que variam de R$ 500 a R$ 30 mil-- foram aplicadas a turistas infratores. Um deles foi multado por causa da captura de uma ave ameaçada de extinção, que acabou sendo recuperada. Outro porque ultrapassou a cerca de proteção do Mirante dos Dois Irmãos, no Parque Nacional Marinho.
Para Cintia, o sucesso de Noronha como modelo se sustenta em três pilares da sustentabilidade:
- Social: O forte sentimento de pertencimento da comunidade. "Não, a gente não quer a ilha destruída, nós queremos a ilha preservada. Nós somos moradores, somos nativos da ilha, é assim que eles pensam", diz ela.
- Econômico: O turismo sustentável que gera emprego e renda, injetando recursos na economia local de forma a manter a preservação.
- Ambiental: A presença forte do ICMBio e de parceiros, criando normas com a participação da comunidade. "As normas passam a ser feitas não só pelo órgão ambiental, mas há várias mãos. E uma dessas mãos é a mão social. Isso é um dos pontos mais importantes", destaca a analista.
Fiscalização e monitoramento
O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) tem como missão a proteção e a gestão das unidades de conservação do País, que somam mais de 300 em todo o território. Em Fernando de Noronha, esse trabalho busca assegurar a proteção ambiental por meio do uso sustentável dos recursos, seja de forma indireta, como o turismo no parque, seja de forma direta, como a pesca e a moradia na APA, que são fontes essenciais de renda para a comunidade local.
O turismo em Noronha tem suas raízes na própria comunidade local. Como explica Cintia, a atividade "nasce com os moradores acolhendo o visitante" ainda nos anos 1980, quando as primeiras hospedagens domiciliares começaram a aparecer. "Eram os moradores que recebiam aquelas pessoas que vinham visitar", relata ela, destacando que o fluxo era muito menor do que o atual. Naquele período, os próprios residentes mostravam seu cotidiano aos turistas, guiando-os informalmente pelos passeios que faziam parte de suas rotinas e costumes.
O ICMBio entrou nessa história para aprimorar e organizar essa prática, incorporando à gestão pública o que já era organicamente realizado pela população. Como afirma Cintia, o Instituto atua "conciliando isso com regras de autorização de condução". Hoje, existe um sistema de condutores autorizados para atuar no Parque Nacional Marinho.
O trabalho de capacitação, segundo a analista, avança também para a Área de Proteção Ambiental. O objetivo é que os condutores possam oferecer, além das informações culturais e sociais, "um pouco mais de bagagem e conhecimento teórico e prático sobre sustentabilidade, novidades de conservação, mais sobre as unidades de conservação e informações sobre as pesquisas locais".
Ela destaca ainda que dois marcos históricos fundamentais consolidaram esse modelo de preservação: a criação da APA, em 1986, e a do Parque Nacional Marinho, que completa 37 anos em setembro. Essas iniciativas representaram a implementação das primeiras regras e normativas para ordenar o uso do território, limitar atividades predatórias e estabelecer as bases para o desenvolvimento de um modelo de convivência harmoniosa entre seres humanos e a natureza.
Para isso, o ICMBio atua diariamente com uma equipe dedicada à fiscalização, realizando monitoramento marinho e terrestre. "Fazemos checagem de saídas de barco, se estão transitando em locais certos, apropriados, se as atividades estão sendo feitas em locais pré-determinados pelos planos de manejo", explica Cintia. Um dos focos é combater a pesca ilegal de espécies protegidas, como a lagosta, que é proibida na ilha.
Primeiro território a proibir plástico no Brasil
Desde 2019, Noronha se tornou o primeiro território do Brasil a aprovar o banimento dos plásticos descartáveis. O Decreto Distrital Nº 002/2018 estabelece a “proibição da entrada, comercialização e uso de recipientes e embalagens descartáveis de material plástico ou similares no Distrito Estadual de Fernando de Noronha”. O decreto prevê multas para turistas, moradores e estabelecimentos comerciais que descumprirem as regras.
Na prática, a legislação proíbe na ilha:
- Garrafas plásticas com capacidade inferior a 500ml
- Canudos, talheres e copos de plástico descartável
- Sacolas plásticas
- Embalagens descartáveis de isopor
- Qualquer outro produto descartável de polietileno, polipropileno e similares
"Temos um canal de comunicação diário com todos os moradores e visitantes sobre a proibição dos plásticos. Nós divulgamos as regras, e essa proibição é importante para evitar que se veja plástico jogado na rua ou que as pessoas descartem esses materiais de forma incorreta. O plástico pode prejudicar muito a fauna marinha. Uma tartaruga, por exemplo, pode confundir o plástico com alimento e ingerir acidentalmente, ou qualquer outro animal pode predar algo que parece comestível, mas não é. Eles acabam confundindo uma sacola plástica boiando com uma água-viva ou uma alga", explica a analista do ICMBio.
Educação ambiental e turismo sustentável
Os turistas que visitam Fernando de Noronha pagam, atualmente, a Taxa de Preservação Ambiental (TPA) no valor de R$ 101,33 por dia. Instituído em 1989, o tributo tem como objetivo principal financiar a preservação dos ecossistemas e da biodiversidade do arquipélago.
Além da TPA, é necessário adquirir um ingresso para visitar as áreas do Parque Nacional Marinho, válido por 10 dias. Conforme a Portaria ICMBio Nº 3.052, de 1º de outubro de 2024, o valor integral do ingresso é de R$ 373,00. Brasileiros têm direito a desconto de 50%, pagando R$ 186,50.
Há isenção do ingresso para os seguintes casos:
- Menores de 12 anos e brasileiros maiores de 60 anos (mediante documentação comprobatória);
- Moradores regularizados de Fernando de Noronha (com carteira de morador ou comprovante de isenção de TPA por período superior a 90 dias);
- Parentes em primeiro grau de moradores regularizados (pais, sogros, filhos, enteados e cônjuges, com documentação);
- Pessoas em serviço autorizado (servidores públicos ou de instituições privadas com isenção do imposto migratório TPA concedida pela ATDEFN);
- Pesquisadores com licença do SISBio.
De acordo com o ICMBio, na ilha, a proteção da fauna é uma prioridade absoluta. O trabalho é contínuo e feito em parceria com ONGs e universidades. "A questão da educação ambiental não é feita só pelo ICMBio, mas pelos parceiros também", afirma Cintia. Um exemplo é o Projeto Golfinho Rotador, referência em conservação marinha em Noronha, que recebeu o Selo Ouro da Green Destinations Latinoamérica 2025, uma das certificações mais relevantes do setor.
Criado em 1990, o projeto se destaca pelo trabalho contínuo de pesquisa científica, proteção dos golfinhos-rotadores e promoção da educação ambiental. Suas ações têm um papel decisivo no modelo de turismo de natureza do arquipélago, garantindo experiências responsáveis e alinhadas à preservação do ecossistema local.
Mas não são apenas os golfinhos que são constantemente monitorados, mas na verdade todas as espécies. Aves como o atobá-mascarado são censadas anualmente; tubarões recebem microchips para rastreamento em projetos de universidades parceiras; e as tartarugas-marinhas são monitoradas pelo Centro Nacional de Pesquisa e Conservação de Tartarugas Marinhas (Tamar) ou pela Fundação Pró-Tamar. "Toda a informação que a gente gera, a gente usa para gestão", explica Cintia. Se os dados indicam algum prejuízo a uma espécie, novas regras são criadas para minimizá-lo.
As regras de conduta são rigorosas e amplamente divulgadas: não tocar nos animais, não alimentá-los e manter distância. A esperança, como finaliza Cintia, é que os visitantes saiam dali "um pouco mais sensibilizados" e levem esse exemplo e conscientização para outros lugares.
Apesar dos esforços de preservação, o paraíso de Noronha não está imune a ameaças. Um exemplo recente foi a mobilização bem-sucedida do ICMBio, em conjunto com a comunidade local e ONGs, contra a exploração de petróleo nas proximidades do arquipélago. Em junho deste ano, a Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP) tentou, pela terceira vez, leiloar blocos de exploração na Bacia Potiguar – localizada a apenas 398 km de Noronha –, mas não recebeu nenhuma proposta.
Cintia Brazão explica que a luta era fundamental porque "a exploração coloca em risco boa parte da biodiversidade marinha existente no território". Para ela, o caso foi um exemplo claro de como "a comunidade local entendeu os riscos e se juntou à parte técnica". No entanto, o alerta permanece. "Mas nos mantemos atentos, porque pode ser que volte a ser colocada essa área em leilão e isso colocaria em risco a biodiversidade local". Diante desse cenário, o ICMBio segue ampliando suas frentes de proteção e avança com uma proposta para a criação de novas unidades de conservação marinha nas adjacências da ilha.