Neste mês de setembro, em que completa um ano de vida, o The Conversation Brasil publica uma série de artigos que discutem a essência do nosso trabalho: os rumos da divulgação científica e seu papel na sociedade. Em tempos em que a mentira e as informações falsas viraram ferramentas estratégicas e poderosas no universo das redes sociais, uma divulgação científica que seja ao mesmo tempo acurada e eficiente na transmissão de conhecimento para camadas mais amplas da população é fundamental para frear o flerte com a ignorância e o autoritarismo que parece cada vez mais ameaçador na sociedade contemporânea. No terceiro artigo desta série, o professor do Instituto de Física da Unicamp Leandro Tessler traça uma relação entre a histórica baixa prioridade do ensino de ciência na educação básica brasileira e o impacto que a propagação de desinformação pode ter provocado no número de vítimas da pandemia de Covid no Brasil.
Ciência é talvez a mais importante aventura da história da humanidade. Graças à invenção da ciência vivemos mais e melhor. Graças à ciência entendemos os mistérios da natureza, da vida, do universo e tudo mais. Não conhecer as bases do pensamento científico condena as pessoas a ficarem excluídas de uma parte fundamental da cultura humana. O pleno exercício da cidadania exige conhecer pelo menos as bases e métodos da ciência.
Apesar da importância da ciência, a educação básica brasileira não tem tido sucesso na formação científica de seus estudantes. Por motivos que não discutirei aqui, dentro do utilitarismo que pauta a formação dos brasileiros, a sociedade não associa conhecimento científico com oportunidades de ascensão social.
Ao contrário do que ocorre em outros países, a formação em pensamento matemático e científico não é considerada fundamental. Confunde-se o aprendizado de ciência com memorização de fórmulas abstratas e fora de contexto, sem relação com a realidade próxima do estudante. Não surpreende que os brasileiros não cogitem usar ciência para ajudar a tomar decisões.
Eu recebi um choque de realidade que me marcou para sempre quando fui convidado, em 1991, para dar um curso de física experimental para professores de física da rede pública da região de Campinas, financiado pelas Nações Unidas. Eu era um recém contratado professor da Unicamp.
Encontrei um público bastante heterogêneo. Poucos professores tinham formação em física. Raríssimos eram capazes de fazer um gráfico de uma grandeza em função do tempo.
Para a grande maioria, física era uma atividade realizada por grandes cientistas europeus ou norte-americanos, que se traduzia em montes e montes de fórmulas. Cabe aos estudantes memorizá-las, dado que pode cair no vestibular ou no ENEM. Alguns até inventaram musiquinhas ou poemas para facilitar a memorização. Nenhuma ou quase nenhuma atividade experimental.
Só tem um problema: longe de ensinar ciência, esse tipo de iniciativa apenas transmite a negação do pensar científico para as novas gerações.
Várias tentativas de introduzir atividades científicas na formação escolar vêm fracassando ao longo do tempo, em grande parte devido à percepção de mundo dos alunos, suas famílias e também dos próprios professores. É muito difícil mudar uma cultura já enraizada, especialmente numa sociedade onde o conhecimento é menos valorizado do que os títulos das pessoas.
Cultura científica
Para mim ficou claro que é muito mais importante para o país um cientista ativo estar envolvido em divulgar a ciência e a cultura científica do que em publicar artigos em revistas internacionais de alto prestígio.
Tenho buscado conciliar essas duas atividades ao longo da minha carreira. Isso é feito em diferentes frentes. Mas tenho convivido com um problema bastante sério: a progressão profissional nas universidades públicas brasileiras está estritamente relacionada com produção científica.
Atividades de divulgação contam nada ou quase nada. Assim, a maior parte dos docentes percebe atividades de divulgação como uma perda de tempo que atrapalha suas atividades de pesquisa que resultam em publicações em revistas de alto prestígio. Pouquíssimos são ativos em divulgação.
Há anos eu escrevia um blog justamente chamado Cultura Científica, em que discutia essencialmente assuntos ligados à ciência, pseudociência e ciência mal feita (bad science). Obviamente acabei atraindo a atenção e a ira de adeptos de práticas de saúde sem base científica, como homeopatia e quiropraxia.
Eu sempre respondia aos comentários e evitava ao máximo julgar o que as pessoas fazem para cuidar de sua saúde, mas chamava a atenção para a ausência de evidência científica em suas práticas e como é importante entender o que isso significa.
Outro aspecto fundamental para a divulgação científica é, sempre que possível, atender e dialogar com a imprensa. Há muita necessidade de levar explicações científicas em linguagem simples e compreensível para os canais pelos quais as pessoas se informam. Se nós cientistas não fizermos isso, esse espaço é rapidamente ocupado por charlatães.
Com o desenvolvimento de redes sociais, o Twitter (atual X) passou a ser meu principal ambiente de atuação. Do jeito que a rede vem sendo tratada por seu novo dono, tolerando agressões contra divulgadores em nome da liberdade de expressão, isso não vai durar. Já estou ativo no Bluesky. Depois da proibição da operação da rede no Brasil, só uso esta alternativa.
Pandemia: entender a ciência nunca foi tão importante para salvar vidas
Então chegou a pandemia de Covid. Mais do que nunca, as pessoas precisavam entender o que estava acontecendo, e para isso precisavam lançar mão de ciência. Acontece que a pandemia ocorreu num momento da história em que as redes sociais impuseram uma nova dinâmica para o conhecimento.
O grande público brasileiro não entendia o que estava acontecendo. Aconteceu então um fenômeno muito perigoso: escolher uma explicação estava mais associado à posição política da pessoa do que à compreensão de fenômenos naturais básicos. Fontes oficiais logo tomaram posições anticientíficas, ignorando tudo o que sabemos sobre modelagem epidemiológica.
Assessorado por médicos incompetentes ou mal intencionados, o então presidente do país decidiu minimizar a letalidade da doença, para tentar manter a economia funcionando e agir como se nada estivesse acontecendo.
Ele argumentou que a Covid era algo menor, uma "gripezinha", que só mataria idosos e portadores de condições preexistentes. Afirmou que a população jovem logo estaria protegida por imunidade de rebanho. Estimou que a doença mataria não mais que 800 brasileiros. Mais que isso, seguindo o então presidente dos EUA, passou a recomendar o uso de drogas como a cloroquina, sem efeito algum sobre a Covid, e outras igualmente inúteis.
O resultado, todos sabem, foi desastroso. Morreram mais de 700 mil brasileiros. Quase mil vezes mais que a previsão oficial. Só não morreu mais gente no Brasil graças ao heróico trabalho de divulgadores com alta visibilidade nas redes sociais, que alertaram para o tamanho do problema e recomendaram medidas de distanciamento social.
Eu atuei especialmente comentando a metodologia científica. Em particular, como foi possível usar a ciência para estimar o número de mortos que teríamos se a população tivesse seguido as recomendações do presidente: quase 2 milhões.
Só não chegamos a esse número porque aos poucos a maior parte dos cidadãos brasileiros preferiu buscar informações científicas, e não ideológicas, para entender o que estava acontecendo. Neste aspecto, a ação de divulgadores científicos que atuam nas redes sociais foi de extrema importância. Mas nada fácil, face às tentativas de silenciamento que ocorreram à época.
Democratização do conhecimento: uma obrigação de quem pesquisa
Hoje, o pior da pandemia já passou. Mas a divulgação de ideias anticientíficas continua firme e associada à polarização política do país. Agora buscam desacreditar a importância das vacinas e a elas atribuir supostos efeitos colaterais jamais demonstrados.
Quem não consegue entender como e porquê sabemos que as vacinas são seguras é presa fácil para portadores de desinformação de ocasião. E as consequências desse descaso são muito sérias.
Mais do que nunca, é importante incentivar as pessoas a voltarem a entender o mundo através de um olhar científico. E para isso, a transmissão de conhecimento científico de forma clara e acessível, capaz de comunicar-se com todas as parcelas da população, é fundamental.
Nesse contexto, a sociedade brasileira certamente seria menos vulnerável ao poder deletério das fake news transmitidas via redes sociais se uma parcela importante dos cientistas dedicasse parte do seu tempo a traduzir o saber científico para todos, de forma acessível e democrática.
Leandro R. Tessler recebe financiamento da FAPESP.