Brasileiro que recria figuras históricas em 3D já foi parado por réplica de cabeça em mala

Autodidata e superdotado, Cícero Moraes modela rostos com análise detalhada do crânio, digitalização em 3D e projeções virtuais

29 jul 2023 - 05h00
(atualizado em 31/7/2023 às 09h26)
Cícero Moraes começou a se interessar por reconstruções faciais após passar por período de depressão e ansiedade
Cícero Moraes começou a se interessar por reconstruções faciais após passar por período de depressão e ansiedade
Foto: Cícero Moraes/Divulgação

Dom Pedro I, Tutancâmon, Santo Antônio de Pádua e um semblante que poderia representar Jesus Cristo. Esses são alguns dos rostos trazidos "de volta à vida" por Cícero Moraes, brasileiro especializado em reconstruções faciais a partir de crânios antigos.

A trajetória do designer nascido em Chapecó (SC) não é nada óbvia. Seu interesse pela área surgiu em um período de ansiedade e depressão, após tomar um tiro de raspão na cabeça durante um assalto. Recluso, decidiu estudar reconstrução facial forense de forma autodidata, por curiosidade. 

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Em entrevista ao Byte, o designer conta que fechou seu primeiro projeto depois de um ano de estudo, reconstruindo 25 personalidades históricas. Cícero utiliza um programa gratuito chamado Blender 3D para realizar o trabalho, cujas extensões necessárias para a função foram idealizadas e programadas por ele próprio. 

A boa notícia, segundo ele, é que não é necessário nenhum equipamento de ponta para quem quer começar a se aventurar por reconstruções faciais. As aplicações utilizadas pelo especialista rodam em computadores com memória RAM e processador comuns, amplamente disponíveis no mercado.

Atualmente, ele possui diversos projetos em andamento, incluindo a reconstrução facial de uma mulher com 45 mil anos. O processo, normalmente efetuado em projetos multidisciplinares que envolvem outros profissionais, inclui análise detalhada do crânio, digitalização em 3D e projeções virtuais.

A vida remontando rostos antigos já fez com que Moraes fosse parado em um aeroporto, quando o raio-x de sua mala mostrou aos oficais uma réplica 3D de uma cabeça de bebê. "Com os olhos assustados, me pediram para abrir a caixa para a avaliar o que tinha dentro", lembra.

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A lista de honrarias acumuladas por Moraes é extensa. Seus trabalhos já lhe renderam títulos de doutor honoris causa em duas instituições diferentes, um recorde no Guinness, uma medalha por sua contribuição à história do Peru e reconhecimentos de diferentes governos internacionais.

Neste ano, foi aceito na Mensa Brasil, organização de pessoas superdotadas, por ter quociente de inteligência dentro da faixa de 2% do topo de testes de inteligência aprovados.

Como você entrou no ramo de reconstruções faciais?

Moraes: Em 2011, fui vítima de um assalto e levei um tiro de raspão na cabeça ao lutar contra dois ladrões. Consegui salvar a família da situação, mas isso fez com que eu desenvolvesse um quadro de ansiedade e depressão aguda. Para lutar contra esse estado, fiz o que sempre me foi uma fonte de alegria: estudar.

Como eu estava mal e sem perspectivas no momento, decidi estudar algo diferente, que sempre desejei, mas que não tive oportunidade de desenvolver.

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Lembrei que quando era criança, no início dos anos 90, eu havia assistido uma matéria sobre reconstrução facial forense e aquilo me chamou a atenção. Comprei um livro em inglês (caro!) e comecei a ler e estudar.

Depois de pouco mais de um ano de estudo, fui contratado para a confecção de 25 reconstruções de personalidades históricas e da evolução humana. Dentre essas reconstruções estava a face de Santo Antônio, que contribuiu significativamente para que o meu trabalho se tornasse conhecido.

Já ocorreu algo inusitado ou inesperado durante alguma reconstrução?

Moraes: Uma vez reconstruímos a face de uma múmia cujo sexo definido pelos especialistas era o feminino. Depois que aproximamos, a face ficou exacerbadamente masculina, de modo que novos estudos foram efetuados e, de fato, se tratava de um indivíduo do sexo masculino.

Outra vez eu estava com a impressão 3D do busto de uma múmia bebê que reconstruímos em 2014 para publicarmos em um artigo científico. A cabeça estava em uma caixa de papelão lacrada que levei junto comigo em um voo. Quando a peça passou pelo raio-X, a responsável chamou outras especialistas e, com os olhos assustados, me pediram para abrir a caixa para avaliar o que tinha dentro.

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No final, todos riram. O episódio se explica pela novidade da impressão 3D na época.

Quais as principais etapas do processo de reconstrução?

Moraes: Inicialmente é necessário que um especialista analise o crânio cuja face será reconstruída, identificando o sexo, idade e ancestralidade.

Com os dados em mãos eu sigo com a digitalização do crânio em 3D, ou seja, transporto ele para o mundo digital. Em um cenário virtual eu faço uma série de projeções, como a espessura da pele, a inclinação, comprimento e largura do nariz, a posição dos globos oculares, o tamanho das orelhas, dos lábios e outras estruturas, tudo baseado em dados estatísticos colhidos de mensurações efetuadas em tomografias de pessoas vivas.

Assim que a face básica é finalizada, a etapa seguinte é o acabamento, com a pigmentação da pele, a colocação dos pelos e cabelos, indumentária e a geração das imagens finais.

Moraes conta que já deixou fiscais de aeroporto alarmados com impressão 3D de múmia bebê
Foto: Acervo pessoal

Qual foi a reconstrução facial mais difícil que você já fez?

Moraes: Uma das mais difíceis que eu participei foi a aproximação facial do Senhor de Sipán, do Peru. O crânio dele estava segmentado e deformado, de modo que tivemos que separá-lo em mais de 90 peças e remontá-las em um espaço tridimensional. Felizmente tudo deu certo e apresentamos a face em 2016.

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Veja aproximação do Senhor de Sipán

Qual equipamento e programas usa, e qual a importância deles no processo?

Moraes: O processo pode ser efetuado em um máquinas com configurações modestas, disponíveis no mercado. Tendo um processador i5 para cima e 8GB de RAM para cima, já funciona bem.

Eu mesmo desenvolvo a extensão com os comandos necessários para o processo. Chama-se OrtogOnBlender, ela roda dentro do Blender 3D, é totalmente gratuita e de código aberto e roda nos três sistemas operacionais mais populares do mercado: o Windows, o Mac e o Linux.

Quais são seus atuais projetos em andamento?

Moraes: Tenho ao menos 15 projetos sendo desenvolvidos. O que esperamos publicar em breve é um que revelará a face de uma mulher de 45 mil anos.

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Como você enxerga toda a repercussão que houve na representação que você fez de Jesus Cristo em 2018? Esperava que houvesse polêmica?

Moraes: Na verdade não é Jesus, é um rosto médio de habitantes da região onde ele supostamente viveu. Sempre que alguma figura religiosa popular é apresentada, desperta-se certa polêmica no debate público.

No caso do “Jesus”, houve uma intensa discussão acerca de como ele poderia de fato ter sido, imagino que tal situação se deva à imagem padrão que nós temos, muito influenciada por pintores europeus.

Mas isso também é esperado, uma vez que representar figuras religiosas tendo como base pessoas do local onde os pintores trabalhavam era uma prática comum.

Rosto de “Jesus” criado por Cícero Moraes trata-se de uma modelagem 3D baseada em uma média facial da região
Foto: Cícero Moraes/Divulgação

Como você seleciona os projetos em que participa? Você tem mais afinidade por certos temas/épocas históricas?

Moraes: Geralmente escolho projetos que contenham algum interesse histórico ou cultural, relacionado a algo que estou estudando no momento. Atualmente, gosto de entender a questão estrutural na evolução humana, tanto nas regiões como a mandíbula quanto a do crânio. Então, tenho procurado crânios mais antigos para comparar com os modernos.

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Como a descoberta de que é superdotado mudou sua vida?

Moraes: Ajudou principalmente no reconhecimento da minha sensibilidade frente aos estímulos que o mundo e a sociedade me bombardeiam. Hoje, entendo os meus limites, minhas características e isso ajudou muito na convivência com outras pessoas e comigo mesmo. A vida ficou mais leve.

Alguns de seus trabalhos ganharam notoriedade internacional. Como se sente sobre isso e que impacto isso tem na sua carreira?

Moraes: Tal notoriedade me honra imensamente, procuro com isso buscar novas parcerias e fortalecer as já existentes. Pouca gente sabe, mas o meu ganha pão majoritário é o desenvolvimento de tecnologias para o planejamento cirúrgico em humanos, e curiosamente muito do que utilizo e desenvolvo na área da reconstrução facial acaba ajudando na parte médica e vice-versa.

A rede de contatos vinda das reconstruções pode eventualmente ajudar com parcerias científicas e comerciais, então, acaba sendo bastante benéfico para ambos os lados.

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Você atualmente vive de fazer reconstruções? É possível fazer disso uma atividade remunerada no Brasil?

Moraes: Hoje a minha maior fonte de renda está relacionada ao desenvolvimento de tecnologia para o planejamento cirúrgico em humanos, mas o trabalho com reconstruções tem garantido um ótimo complemento de renda.

É possível trabalhar com isso no Brasil, só é preciso ter bons contatos, entrar em projetos específicos ou mesmo explorar um nicho que necessite de tal abordagem.

Fonte: Redação Terra
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