A 'ciência do impossível' que revoluciona o mundo, mas é ousada demais para sua época

Muitas pesquisas que geram avanços grandes ou rompem com paradigmas da ciência acabam rejeitadas, ignoradas, e até mesmo ridicularizadas por muito tempo até serem reconhecidas.

16 jan 2025 - 11h06
Nikola Tesla é considerado um dos exemplos mais emblemáticos de cientista que quebra paradigmas
Nikola Tesla é considerado um dos exemplos mais emblemáticos de cientista que quebra paradigmas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A primeira tentativa dos pesquisadores James Watson e Francis Crick de tentar descobrir a estrutura do DNA, as moléculas com informações genéticas dos seres vivos, foi um desastre.

O modelo estava errado, e o chefe do laboratório de Cambridge onde eles pesquisavam, Lawrence Bragg, disse em 1952 para a dupla parar de trabalhar com DNA.

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Mas, no começo do ano seguinte, quando o pesquisador americano Linus Pauling começou a investigar o assunto, o surgimento de concorrência fez Bragg decidir dar mais uma chance à dupla, como conta Mathew Cobb, no livro Life's Greatest Secret: The Race to Crack the Genetic Code (O Grande Segredo da Vida: A Corrida para Desvendar o Código Genético, em tradução livre).

Em 1953, Watson e Crick tiveram contato com fotografias que seriam parte da pesquisa de outra cientista — Rosalind Franklin — e, rapidamente, desvendaram o mistério.

Em 1962, nove anos depois, eles receberam o prêmio Nobel de Medicina.

Seu trabalho em biologia molecular transformou a genética, a compreensão científica sobre evolução e hereditariedade e foi a base para o desenvolvimento da biotecnologia moderna.

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Há muitos momentos como esse na história da ciência, explica Sérgio Ferreira, diretor-executivo do Ciência Pioneira, instituição de fomento à pesquisa que busca por jovens cientistas com projetos ousados e transformadores como esse.

"São grandes descobertas que permitem saltos e revoluções no conhecimento e redefinem nosso entendimento sobre o mundo", diz ele.

"É o que a gente chama de cientistas maverick." Ou seja, ousados como o personagem de Tom Cruise no filme Top Gun, que tem esse apelido.

"São cientistas que questionam a ciência estabelecida e se arriscam em desafios tecnológicos ou teóricos que pareciam impossíveis."

É o que também se chama ciência de fronteira, pesquisas que se dedicam a expandir os limites do conhecimento e muitas vezes convergem diferentes áreas — como a biologia sintética, que combina princípios da biologia, da química e da engenharia.

O instituto Ciência Pioneira tem editais que oferecerem bolsas para jovens pesquisadores que tenham projetos de pesquisa ousados e inovadores — especialmente os que estão na fronteira entre biologia e exatas como matemática e física.

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Entre os pesquisadores ligados ao instituto, está o biólogo Ivan Domith, que investiga possíveis usos de ácidos clorogênicos (compostos naturais do café) na área de saúde.

Também há bolsistas como a física Alice Marques, que estuda mecânica quântica (a física de partículas subatômicas).

O edital mais recente, lançado em julho, vai dar uma bolsa de R$ 160 mil por ano por três anos para quinze jovens pesquisadores que completaram o doutorado há no máximo cinco anos. Os escolhidos serão divulgados em abril.

Barbara McClintock, Francis Peyton Rous, Jim Allison e Stanley Prusiner (da esq. p/ dir.) tiveram seus trabalhos ignorados, rejeitados e até ridicularizados até serem reconhecidos como revolucionários
Foto: BBC News Brasil

Descobertas que revolucionam o mundo

O exemplo mais emblemático de salto científico do século 20 foi a teoria da relatividade geral de Albert Einstein, publicada em 1905, que mudou completamente a física ao mostrar que o espaço e o tempo estão interligados e são relativos.

A virada do século, aliás, foi cheia destes momentos na ciência: a descoberta da radioatividade por Marie Curie em 1898; o descobrimento do campo magnético rotativo por Nikola Tesla em 1882; a descoberta do elétron em 1897 por Joseph John Thomson.

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Nenhum desses trabalhos surgiu no vácuo: a ciência sempre avança com base no conhecimento coletivo produzido por pesquisadores que vieram antes.

"Mas os grandes avanços acontecem quando pequenos grupos de cientistas corajosos desafiam dogmas, lançam novos campos de estudo e exploram territórios desconhecidos", diz Ferreira.

Como hoje todas essas descobertas estão muito estabelecidas, é fácil esquecer que, quando são feitas, o reconhecimento dos cientistas não costuma ser imediato.

Justamente porque geram avanços grandes ou rompem com paradigmas da ciência, pesquisas maverick acabam rejeitadas, ignoradas, e até mesmo ridicularizadas por muito tempo até serem reconhecidas.

Em 1917, por exemplo, a microbiologista americana Alice Catherine Evans propôs que o leite deveria ser pasteurizado (fervido rapidamente a altíssimas temperaturas e, depois, resfriado) para evitar contaminação por doenças.

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Suas ideias foram rejeitadas, porque ela não tinha um doutorado e por ser mulher.

Demoraram 13 anos para que a pasteurização fosse introduzida nos Estados Unidos, em 1930, o que rapidamente diminuiu os índices de contaminação por brucelose, uma doença bacteriana que na época era muito transmitida através do leite.

Embora todos consigam perceber o valor desse tipo de trabalho em retrospectiva, nem sempre é possível prever o resultado quando um cientista propõe um trabalho ousado — especialmente quando a pesquisa ocorre no campo da ciência de base, aquela que não tem uma aplicação prática ou um produto final evidentes.

Foi o desenvolvimento da matemática teórica, por exemplo, que possibilitou os cálculos que levaram o homem à Lua.

James Watson (à esq.) com um modelo de molécula de DNA ao lado de Francis Crick (à dir.)
Foto: BBC News Brasil

Mais incentivo para mais descobertas

A ousadia e, muitas vezes, a dificuldade de se enxergar um resultado prático a partir do trabalho, dificultam o financiamento de projetos, afirma Ferreira.

"Esse cientista maverick é movido muito mais pela curiosidade do que pelo resultado imediato das pesquisas", diz ele.

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Isso gera um ciclo vicioso: muitos pesquisadores promissores acabam indo para áreas que já são muito estudadas e onde já sabem que vão encontrar financiamento em vez de se dedicar aos projetos que realmente queriam, diz Ferreira.

Historicamente, muitos exemplos de grandes descobertas que demoraram para ser reconhecidas vieram de cientistas que pesquisavam em universidades ou instituições estatais.

Um exemplo é o do pesquisador do paleontólogo Robert Thomas Bakker, professor da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.

Em 1968, ele argumentou que havia evidências de que alguns dinossauros tinham sangue quente e evoluíram para pássaros. Ele foi visto como um criador de controvérsia e não foi citado em outros trabalhos acadêmicos por décadas.

Mas foi o seu estudo que deu início à chamada "renascença dos dinossauros", uma renovação no interesse popular pelos animais que teve o pico nos anos 1990.

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Ferreira, no entanto, argumenta que hoje são necessários mecanismos além da academia e da indústria para fomentar esse tipo de "ousadia científica", porque os modelos tradicionais de financiamento ficaram progressivamente engessados.

A estrutura da produção acadêmica, explica ele, é projetada para que exista um caminho de desenvolvimento seguro e previsível com os poucos recursos existentes.

"Na academia, os pesquisadores são incentivados a ter projetos que vão produzir resultados publicáveis em jornais científicos em um cronograma previsível", diz Ferreira.

Já no setor privado, as pesquisas priorizadas são as que têm maior chance de resultar em um novo produto ou tecnologia lucrativos, também de forma previsível.

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"Enquanto essa forma de produzir ciência é super importante, ela não deve ser a única", defende Ferreira.

"Os pesquisadores também precisam ser incentivados a explorar ideias pouco convencionais e fazer perguntas incômodas."

O objetivo dos editais do Ciência Pioneira, diz ele, é justamente gerar essa possibilidade.

Internacionalmente, existem mais instituições não governamentais com programas de fomento de pesquisas de ciência de fronteira.

A Fundação MacArthur, por exemplo, e o instituto Bill and Melinda Gates, ambos dos Estados Unidos, patrocinam projetos no mundo todo.

Equipe que pesquisa ácidos clorogênicos, compostos naturais do café
Foto: Ciência Pioneira / BBC News Brasil

Ousadia através dos séculos

Justamente por serem incômodas e desafiaram as ideias predominantes no momento, muitas dessas descobertas revolucionárias demoram anos, décadas — e até séculos — para serem reconhecidas.

Os exemplos vão até antes do desenvolvimento das universidades no modelo como conhecemos.

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O médico e filósofo persa Abu Bakr al-Razi, que viveu durante a Era de Ouro do Islamismo, no seculo 9, foi ridicularizado e até punido fisicamente após descobrir que a febre é um mecanismo de defesa do organismo em 895.

Passaram-se mais de 400 anos para que a medicina adotasse amplamente esse conceito — e, hoje, o médico persa é considerado o patrono da pediatria.

Alguns cientistas foram até mortos — foi o caso do italiano Giordano Bruno, queimado por suas ideias consideradas heréticas pela Igreja Católica no século 16.

Entre outras descobertas científicas, ele descobriu que o Sol era uma estrela como qualquer outra no universo.

Já Galileo Galilei, que viveu no século 17, teve que pedir perdão e renegar suas descobertas para não ser morto após dizer que a Terra girava em torno do Sol (na época, acreditava-se que era o Sol que girava em torno da Terra).

Luigi Galvani, que viveu no século 18, propôs que o sistema nervoso se comunicava através de sinais elétricos.

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Ele foi ignorado, até que sua hipótese foi provada por diversos outros cientistas — e a produção de eletricidade por processos químicos hoje é chamada de galvanismo em homenagem a ele.

Além de Curie, Tesla e Thomson, o século 19 foi cheio de cientistas que quebraram paradigmas — e o início do século 20 também.

Nomes como o físico Robert Goddard, que 1909 foi ridicularizado por propor que foguetes espaciais poderiam ser movidos a combustíveis líquidos. O lançamento da nave Apollo 11 em 1969 provou que ele estava certo.

Francis Peyton Rous descobriu que vírus podiam causar câncer em 1911 e foi ignorado por décadas — até ganhar o prêmio Nobel em 1966.

A geneticista Barbara McClintock descobriu em 1951 a recombinação genética e o cruzamento cromossômico e teve suas pesquisas inicialmente rejeitadas. Ela só foi reconhecida décadas depois, e ganhou o Nobel de Medicina em 1983.

Na mesma década, em 1982, o neurologista Stanley Prusiner descobriu os príons, mas suas ideias também foram inicialmente rejeitadas.

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O avanço da ciência provou que ele estava certo e pouco mais de uma década depois, em 1997, ele ganhou o Nobel de Medicina.

O imunologista James Patrick Allison, conhecido com Jim Alisson, foi ridicularizado em 1994 quando propôs que as células-T do sistema imunológico eram capazes de ampliar a capacidade do corpo de combater o câncer.

Sua ideias foram sendo provadas e eventualmente levaram a criação de um remédio — o Yervoy, aprovado em 2011 pela agência de saúde dos Estados Unidos.

Em 2018, Allison dividiu o prêmio Nobel de medicina com o pesquisador japonês Tasuku Honjo.

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