A partícula de Higgs poderia ter acabado com o universo agora. Por que seguimos aqui?

Um novo estudo diz que é improvável que alguns modelos do universo primitivo envolvendo objetos chamados buracos negros primordiais leves estejam corretos. Se fosse esse o caso, o bóson de Higgs sofreria mudanças tão substanciais que não sobraria ninguém para contar a história.

18 ago 2024 - 18h04
(atualizado em 19/8/2024 às 21h24)
O bóson de Higgs recebeu seu nome em homenagem a Peter Higgs, que em 1964 revolucionou nossa compreensão do universo e das partículas elementares que o compõem.
O bóson de Higgs recebeu seu nome em homenagem a Peter Higgs, que em 1964 revolucionou nossa compreensão do universo e das partículas elementares que o compõem.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Embora nosso universo possa parecer estável, tendo existido por incríveis 13,7 bilhões de anos, vários experimentos sugerem que ele está em risco — caminhando na beira de um penhasco muito perigoso.

E tudo se resume à instabilidade de uma única partícula fundamental: o bóson de Higgs.

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Em nossa nova pesquisa, recém aceita para publicação na revista científica Physical Letters B, mostramos que alguns modelos do universo primitivo, aqueles que envolvem objetos chamados buracos negros primordiais leves, provavelmente não estão certos porque já teriam acionado o bóson de Higgs para acabar com o cosmos.

O que é o bóson de Higgs?

O bóson de Higgs é responsável pela massa e interações de todas as partículas que conhecemos.

Isso porque as massas das partículas são uma consequência de partículas elementares interagindo com um campo, chamado de campo de Higgs. Como o bóson de Higgs existe, sabemos que o campo existe.

Você pode pensar neste campo como um banho de água perfeitamente parada em que mergulhamos. Ele tem propriedades idênticas em todo o universo.

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Isso significa que observamos as mesmas massas e interações em todo o cosmos.

O físico Peter Higgs morreu em abril, aos 94 anos.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Essa uniformidade nos permitiu observar e descrever a mesma física ao longo de vários milênios (os astrônomos normalmente olham para trás no tempo).

Mas o campo de Higgs provavelmente não está no menor estado de energia possível.

Isso significa que ele poderia teoricamente mudar seu estado, caindo para um estado de energia mais baixo em um determinado local. Se isso acontecesse, no entanto, alteraria dramaticamente as leis da física.

As bolhas

Tal mudança representaria o que os físicos chamam de transição de fase. É o que acontece quando a água se transforma em vapor, formando bolhas no processo.

Uma transição de fase no campo de Higgs criaria similarmente bolhas de espaço de baixa energia com uma física completamente diferente nelas.

Nessa bolha, a massa de elétrons mudaria repentinamente, assim como suas interações com outras partículas.

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Prótons e nêutrons - que compõem o núcleo atômico e são feitos de quarks - se deslocariam repentinamente.

Essencialmente, qualquer pessoa que experimentasse tal mudança provavelmente já não estaria mais aqui para contar história.

Um risco constante

Medições recentes de massas de partículas do Grande Colisor de Hádrons (LHC) no Cern [Organização Europeia para Pesquisa Nuclear] sugerem que tal evento pode ser possível.

Mas não entre em pânico. Isso só pode ocorrer em alguns milhares de bilhões de anos após nos aposentarmos.

Por esse motivo, nos corredores dos departamentos de física de partículas, costuma-se dizer que o universo não é instável, mas sim "metaestável", porque o fim do mundo não acontecerá tão cedo.

Para formar uma bolha, o campo de Higgs precisa de um bom motivo. Devido à mecânica quântica, a teoria que governa o microcosmo de átomos e partículas, a energia do Higgs está sempre flutuando.

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E é estatisticamente possível (embora improvável, e é por isso que leva tanto tempo) que o Higgs forme uma bolha de tempos em tempos.

Se uma transição de fase ocorresse no campo de Higgs, o universo deixaria de existir como o conhecemos.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

No entanto, a história é diferente na presença de fontes externas de energia, como campos gravitacionais fortes ou plasma quente (uma forma de matéria composta de partículas carregadas): o campo pode pegar emprestada essa energia para formar bolhas mais facilmente.

Portanto, embora não haja razão para esperar que o campo de Higgs forme inúmeras bolhas hoje, uma grande questão no contexto da cosmologia é se os ambientes extremos logo após o Big Bang poderiam ter desencadeado tal borbulhamento.

No entanto, quando o universo estava muito quente, embora a energia estivesse disponível para ajudar a formar bolhas de Higgs, os efeitos térmicos também estabilizaram o Higgs modificando suas propriedades quânticas.

Portanto, esse calor não poderia desencadear o fim do universo, o que é provavelmente o motivo pelo qual ainda estamos aqui.

O dilema dos buracos negros primordiais

Na nossa nova investigação, mostramos que existe uma fonte de calor que causaria constantemente esse tipo de bolhas (sem os efeitos térmicos estabilizadores observados nos primeiros dias após o Big Bang).

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São os buracos negros primordiais, um tipo de buraco negro que surgiu no universo primitivo a partir do colapso de regiões excessivamente densas do espaço-tempo.

Ao contrário dos buracos negros normais, que se formam quando as estrelas colapsam, os primordiais podem ser minúsculos - tão leves quanto um grama.

A existência de tais buracos negros leves é uma previsão de muitos modelos teóricos que descrevem a evolução do cosmos logo após o Big Bang.

Isso inclui alguns modelos de inflação, sugerindo que o universo explodiu enormemente em tamanho após o Big Bang.

Ao contrário dos buracos negros normais, que se formam quando as estrelas colapsam, os primordiais podem ser minúsculos, tão leves quanto um grama
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

No entanto, provar essa existência vem com uma grande ressalva: Stephen Hawking demonstrou na década de 1970 que, por causa da mecânica quântica, os buracos negros evaporam lentamente emitindo radiação através de seu horizonte de eventos (um ponto em que nem mesmo a luz consegue escapar).

Hawking mostrou que os buracos negros se comportam como fontes de calor no universo, com uma temperatura inversamente proporcional à sua massa.

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Isso significa que buracos negros leves são muito mais quentes e evaporam mais rapidamente do que os massivos. Em particular, se buracos negros primordiais mais leves do que alguns milhares de bilhões de gramas se formaram no universo primitivo (10 bilhões de vezes menores do que a massa da Lua), como muitos modelos sugerem, eles já teriam evaporado.

Na presença do campo de Higgs, esses objetos se comportariam como impurezas em um refrigerante — ajudando o líquido a formar bolhas de gás, contribuindo para sua energia por meio do efeito da gravidade (devido à massa do buraco negro) e da temperatura ambiente (devido à sua radiação Hawking).

Quando buracos negros primordiais evaporam, eles aquecem o universo localmente. Eles evoluiriam no meio de pontos quentes que poderiam ser muito mais quentes do que o universo ao redor, mas ainda mais frios do que sua temperatura típica de Hawking.

Se o campo de Higgs cair para um campo de energia mais baixa num determinado local, isso alteraria drasticamente as leis da física.
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O que mostramos, usando uma combinação de cálculos analíticos e simulações numéricas, é que, devido à existência desses pontos quentes, eles constantemente fariam o campo de Higgs borbulhar.

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Mas ainda estamos aqui. Isso significa que é altamente improvável que tais objetos tenham existido. Na verdade, devemos descartar todos os cenários cosmológicos que preveem sua existência.

Isso, é claro, a menos que descubramos alguma evidência de sua existência passada em radiação antiga ou ondas gravitacionais.

Se descobrirmos, isso pode ser ainda mais emocionante. Isso indicaria que há algo que não sabemos sobre o Higgs; algo que o protege de borbulhar na presença de buracos negros primordiais em evaporação. Isso pode, de fato, ser novas partículas ou forças.

De qualquer forma, está claro que ainda temos muito a descobrir sobre o universo nas menores e maiores escalas.

*Lucien Heurtier trabalha no Kings College, em Londres, como pesquisador associado de pós-doutorado no grupo de Física Teórica de Partículas e Cosmologia.

**Este artigo foi publicado no The Conversation e reproduzido aqui sob a licença Creative Commons. Você pode ler a versão original em inglês aqui.

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