As inundações no Rio Grande do Sul tomaram uma proporção nunca antes vista, afetando 388 dos 497 municípios do estado.
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil apontam que a causa do problema é complexa e tem como raiz a combinação dos três fatores principais: corrente intensa de vento, corredor de umidade vindo da Amazônia e uma onda de calor na região central do país.
Mas, ainda que a ciência atmosférica consiga explicar a catástrofe ambiental, em paralelo, teorias conspiratórias ganham força.
Uma, em especial, chegou a despontar nas buscas do Google na última semana e esteve entre os assuntos mais comentados do X, antigo Twitter.
Ela aponta que o Haarp, um projeto científico norte-americano que visa estudar os fenômenos físicos que ocorrem nas camadas superiores da atmosfera terrestre, seria o causador das chuvas incomuns no Estado gaúcho.
A teoria conspiratória afirma que o episódio teria sido causado por "grupos de grande poder" com o objetivo de causar medo, confusão e indignação, e a partir da vulnerabilidade causada, instituir seus próprios interesses.
O Haarp também foi alvo de teorias da conspiração no passado, que afirmavam que catástrofes como o terremoto no Haiti em 2010 e o terremoto na Síria e na Turquia em 2023 teriam sido provocadas pelas antenas do projeto.
Os conspiracionistas alegam que até uma tempestade de neve no Estado americano de Iowa em janeiro de 2024 teria sido causada para influenciar nas eleições do país.
Tais alegações carecem de evidências científicas.
Segundo cientistas consultados pela BBC News Brasil, o impacto e alcance das antenas usadas no projeto é limitado, atua em uma área específica da camada terrestre e não tem poder de causar nenhuma grande mudança, seja de temperatura, nível de radiação ou incitar catástrofes ambientais.
O que é o Haarp e por que ele não pode causar desastres ambientais
O projeto Haarp tem um enfoque específico na ionosfera, a camada da atmosfera terrestre localizada entre 80 e 640 km acima da superfície da Terra.
Essa região serve como uma fronteira entre a atmosfera inferior, onde vivemos, e o espaço exterior.
"Não existe a chance de qualquer evento climático ser desencadeado em uma camada atmosférica tão elevada, já que nuvens e correntes de ar são formadas na troposfera, ou no máximo na estratosfera, que são as camadas mais baixas, até cerca de 20 km de altitude", explica Thiago Rangel, professor de Física da Atmosfera do programa de Pós-Graduação em Tecnologias Ambientais da UFMS (Universidade Federal do Mato Grosso do Sul).
"As antenas Haarp não têm qualquer influência nos fenômenos meteorológicos, seja em micro ou macro escala", acrescenta o especialista.
Antes gerenciado pela Força Aérea e a Marinha dos Estados Unidos, o Haarp passou a ser coordenado pela Universidade do Alasca em 2014.
De acordo com o site oficial do programa, o projeto visa entender como as transmissões de ondas de rádio interagem com elétrons e íons livres na ionosfera, um conhecimento usado para aprimorar sistemas de comunicação, como wi-fi, internet móvel para celulares e aplicativos baseados em localização.
"Por ser um projeto que emite ondas na ionosfera, as pessoas tentam criar essa ligação, muito remota, de que seria possível influenciar o clima em grande escala", avalia Enio Pereira de Souza, professor da Unidade Acadêmica de Ciências Atmosféricas da UFCG (Universidade Federal de Campina Grande).
"E é justamente assim que as teorias da conspiração são construídas: juntando elementos difusos e tentando dar sentido a eles", completa.
Localizada no Alasca, a base da pesquisa, consiste em antenas transmissoras de alta potência e alta frequência chamadas de IRI (sigla em inglês para Ionospheric Research Instrument, ou instrumento de pesquisa ionosférica).
Os transmissores são usados para enviar sinais para a ionosfera, temporariamente excitando uma área específica para observar o comportamento dessa camada da atmosfera e sua interação com ondas de rádio.
A direção do Haarp afirma que os estudos são essenciais para melhorar sistemas de comunicação e vigilância para fins civis e de defesa.
Além do transmissor, o Haarp também possui uma variedade de instrumentos científicos sofisticados que podem observar e analisar os processos físicos que ocorrem na ionosfera quando excitada pelas IRI.
Por conta desses instrumentos, teorias da conspiração defendem que o Haarp seria capaz de controlar placas tectônicas, temperatura atmosférica e até mesmo o nível de radiação que passa pela camada de ozônio.
Com tamanho controle, o projeto seria capaz, segundo essas teorias, de causar desastres naturais, ser arma de destruição em massa e até ser usado para controle mental pela capacidade de emitir ondas de alta frequência.
De acordo com Rangel, nada disso é possível por meio das antenas do Haarp, que têm uma ação limitada, apenas emitindo ondas na camada da ionosfera e não interferindo nas áreas citadas pelos conspiracionistas.
As informações oficiais do projeto explicam que o Haarp é basicamente um grande transmissor de rádio.
"As ondas de rádio interagem com cargas e correntes elétricas, e não interagem significativamente com a troposfera. As ondas de rádio nas faixas de frequência que o Haarp transmite não são absorvidas nem na troposfera nem na estratosfera - os dois níveis da atmosfera que produzem o clima da Terra. Como não há interação, não há como controlar o clima", diz o site do projeto.
"Além disso, se as tempestades ionosféricas causadas pelo próprio Sol não afetam o clima da superfície, não há hipótese de que o Haarp também o possa fazer."
Nas redes sociais, perfis chamam a tragédia climática no Rio Grande do Sul de "calamidade planejada" e apontam, entre outras supostas evidências, um padrão anormal das nuvens.
Souza caracteriza as imagens vistas no céu como estratocúmulos, que são nuvens que combinam características das nuvens estrato (nuvens baixas, horizontais e uniformes) e cúmulo (nuvens brancas, fofas e comumente associadas a tempo ameno).
Essas nuvens são comuns e podem indicar diferentes condições meteorológicas, desde tempo cinzento até tempestades, dependendo da altitude e da temperatura.
"Inclusive hoje, em Campina Grande, o céu estava parecido", comenta o professor da UFCG.
A razão das inundações no Rio Grande do Sul
Meteorologistas ouvidos pela reportagem da BBC News Brasil explicam que as chuvas intensas registradas no Rio Grande do Sul nos últimos dias são consequência de uma combinação de três fatores principais:
"Essa massa de ar quente sobre a área central do país bloqueou a frente fria que está na região Sul, impedindo-a de avançar e se espalhar para outras localidades. A junção desses fatores faz com que essa instabilidade fique sobre o Estado, causando chuvas intensas e continuas", explica Dayse Moraes, meteorologista do Inmet.
Aliado a isso, o período entre o final de abril e o início de maio de 2024 ainda tem influência do fenômeno El Niño, que é responsável por aquecer as águas do oceano Pacífico, contribuindo para que áreas de instabilidade fiquem sobre o Estado.
"Esse aquecimento do oceano gera uma região de alta pressão sobre o centro do Brasil (Sudeste e Centro-oeste), o que inibe a formação de nuvens e chuvas e, em casos mais intensos, resulta em episódios de calor extremo", explica o professor Thiago Rangel.
Nas regiões citadas por ele, as temperaturas estão cerca de 5°C acima da média neste outono.
"Ao mesmo tempo, uma corrente de ar quente e úmido, proveniente da Amazônia, conhecida como 'Zona de Convergência do Atlântico Sul (ZCAS') e popularmente chamada de 'rios voadores de umidade', se encontra com frentes frias vindas do sul do continente. Isso provoca a rápida ascensão do ar quente e úmido para as camadas mais altas da atmosfera, desencadeando precipitações intensas."
"Devido ao bloqueio atmosférico sobre o centro do país, a frente fria não consegue avançar e fica estacionada na região Sul do Brasil, formando o que é conhecido como frente oclusa. Essa combinação é propícia para chuvas de alta intensidade, com duração prolongada de mais de dois dias", complementa.
Essa combinação de diversos fatores de uma única vez é considerada rara pelos especialistas.
"O que faz um evento ser muito intenso é o que nós chamamos de tempestade perfeita. Separadamente, esses eventos causaram uma chuva normal. Quando acontecem em combinação, o volume é muito grande. E outro aspecto importante é como as cidades afetadas estão preparadas para lidar com aquilo", afirma Enio Pereira de Souza.