Cientista critica visão da OMS sobre contágio pelo ar: 'Não deixam a gente se proteger direito'

José Luis Jiménez e outros especialistas escreveram uma carta cobrando que a organização internacional reconheça os riscos da transmissão por aerossóis, que são diferentes de gotículas.

6 set 2020 - 15h31
(atualizado às 15h45)
José Luis Jiménez alerta que aerossóis podem permanecer suspensos no ar e infectar por mais tempo
José Luis Jiménez alerta que aerossóis podem permanecer suspensos no ar e infectar por mais tempo
Foto: BBC News Brasil

Professor de Química na Universidade do Colorado em Boulder (EUA), José Luis Jiménez faz parte de um grupo de 239 cientistas para quem a Organização Mundial da Saúde (OMS) está demorando muito para reagir quando o assunto é a transmissão do novo coronavírus pelo ar.

O grupo escreveu em julho uma carta aberta na revista científica Clinical Infectious Diseases pedindo à organização que reconheça a transmissão do coronavírus por meio de aerossóis, ou seja, partículas infecciosas que ficam suspensas no ar, mais ou menos como acontece com a fumaça do cigarro. Considerando essa via, os cientistas dizem que haveria riscos, por exemplo, em uma sala mal ventilada em que a "fumaça" se acumula — quem estiver dentro dela vai acabar inalando grandes quantidades, aumentando o risco de contágio.

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Enquanto isso, a OMS foca em gotículas, e não em aerossóis. As gotículas viajam pelo ar, mas caem no solo depois de um a dois metros, enquanto os aerossóis, explica Jiménez, podem permanecer suspensos no ar e infectar por mais tempo.

Segundo a organização mundial, o vírus "é transmitido principalmente por meio do contato direto, indireto (por objetos ou superfícies contaminadas) ou próximo de pessoas infectadas através de secreções da boca e do nariz".

"Pessoas que estão a um metro ou menos de distância da pessoa infectada podem pegar a covid-19 quando essas gotas infecciosas entram na boca, nariz ou olhos", diz a organização.

No entanto, recentemente, a organização reviu suas diretrizes sobre o assunto — o que no entanto ainda é insuficiente, para os críticos. Ela também considera a transmissão por aerossóis em situações específicas, como o momento da intubação no hospital.

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"A transmissão por aerossóis de curto alcance não pode ser descartada, particularmente em certos espaços fechados, como aqueles cheios e mal ventilados por um longo período de tempo, na presença de pessoas infectadas", afirma a organização, que destaca também a necessidade de mais estudos sobre o tema.

A OMS já considera a transmissão por aerossóis em situações específicas, como a intubação no hospital
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Para Jiménez, porém, a OMS precisa ser mais enfática na consideração dos aerossóis como meio de propagação do vírus. Isso aceleraria medidas de prevenção considerando também essa via, ele defende.

Confira trechos da entrevista de Jiménez com a BBC News Mundo (serviço em espanhol da BBC).

BBC News Mundo - Você poderia explicar, de uma forma simples, o que são aerossóis?

José Luis Jiménez - Aerossóis são partículas que flutuam no ar e vão se dispersando.

O que nos preocupa são as partículas respiratórias, a saliva ou o fluido respiratório, que é o líquido que molha os pulmões e a traqueia.

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Elas saem no o ar como bolinhas. São como as gotículas de que fala a OMS, mas de tamanho diferente. As gotículas são maiores, os aerossóis, menores.

As gotas são grandes a ponto de funcionarem como projéteis balísticos, como se alguém estivesse cuspindo em você. A pessoa está falando, ou tossindo, e esses projéteis saem e podem acertar você no olho. Se tiverem o vírus, eles infectam você.

Os aerossóis são como a fumaça do tabaco. Eles saem, flutuam e podem infectar quando inspirados.

Quando você os inala, como acontece com a poluição, eles podem ser depositados nos pulmões.

BBC News Mundo - Você diz que a OMS até recentemente só reconhecia duas formas principais de transmissão do vírus, certo?

Jiménez - Sim. Por gotículas e por fômites. Este último é quando tocamos superfícies ou pessoas contaminadas com o vírus e depois tocamos os olhos, narinas ou boca.

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E parece acontecer, mas quase todos concordam que é uma via menos importante.

O que eles (OMS) dizem ser o mais importante são as gotículas balísticas que saem das pessoas quando falam, mas principalmente quando espirram ou tossem. Estas caem nos olhos, nariz ou boca de uma pessoa suscetível e, assim, começa a infecção.

BBC News Mundo - Qual é a diferença, então, em termos de transmissão, das gotas "balísticas" para os aerossóis?

Jiménez - Bem, a diferença é que essas gotículas balísticas saem de nós e, se não atingirem ninguém, caem no chão em um ou dois metros.

Então, muita gente pensa que mesmo estando dentro de um lugar, mas a mais de dois metros das pessoas e sempre lavando as mãos, é praticamente impossível pegar o vírus.

Mas isso muda quando consideramos os aerossóis, porque eles são como fumaça: se você estiver em uma sala com alguém infectado, e a sala tiver pouca ventilação, a "fumaça" se acumula e você pode se infectar mesmo se estiver a muito mais de dois metros de distância.

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BBC News Mundo - Isso quer dizer que os aerossóis ficam mais tempo no ar do que as gotículas, certo?

Jiménez - Exatamente. Os aerossóis se acumulam em espaços confinados.

O quanto eles se acumulam depende de quantas pessoas infectadas existem, do tamanho do local e da ventilação.

Se for um local com muita ventilação e as janelas abertas, possivelmente não acumula muito. Em um espaço muito apertado, onde há pouca ventilação, como um carro, podem se formar altas concentrações.

Pessoas cantando em um espaço fechado são cenário perigoso, diz especialista
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Mundo - Por quanto tempo o vírus pode sobreviver nos aerossóis?

Jiménez - Sabe-se que o vírus não sobrevive por muito tempo, pois ele não é um micro-organismo muito resistente. Acredita-se que ele sobreviva uma ou duas horas em aerossóis.

Se você for ao escritório, os vírus de alguém que estava lá no dia anterior já estão mortos. O mais perigoso é compartilhar o ar com alguém.

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BBC News Mundo - Mesmo se estiverem a um ou dois metros de distância?

Jiménez - Sim. Estudamos o caso de um coral de muitas pessoas, a cinco, dez, 15 metros de distância (entre si), e 53 foram infectadas quando cantavam em posições fixas. Quando a pessoa infectada não tinha ninguém na sua frente e não podia atingir ninguém com as gotículas. No entanto, 53 foram infectados.

Uma coisa que se sabe é que essas partículas respiratórias saem quando respiramos, mas, quando falamos, isso é multiplicado por 10. Quando cantamos ou gritamos, a multiplicação é por 50.

Em um coral, ou um bar com pessoas gritando para conseguir conversar com música alta, é como jogar roleta russa.

BBC News Mundo - Você diz que há evidências suficientes dos aerossóis serem uma via principal de transmissão do coronavírus.

Jiménez - Minha opinião e a de muitos outros é que as evidências são esmagadoras. E praticamente todos os cientistas concordam com isso.

Minha impressão é de que se trata do caminho majoritário (de infecção) porque, senão, muitas coisas não podem ser explicadas.

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Existem registros de casos de superpropagação, um deles é responsável por mais de 1.000 casos. Destes, apenas um se deu em área externa, e mais de mil em área interna.

Isso é facilmente explicado pelos aerossóis, porque os aerossóis são como fumaça. Se você estiver do lado de fora e houver vento, ar partículas de dispersam, os raios ultravioleta matam o vírus mais rápido, e também o ar que exalamos é mais quente do que o ar de fora e sobe.

Isso não acontece com as gotículas. Se alguém cospe um projétil em você, o vento, a menos que seja um furacão, não tem influência, não importa se dentro ou fora de um lugar.

BBC News Mundo - Você diz que a maioria dos cientistas concorda com você, mas os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDCs, na sigla em inglês) dos Estados Unidos tem opinião semelhante à da OMS.

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Jiménez - Isso é verdade. E é um grande erro.

Em um ambiente fechado, a distância pode não ser suficiente para impedir infecção pelo coronavírus
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Mundo - Vou dar um exemplo para ter certeza de que entendi o que você está dizendo. Se uma pessoa infectada com o coronavírus entrar em uma loja mal ventilada para fazer compras e eu for duas horas depois na mesma loja, posso pegá-lo mesmo que essa pessoa não esteja mais lá?

Jiménez - Isso é muito improvável. Isso em teoria pode acontecer, mas o coronavírus não é tão contagioso.

Isso poderia acontecer com doenças muito contagiosas como sarampo ou varicela. Temos um modelo que indica que o coronavírus é 20 ou 50 vezes menos contagioso que o sarampo.

No Japão o metrô está sempre lotado, mas não há casos de muito contágio. O que acontece? Já têm mais experiência, usam máscaras adequadamente e não têm o hábito de falar (no transporte).

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BBC News Mundo - Mas então muitas condições teriam que ser atendidas para a propagação via aerossóis.

Jiménez - Sim. Mas essas condições são as vistas em eventos de superpropagação. E eventos de superpropagação causam uma tonelada de transmissão.

10% das pessoas infectadas causam 80% das novas infecções. E muitas pessoas não infectam ninguém. Isso é muito conhecido.

Digo isso porque dizer "condições suficientes teriam que ser atendidas" pode sugerir que, por esse motivo, não é importante, seria uma exceção na transmissão.

Mas na verdade é algo muito importante, porque somente com essas condições vemos a superpropagação. E a superpropagação é muito importante para a perpetuação da pandemia.

José Luis Jiménez aponta que, no Japão, o hábito de não falar no metrô pode explicar por que infecções não são tão comuns, mesmo com transporte cheio
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Mundo - Então, espaços fechados e mal ventilados devem ser evitados.

Jiménez - Na medida do possível, é importante fazer o que está ao seu alcance para não estar nesse tipo de cenário.

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O jornal New York Times publicou uma reportagem mostrando que, em 1910, durante um inverno muito rigoroso na cidade, as aulas eram ministradas ao ar livre para prevenir infecções de tuberculose. E funcionava muito bem.

Se estiver do lado de fora, respeitando a distância e com a máscara devidamente colocada, é praticamente impossível se infectar. Mas é claro que, na realidade, é preciso ir ao supermercado, ir trabalhar...

Isso é de grande importância para as escolas. Elas deveriam fazer módulos em áreas externas, em parques, sempre que possível.

BBC News Mundo - Não é o que a OMS pensa hoje sobre as rotas de transmissão do vírus...

Jiménez - Segundo eles, a transmissão por aerossóis não está comprovada e são necessárias muito mais pesquisas.

Eles dizem que só é algo sabidamente importante em procedimentos nos hospitais, como a intubação.

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O engraçado é que a transmissão por gotículas também não foi demonstrada diretamente.

Não apenas para covid-19, ela nunca foi demonstrada diretamente para nenhuma doença na história da medicina!

Eles admitem que a transmissão de superfícies não foi demonstrada para o coronavírus, apenas para vírus semelhantes.

E a transmissão por aerossol também foi demonstrada para vírus semelhantes. Esse tipo de evidência é suficiente para superfícies, mas não para aerossóis.

A verdade é que a OMS tem um preconceito desmedido quando se trata de julgar as evidências sobre os modos de transmissão.

BBC News Mundo - E por que você acha que isso acontece?

Jiménez - Porque parte de um preconceito histórico. Porque as únicas doenças transmissíveis pelo ar historicamente eram muito contagiosas, como o sarampo ou a catapora.

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Por isso, muitas pessoas da área dizem: "A prova de que não é transmitido pelo ar é que não é muito contagioso. Se fosse transmitido pelo ar seria muito contagioso, como o sarampo".

Eles estão confundindo um erro histórico com uma lei da natureza, é escandaloso.

Apesar de também ser transmitida pelo ar, Jiménez diz que a covid-19 é menos contagiosa que outras doenças como o sarampo
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

BBC News Mundo - As medidas que estão sendo tomadas não levam isso em conta ...

Jiménez - Não estão deixando a gente se proteger direito, e estão considerando coisas como abrir escolas —que são casos de superpropagação esperando para acontecer.

BBC News Mundo - Você acha que a pandemia pode ser controlada nessas circunstâncias?

Jiménez - A questão é como conseguir controlar a pandemia da forma mais inteligente possível, limitando ao mínimo a atividade econômica e social.

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Para isso, é necessário entender bem como o vírus é transmitido. Existem muitos casos de contágio que poderiam ser evitados.

BBC News Mundo - Será que a relutância vem dos custos econômicos altos que isto implicaria?

Jiménez - É muito mais caro deixar de barrar a pandemia. O custo da pandemia é muito maior do que o das medidas preventivas. Isso não faz o menor sentido.

Existe um fechamento dentro do grupo científico da OMS e uma falta de diversidade científica. São todos epidemiologistas, não há ninguém que que entenda de aerossóis, e desprezam-se as evidências sobre aerossóis.

Dói criticar a OMS, uma organização muito importante e com um trabalho muito difícil.

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