Um novo estudo busca mapear os sonhos dos brasileiros em meio à pandemia de covid-19 e tentar entender como estamos lidando psicologicamente com a incerteza e angústias geradas pelo confinamento forçado.
Eventualmente, as descobertas podem servir para traçar estratégias para enfrentar essa desafio.
Entre as constatações iniciais, está o aparecimento de sonhos de perda, de fuga ou perseguição, de intrusão e de vulnerabilidade devido ao isolamento social.
O estudo, que está sendo desenvolvido por um grupo de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), tem como ponto de partida relatos de usuários na rede social Instagram.
'Por acaso'
Gilson Iannini, do Departamento de Psicologia da UFMG, diz que a ideia de realizá-lo surgiu por acaso, em sala de aula.
Ele conta que estava dando um curso de pós-graduação em psicologia durante o qual, junto com alunos, analisava o livro A Interpretação dos Sonhos, publicado pelo pai da psicanálise, o austríaco Sigmund Freud, em 1900, quando veio a pandemia e as aulas foram suspensas.
"Em conjunto, decidimos dar continuidade às atividades, de maneira virtual e investigar o que as pessoas sonhavam durante a quarentena", explica.
"Primeiro, porque notamos um aumento vertiginoso do interesse pelo tema dos sonhos. Nas redes sociais, esse assunto de repente ganhou uma dimensão inesperada. Muita gente passou a falar de seus sonhos, começamos a ver pesquisas sobre eles, muitas delas sem muito embasamento."
A inspiração veio também de um livro da também alemã Charlotte Beradt, Sonhos no Terceiro Reich. "A gente começou a se interessar pela função coletiva do sonho", diz Iannini.
"As disputas políticas, as questões sociais, os desafios e impasses históricos não se encerram apenas na esfera pública, elas se estendem e se prolongam no nosso mais íntimo, inclusive em nossos sonhos. Na perspectiva da psicanálise, as fronteiras entre a psicologia individual e social são tênues, frágeis, permeáveis."
Os pesquisadores estão recolhendo relatos de sonhos que ocorreram durante a quarentena no Instagram. "Também divulgamos o trabalho nas redes sociais e disponibilizamos um e-mail para contato", diz Miriam Debieux Rosa, da USP, que participa do estudo.
"Por meio dele, a pessoa mostra que tem interesse em participar. Nesse caso, enviamos um formulário que deve ser preenchido e mandado de volta para nós. Os sonhos e as associações dele podem chegar por escrito, por voz ou por um contato com um pesquisador por meio de plataforma online", acrescenta.
'Sonhos mais vívidos'
O estudo ainda está em sua primeira fase, de coleta de relatos e de associações dos participantes.
"É cedo para falar em resultados e tampouco em conclusão, mas podemos falar em alguns efeitos da pesquisa", explica Mírian.
"Podemos dizer que tem muita gente querendo contar - já temos perto 500 relatos no total das três equipes. Os sonhos têm sido mais vívidos, mais reais e as pessoas acordam cansadas. Sugerimos que escrevam o que sonharam assim que acordarem. Muitos sonhos remetem aos lugares de origem de quem relata, a cidade natal, a casa da infância; muitos trazem temas de perdas - de objetos, da memória, de se perderem em algum lugar, de não reconhecer as pessoas ou a si mesmo. Também o medo, o susto, o horror, o nojo."
De acordo com ela, o estudo também revela que as pessoas parecem estar mais atentas à sua vida onírica e, inclusive, sonhando mais ou pelo menos lembrado mais.
Com certa frequência, além do formulário preenchido, os pesquisadores têm recebido declarações como: "Eu normalmente não lembro dos meus sonhos, porém ultimamente tenho lembrado".
"Pensamos que é como se estivessem criando um outro tipo de relação com seus sonhos, como se essa relação pudesse se prolongar em associações que vão para além do costumeiro momento de acordar após ter sonhado, estranhar-se momentaneamente e seguir a vida", explica Mírian. "O sonho se prolonga no dia como um enigma, uma surpresa, uma vergonha de ter sonhado com algo."
Iannini acrescenta outros resultados preliminares da pesquisa. "A partir de uma nuvem de palavras, o termo mais onipresente nos sonhos é 'casa'", conta.
"Os temas da pandemia e da morte aparecem, mas em geral metaforizados. Os do isolamento e da quarentena têm aparecido com mais frequência, mais literalmente. Muitas vezes, a pessoa se encontra sozinha, angustiada porque outros gozam a vida sem cumprir a quarentena e ela própria se priva, por exemplo", diz.
Raio-x dos medos e angústias
O estudo não serve apenas para as análises, para entender os medos e angústias coletivas durante a pandemia de covid-19. Ele pode ajudar cada um dos que relatam seus sonhos, dizem os cientistas.
"Ao convocarmos esses sujeitos a narrá-los a um pesquisador, seja por escrito ou oralmente, estamos proporcionando um espaço para que a angústia inevitável do momento seja sentida de maneira menos aniquiladora", diz Mírian.
"Isso porque, ao contarem o que sonharam, eles esboçam uma tentativa de construção de algum sentido mais ou menos consistente para o nonsense que vivemos mundialmente."
Mírian cita alguns comentários dos sonhadores, que indicam que se sentem "apaziguados" ao poder compartilhar com um outro indivíduo a estranheza de seus sonhos.
"Recebemos declarações como 'gostei de escrever sobre o que sonhei, nunca havia registrado um, fiz associações que não tinha feito antes' ou 'achei importante a oportunidade de compartilhar o relato. Ele, em si, já é um fator de apaziguamento'", conta.
"Outros comentam a satisfação de poder contribuir para a Ciência, para estudos, fazendo parte de um conjunto mais amplo."
De acordo com Iannini, ao contar o sonho, colocando no papel lembranças e associações, as pessoas organizam seu psiquismo, ou seja, "dão sentido" a essas experiências que não são reais.
"O indivíduo encena combinações, testa cenários", explica. "Frequentemente, escutamos dos sujeitos que ao fazer o relato, ele se deu conta disso ou daquilo. 'Nossa, acabei de perceber que...', 'nunca tinha pensado nisso' são fórmulas bastante frequentes."
Nem sempre isso ocorre, no entanto, quando alguém apenas se lembra do sonho.
Segundo Iannini, o elemento surpresa vem com a fala ou a escrita. É preciso um destinatário. Ao relatar, ao ter com quem falar ou a quem endereçar uma produção onírica, a pessoa "se dá conta de alguma coisa".
"Para muitos, pode ter um efeito de alívio de eventual sofrimento psíquico, de se sentir útil ou menos isolado", explica. "Tem uma função coletiva então, de elaborar algo que, de outra maneira, não temos pacotes ou esquemas. Ou os que temos se mostram falhos, insuficientes."
Também pode haver benefícios em termos coletivos. "Importante notar que não dispomos, nem como indivíduos, nem como sociedades, de repertório simbólico para lidar com a pandemia", explica Iannini.
"Tudo é muito novo. O psiquismo estranha a novidade: quer assimilar conteúdos e experiências novas a formas simbólicas menos ameaçadoras. Mas nesse momento atual, essas formas parecem estar faltando. De repente, nossos esquemas narrativos, nossos pacotes de afetos, nossas formas simbólicas parecem se dissolver. Quem, há poucas semanas atrás, poderia imaginar esse cenário?"
Mas, diz ele, "e aí está o mais interessante", esse "muito novo" é ao mesmo tempo "muito conhecido, muito familiar, muito próximo": o desamparo, o despreparo para a morte. Todos já vivemos coisas assim, "uma espécie de medo que não é exatamente medo, de angústia que não é exatamente angústia".
"Freud chamava isso de um sentimento 'unheimlich', ou 'infamiliar', algo que deveria ficar oculto, mas que veio à tona, que parece muito próximo e muito distante, muito estranho e muito familiar", explica Iannini.
"Para simplificar: uma sensação de não se sentir em casa, mesmo estando em casa. Quando as fronteiras entre o real e a ficção são suspensas, prevalece o infamiliar. Parece que estamos vivendo algo desse tipo. Não sabemos distinguir claramente o que é real e o que não é. As fake news e a instrumentalização perversa das ficções estão aí para nos lembrar disso", conclui.