Como viver uma boa vida em um mundo imprevisível? Como fazer o melhor dentro das nossas possibilidades aceitando, ao mesmo tempo, o que está fora do nosso controle?
Estes são alguns dos desafios com os quais o neurologista Fábio Porto se deparou.
"Tive momentos muito duros na minha vida pessoal e profissional e comecei a me interessar por uma forma de tentar estar mais imune às intempéries externas, à opinião do outro, às coisas que fogem ao meu controle."
As perguntas que abrem este texto são também questões centrais do estoicismo, filosofia que floresceu na Grécia e Roma Antigas e que tem como expoentes figuras como o intelectual e estadista Sêneca, o ex-escravo Epicteto e o imperador romano Marco Aurélio.
O estoicismo pregava o valor da razão, propunha que emoções destrutivas eram resultado de erros na nossa forma de ver o mundo e oferecia um guia prático para nos mantermos resolutos e fortes.
E é nos ensinamentos estoicos que muitos, entre eles Porto, buscam hoje a resiliência necessária para o enfrentamento dos imensos desafios do nosso tempo.
Fábio Porto é especialista no tratamento de demência, nome dado a um conjunto de doenças cerebrais em que há uma perda ou redução gradual da capacidade cognitiva e função cerebral da pessoa.
Ele é professor da Universidade São Camilo, em São Paulo, e presidente da regional paulista da ABRAZ, Associação Brasileira de Alzheimer e Outras Demências.
À BBC News Brasil, Porto conta como vem usando os preceitos estoicos para dar conforto também a pacientes com demência e seus familiares.
O primeiro contato dele com o estoicismo aconteceu por meio da Terapia Cognitivo Comportamental (TCC), um tipo de psicoterapia que ele procurou como paciente e que é fortemente influenciada pelo estoicismo.
"O princípio básico da TCC é que temos ideias fixas, distorções cognitivas. Essas distorções acarretam emoções, e essas emoções às vezes são negativas."
"Essas emoções vêm de uma opinião. E já te adianto a minha frase preferida, que é do Epicteto: 'Não são as coisas que perturbam as pessoas, mas os pareceres a respeito das coisas'."
Epicteto viveu a maior parte de sua vida como escravo em Roma no século 1º. Seus ensinamentos foram transcritos por um aluno e estão disponíveis em alguns poucos livros. O mais famoso, conhecido hoje como o Manual de Epicteto, contém a frase citada por Porto.
Com essa afirmação, o filósofo está dizendo que são nossas opiniões sobre as coisas que vão determinar se vamos ou não ficar incomodados a respeito delas, diz Porto.
"Como sou o mesmo Fábio, como pessoa e como médico, naturalmente comecei a tentar passar alguns preceitos para os pacientes e para as famílias, exatamente para amenizar o sofrimento que é muito grande na área em que eu trabalho."
Porto nos conta como conforta um paciente que acabou de receber um diagnóstico de demência.
'Fora de controle'
"Um conselho que sempre dou para todo mundo é entender para aceitar. Entender que demência não é loucura ou insanidade. Entender o que a doença causa. Se você não entende uma coisa, como vai aceitá-la emocionalmente?"
"A partir do momento em que você entende — olha, não está no seu controle, você está esquecendo, não é sua culpa, não é falta de esforço, de atenção, não é que você está fazendo errado - fica um pouco mais fácil conviver com a doença", diz Porto.
O médico repete a pergunta que, muito provavelmente, já ouviu da boca de muitos pacientes: é possível viver bem com perda de memória?
"É possível", responde. "Muita gente consegue viver uma vida feliz, uma vida com significado, uma vida que tenha prazer."
O grande problema, ele prossegue, é o que ele chama de impressões: "Tem gente que fala, 'ah, se eu não conseguir dirigir, minha vida acabou'. Olha que distorção cognitiva essa? Quer dizer que a sua vida só é válida se você conseguir dirigir?"
"Dirigir é uma coisa externa. Você pode ter várias doenças que te impedem de dirigir. Você vai atrelar sua felicidade, seu valor, a uma coisa externa?", questiona o médico.
Ele continua:
"Essa ideia de que as coisas acontecem fora do nosso controle ameniza (o problema), a pessoa consegue aceitar melhor. Aceitar não é racional, também é emocional, e aí a pessoa sofre menos."
E de que forma essa ideia de abrir mão do controle se relaciona com os princípios do estoicismo?
Porto diz que um grande princípio do estoicismo é separarmos coisas que estão no nosso controle e coisas que não estão.
"O que está no seu controle, basicamente, são seus pensamentos, seus comportamentos. Existem quatro virtudes estoicas. Sabedoria, justiça, coragem e temperança. Se você vive essas quatro, você tem uma vida baseada em bons preceitos, em virtudes."
Agora, algumas coisas são fora do controle, prossegue o médico. "A filosofia diz: fama, dinheiro, saúde, status, tudo isso é fora do seu controle."
"Você quer ser rico, ter saúde e prosperidade. Mas se acontecer de você perder uma dessas coisas, sua vida não acabou."
Ou seja, diz Porto, a ideia é você não atribuir um valor excessivo às coisas que você não pode controlar. "Marco Aurélio dizia: um problema é uma oportunidade para você exercer as quatro virtudes, para você exercer a resiliência."
O general e imperador romano Marco Aurélio viveu no século 2º. Muito influenciado por Epicteto, praticava o estoicismo como forma de viver uma vida virtuosa. Liderava suas tropas durante o dia e, à noite, em sua tenda, escrevia suas meditações, exercícios em automelhoria.
Mas quando estamos falando de demência, uma doença degenerativa e incurável em que o paciente gradualmente perde sua memória e, junto com ela, sua identidade. Como praticar as virtudes estoicas quando estamos perdendo nossa memória?
"Na fase leve das demências, apesar de existir déficit cognitivo, é possível você manter a sua personalidade, manter alguns preceitos, e até aprender alguns novos", responde Porto.
Nessa fase, o paciente ainda é capaz de reconhecer as pessoas e consegue fazer atividades básicas como tomar banho, comer, se vestir e escolher a roupa, explica o médico.
A pessoa começa a ter dificuldade com tarefas complexas, como trabalhar, cuidar das finanças, planejar um jantar, uma viagem.
Ainda assim, nessa fase "é possível haver intervenções baseadas em pensamento, em conceitos mentais. Tanto que a psicoterapia é indicada."
"Pode ser TCC, pode ser psicanálise. TCC é a que eu mais gosto porque tem a ver com o estoicismo."
'Viva o presente'
Segundo Porto, na TCC o terapeuta ajuda o paciente a perceber que muitas vezes ele sofre mais pela imaginação do que pela realidade.
"Nossos pensamentos causam muito sofrimento para nós. Vai chegar um dia em que vou precisar ter um cuidador, vou precisar tomar remédio para agitação, vou precisar mudar minha dieta para uma dieta pastosa. A pessoa sofre de forma antecipada. E esse sofrimento, se você for ver, não é muito lógico, porque agora você não está sofrendo. Sobre o futuro, você não tem controle. Por que você vai sofrer antes da hora, então?"
Até porque, explica Porto, a fase leve da demência pode durar um bom tempo — até cinco anos.
Aqui, o médico cita outro dos grandes filósofos estoicos, Sêneca, que nasceu em Córdoba (hoje Espanha) no ano 4 a.C e foi uma das figuras mais influentes, inclusive politicamente, da Roma imperial no século 1º.
"Sêneca foi acusado de tramar a morte de Nero. Ele foi tutor de Nero na infância, e Nero condenou Sêneca a cometer suicídio."
O médico recria um diálogo que teria acontecido entre o filósofo e um aluno: "Sêneca tinha uma data futura para cometer suicídio, então, um aluno perguntou a ele: você não está desesperado? Ele respondeu: não. Vou sofrer no futuro, mas agora não estou sofrendo. Estou com fome, vou comer."
Impossível distinguirmos fato e lenda em histórias como essa. Segundo relatos, o filósofo teria enfrentado a morte de forma corajosa, mas Porto admite que é difícil imaginar como uma pessoa pode sentir apetite sabendo que terá de cometer suicídio dali a alguns dias.
Para o médico, no entanto, é fundamental que o paciente com demência tente romper o ciclo de sofrimento antecipatório para viver o aqui e o agora.
"É muito difícil termos esse grau de desapego, mas [com] um pouco mais de desapego, um ganho pequeno nesse tipo de questão causa uma redução no sofrimento."
Filhos de pacientes com demência
E os filhos dos pacientes? Porto fala um pouco sobre sua experiência atendendo filhos e outros familiares de pessoas que têm demência. Ele diz que vê vários modos de enfrentamento.
"Vejo pessoas me procurando, querendo levar [o pai ou a mãe] para fazer tratamentos novos nos Estados Unidos, gastando, numa agonia. Perdem a oportunidade de gastar o dinheiro com o que faz diferença, aproveitar o tempo de qualidade com o pai, com a mãe."
Porto diz que a mesma aceitação que existe para o paciente deve existir para o familiar.
"Aceitar as coisas como elas são e tirar o melhor disso. O estoicismo fala muito da harmonia com a natureza. Isso significa aceitar o destino. Aceitar o que não está no nosso controle. E querer que as coisas sejam como são, não como gostaríamos que fossem."
Indo um pouco mais fundo nesse conceito: para um estoico, estar em harmonia com a natureza significava viver em harmonia consigo próprio, com a humanidade e com o Universo. O Universo era governado pela razão - ou logos - um princípio divino que permeava tudo. Portanto, viver em harmonia com a natureza (e por conseguinte, com o Universo) significava viver em harmonia com Deus.
Críticos do estoicismo questionam se, ao propor a aceitação das coisas como são, a filosofia não estaria gerando pessoas apáticas e conformistas.
Aqui, Porto faz uma ressalva: "Temos de ter cuidado para não achar que o estoicismo prega abandonar tudo. Ele prega distinguir o que é controlável e o que não é controlável."
Isso, diz o médico, é difícil de fazer. "Essa diferenciação exige técnica, treino e meditação."
"O grande drama que os familiares têm é: eu não fiz todo o suficiente. E isso causa uma grande inquietação na alma das pessoas, elas querem fazer mais, fazer coisas que às vezes causam mal."
A BBC News Brasil ouviu depoimentos de familiares que veem na demência uma oportunidade para um recomeço, uma renovação no relacionamento com um pai ou uma mãe.
Porto diz que casos assim são raros.
"Dos casos que vi em que havia conflito entre filhos e pacientes, não é a maioria que consegue perdoar e esquecer o passado. Mas algumas pessoas, sim."
"E não é uma conduta virtuosa?", reflete o médico. "Você não está sendo sábio, justo, tendo coragem e tendo temperança para fazer isso?"
Na opinião do médico, as pessoas que fazem isso aceitam o destino.
"Meu pai, minha mãe, não vão durar para sempre e daqui a pouco não vão estar saudáveis cognitivamente para conseguirmos reatar relações. Agora é a hora."
Demência em fase final
No estágio final da demência, o paciente já não precisará buscar conforto no estoicismo. Os familiares, sim, diz Porto.
"Na fase avançada, o paciente está com a cognição bastante comprometida e a própria doença ameniza seu sofrimento psíquico."
"A família sofre muito. E aí, um ponto onde a filosofia estoica pode ajudar é justamente esse: a morte é natural. Ficar atrapalhando a morte prolonga o sofrimento das pessoas."
O médico pergunta: "Você viver seis meses acamado, com traqueostomia, sofrendo — vale a pena estar vivo?"
Fábio Porto enfatiza que não está advogando a eutanásia. "Eutanásia é um crime. Pelo menos aqui no Brasil, não existe eutanásia. Agora, distanásia é uma coisa ruim. Distanásia é você prolongar a vida, ou o tempo de vida, às custas de sofrimento. É você atrapalhar uma morte natural, inevitável, de maneira invasiva quando o resultado não é uma qualidade de vida para a pessoa. Isso acontece muito com demência."
"Tem médico que não concordaria comigo, mas aceitar que as coisas têm um desfecho natural ajuda muito as pessoas a não tomarem decisões não sábias."
Para ele o problema é querermos travar batalhas impossíveis.
"O segredo para sermos invencíveis é escolhermos batalhas que sabemos que podemos ganhar", diz Porto, em referência a uma frase estoica.
O médico conclui: "Em demência, a batalha que você pode ganhar é a pessoa não ter dor, viver uma vida digna, ter suas escolhas respeitadas."
Esta reportagem contém informações do programa The Forum "Calm in the Chaos - The Story of the Stoics", transmitido pelo BBC World Service em 01/11/2018