Marte não é apenas o planeta vermelho. Ele é também um planeta úmido.
Em 12 de agosto, pesquisadores norte-americanos divulgaram evidências de um vasto reservatório de água líquida, nas profundezas da crosta rochosa do planeta.
Os dados são do robô Mars Insight Lander, da Nasa. Ele registrou mais de 1,3 mil terremotos em Marte nos últimos quatro anos.
Liderados pelo geofísico Vashan Wright, do Instituto de Oceanografia Scripps da Universidade da Califórnia em San Diego, nos Estados Unidos, os pesquisadores estudaram as ondas sísmicas que atingiram o robô. Eles concluíram que elas haviam atravessado camadas de rocha úmida.
Apesar do deserto estéril da superfície de Marte, os dados de Wright sugerem que existem volumes de água consideráveis, presos nas rochas entre 11,5 e 20 km de profundidade no planeta.
"Se eles estiverem certos, acho que esta é uma reviravolta", declarou a microbióloga do subsolo Karen Lloyd, da Universidade do Sul da Califórnia em Los Angeles, nos Estados Unidos.
A água subterrânea em Marte abre a possibilidade de existência de vida nas profundezas do planeta vermelho.
As últimas décadas revelaram uma enorme biosfera escondida nas profundezas da Terra. Agora, parece que o mesmo pode existir em Marte.
A vida marciana, se existir, pode muito bem ser subterrânea.
Biosfera profunda
Por mais de 30 anos, os biólogos acumularam evidências de que a vida resiste às profundezas da Terra. Pesquisadores fizeram perfurações profundas no leito do oceano e nos continentes. Eles encontraram vida em sedimentos enterrados e até mesmo entre camadas e cristais de rocha sólida.
A maior parte desses habitantes da escuridão é formada por micro-organismos unicelulares, especificamente bactérias e Archaea.
Estes imensos grupos são as formas de vida mais antigas conhecidas na Terra. Eles existem há mais de três bilhões de anos - desde muito antes das primeiras plantas e animais.
Nos últimos 20 anos, também descobrimos que a biosfera profunda é muito diversa.
"Existem, na verdade, muitos tipos diferentes de organismos que vivem nas profundezas do subterrâneo", afirma a geobióloga Cara Magnabosco, do Instituto Federal de Tecnologia (ETH) de Zurique, na Suíça.
As bactérias são divididas em grandes grupos chamados filos. Apenas algumas dezenas desses grupos já foram formalmente identificadas, mas se estima que haja 1,3 mil filos.
"Muitos desses filos podem ser encontrados embaixo da terra", segundo Magnabosco. Mas eles não são distribuídos regularmente.
Uma meta-análise de 2023 concluiu que a maioria dos ecossistemas subterrâneos é dominada por dois filos: Pseudomonadota e Firmicutes. Os outros tipos de bactérias são muito mais raros, mas incluem filos que nunca haviam sido observados antes.
Como o ambiente subterrâneo é escuro como breu, esses micróbios não conseguem energia diretamente da luz do Sol, como fazem os organismos fotossintéticos na superfície.
"O que realmente importa observar é que eles praticamente não dependem do Sol", afirma Lloyd.
Os micróbios subterrâneos também não recebem insumos como nutrientes vindos de cima. Muitos ecossistemas profundos são "totalmente desconectados da superfície", segundo Magnabosco.
Estes ecossistemas são baseados na quimiossíntese. Os micróbios conseguem sua energia realizando reações químicas, que absorvem substâncias das rochas e da água à sua volta. Eles podem, por exemplo, usar gases como metano ou sulfeto de hidrogênio como fonte de material.
"O ambiente subterrâneo traz muitas, muitas reações químicas diferentes", explica Lloyd. "Muitos de nós passamos muito tempo encontrando novas reações que sustentam a vida."
Os micróbios biossintéticos podem parecer alienígenas. Eles são raros nas regiões ensolaradas da superfície onde vivemos e ficam confinados às profundezas dos oceanos e às rochas subterrâneas.
Mas eles são alguns dos organismos vivos mais antigos da Terra. E algumas hipóteses sobre a origem da vida presumem que as primeiras formas de vida do planeta tenham sido quimiossintéticas.
Os micróbios unicelulares podem dominar o mundo subterrâneo, mas também existem alguns raros animais.
Um estudo de 2011 identificou vermes nematoides em água de fraturamento hidráulico de 0,9 a 3,6 km de profundidade em minas da África do Sul. A água parece ter ficado lá por pelo menos 3 mil anos, o que indica que a população de nematoides pode ter se formado há milênios.
Um estudo posterior, de 2015, encontrou platelmintos, anelídeos, rotíferos e artrópodes em água de fissuras a 1,4 km de profundidade. Os animais se alimentavam de uma fina camada de micróbios sobre a superfície da rocha. Ali, a água tinha até 12,3 mil anos de idade.
Para nós, as profundezas do subterrâneo parecem um lugar extremamente desafiador para se viver. Em comparação com a superfície, as populações microbianas são escassas, mas existem muitas rochas que podem abrigar a vida.
Em 2018, Magnabosco e seus colegas calcularam a escala da biomassa que vive sob os continentes, combinando dados de números e diversidade das células em locais de perfuração em todo o mundo. Eles estimaram que existem de 2 a 6 x 10^29 células vivendo embaixo dos continentes da Terra.
Em termos de comparação, existem cerca de 10^24 estrelas no universo observável.
"Temos um número imensamente grande de células embaixo dos nossos pés", segundo Magnabosco. De fato, ela afirma que cerca de 70% de todas as bactérias e Archaea da Terra vivem no subterrâneo.
Mas ainda não sabemos ao certo até qual profundidade se estende a biosfera. Acredita-se que a vida tenha um limite superior de temperatura, mas não sabemos exatamente qual é.
Nada consegue viver na superfície de lava fundida, mas alguns micróbios podem suportar temperaturas surpreendentes. Uma espécie de Archaea chamada Methanopyrus kandleri, por exemplo, pode sobreviver e se reproduzir a 122 °C.
À medida que avançamos na profundidade, a pressão também passa a ser um problema. E o tipo de rocha também é importante, pois ele afeta as reações químicas que podem ocorrer e, portanto, os tipos de micróbios biossintéticos que podem viver por ali.
"Mas eu não posso dar um número [que indique até qual profundidade pode existir vida] porque ainda não o atingimos, porque simplesmente não perfuramos até essa profundidade", explica Lloyd.
E a profundidade limite pode ser surpreendente. Um estudo de 2017 analisou amostras de um vulcão de lama e indicou que pode existir vida a 10 km abaixo do leito do oceano.
Parte desta vida é extremamente lenta. "Certamente, existem grandes partes do subsolo, principalmente embaixo dos nossos oceanos, onde realmente nada acontece por milhões de anos", segundo Lloyd.
Sem novos nutrientes vindo de cima e sem forma de escapar, os micróbios nessas regiões têm muito pouco alimento. "Isso significa que eles simplesmente não têm a energia necessária para produzir novas células", explica ela.
Por isso, os micróbios reduzem a velocidade do seu metabolismo e ficam quase em estase. "Na verdade, é bastante razoável que uma única célula possa viver por milhares de anos ou mais."
E é plausível que este tipo de vida - que depende de reações químicas entre as rochas e a água, possivelmente com uma velocidade metabólica extremamente lenta - possa ser encontrado nas rochas ricas em água, existentes no subsolo de Marte.
Micróbios marcianos
Até o momento, mesmo depois de décadas de missões não tripuladas para o planeta vermelho, não existem evidências sólidas ou diretas da vida em Marte.
A superfície do planeta é seca e fria e nenhuma câmera flagrou nenhum organismo vivo vagando por ela.
Mas locais como cânions oferecem fortes indicações de que Marte já teve água corrente sobre a superfície, bilhões de anos atrás. Parte dessa água provavelmente se perdeu no espaço, mas a equipe de Wright concluiu que boa parte dela está no subterrâneo.
"Sabemos que a água é um requisito fundamental para a vida como a conhecemos", destaca Karen Lloyd. Por isso, talvez a superfície de Marte já tenha sido habitável, mas agora, resta somente o subsolo. "Sempre preferi a noção de que a vida estaria enterrada de alguma forma."
Como os lentos micróbios que vivem nas profundezas, embaixo dos oceanos da Terra, os micróbios marcianos podem se agarrar à vida, mesmo com poucos nutrientes.
"O mesmo tipo de processo que acontece no nosso subterrâneo pode acontecer em Marte", destaca Magnabosco.
A evidência mais sugestiva de vida encontrada até hoje em Marte são as plumas de metano no ar do planeta, que variam conforme as estações.
Na Terra, o metano é frequentemente produzido por micro-organismos, de forma que o gás poderia ser um subproduto da vida subterrânea.
Mas Lloyd recomenda cautela. "Existem muitos fatores não relacionados à vida que poderiam gerar plumas de metano", explica ela.
Existem também muitos outros obstáculos para a vida no subsolo de Marte.
"A vida não precisa apenas de água", explica Lloyd. "Ela precisa de energia e de um lugar para ficar - ou seja, ela precisa de um habitat."
Ainda não sabemos se os poros das rochas marcianas são suficientemente grandes para os micróbios. E, da mesma forma, a composição química das rochas profundas é fundamental, pois elas seriam a fonte da energia química.
Para Magnabosco, a "maior incerteza" sobre a vida em Marte é "se ela surgiu ou não". E, como não sabemos como os primeiros seres vivos se formaram a partir do material inanimado, também não sabemos se as condições em Marte, em algum dia, foram adequadas para o surgimento da vida.
"Se a vida tiver conseguido se desenvolver em Marte", explica ela, "existe uma chance muito grande de que ela ainda sobreviva e permaneça no planeta até hoje."
E, se essa biosfera profunda de Marte realmente existir, como poderemos encontrá-la?
A ideia mais óbvia é perfurar o planeta, mas precisaríamos chegar a 10 km de profundidade ou mais - uma tarefa difícil, mesmo na Terra. Como fazer isso em um planeta sem ar para respirar, nem água corrente?
Para Cara Magnabosco, "é muito, muito mais difícil". Mas deve ser possível estabelecer evidências que sustentem a existência de vida.
A missão Mars Sample Return, planejada pela Nasa, pretende trazer rochas marcianas para a Terra. E estas amostras poderão conter traços de vida.
"Seria muito útil seguir o metano", acrescenta Lloyd. Atualmente, não sabemos de onde vem esse gás. "Se concluirmos que os bolsões de água são associados às plumas de metano", esta seria uma indicação de vida, segundo ela.
Por fim, se Marte realmente tiver água no subsolo, poderíamos fazer uso dela. Na Terra, por exemplo, as fontes termais trazem água das profundezas para a superfície.
"Marte tem vulcões de lama", explica Lloyd. "É possível visitar lugares em Marte, onde realmente temos amostras do subsolo que foram retiradas e trazidas para a superfície."
Podemos ainda precisar de décadas para ter uma resposta definitiva. E podemos nos decepcionar com essa resposta.
Marte é muito menos ativo que a Terra, tectônica e hidrologicamente falando. Esta condição indica que a vida no planeta vermelho é escassa ou inexistente.
"Podemos estar procurando vida que não vive mais há muito tempo", explica Lloyd. E, neste caso, tudo o que poderemos encontrar são evidências fósseis, não organismos vivos.
"De qualquer forma, seria vida em Marte."
* Michael Marshall é jornalista freelancer especializado em ciências e meio ambiente. Ele é o autor do livro "A Busca da Gênese: os gênios e excêntricos em uma jornada para descobrir as origens da vida na Terra" (em inglês).
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Innovation.