A anunciada cura funcional de um bebê infectado com o vírus do HIV foi recebida com cautela por médicos da área. A falta de detalhes sobre o estudo - que ainda não foi publicado em uma revista científica - e a possibilidade de que a criança não tenha sido infectada no nascimento ou não desenvolvesse o vírus da aids durante seu crescimento são alguns dos pontos destacados por especialistas ouvidos pelo Terra. Se os resultados da pesquisa forem confirmados, no entanto, a descoberta pode significar uma mudança radical no tratamento infantil da doença e reduzir drasticamente o número de pacientes com HIV.
A equipe médica responsável garante que essa é a primeira vez que um bebê infectado no nascimento foi curado somente através do uso de medicamentos. Natural do Estado americano do Mississippi, a criança, hoje com 2 anos, está há um ano sem tomar medicamentos e não apresenta qualquer sintoma visível do HIV, de acordo com pesquisadores do Centro da Criança Johns Hopkins, da Universidade de Massachusetts e da Universidade do Mississippi, que apresentaram o caso ontem, durante uma conferência em Atlanta, nos Estados Unidos.
"Não temos detalhes sobre o estudo. Temos que saber se realmente a criança estava infectada, se havia presença ou não de reservatórios (do vírus). Mesmo se for confirmada infecção, o vírus pode não ter sido estabelecido ainda na criança", afirmou o infectologista e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Luciano Goldani.
A precaução é corroborada pela médica do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) Heloisa Helena de Sousa Marques. "Não temos todos os dados necessários para fazer uma análise mais correta e detalhada sobre o assunto. Não sabemos quais foram as drogas utilizadas, se a mãe de fato estava infectada, se o tratamento foi mesmo responsável por essa 'cura funcional' do bebê", disse ela.
A cura funcional significa que uma pessoa portadora do HIV, após receber o tratamento por um tempo e suspendê-lo em seguida, permanece com a infecção estagnada e não evolui para aids mesmo que não volte a tomar os medicamentos. "Na atualidade, um portador do HIV em tratamento que deixa de tomar os medicamentos sofre recaída no sentido de que o vírus volta a se replicar no organismo e, se a pessoa não começar a tomar os medicamentos novamente, continuará a evoluir em direção à aids", informou Bernardino Geraldo Alves Souto, infectologista e coordenador do curso de medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
Tratamento: o que muda
A mãe da criança cuja cura funcional foi anunciada ontem não sabia que era portadora do HIV. Moradora de uma zona rural, ela deu à luz prematuramente em 2010. Ela só soube que estava infectada depois de ter sido examinada após o parto. Quando a aids foi detectada na mãe, o recém-nascido foi transferido para o Centro Médico da Universidade do Mississippi onde, com pouco mais de um dia de vida, o bebê recebeu três drogas utilizadas no tratamento da aids em adultos - e não os medicamentos geralmente aplicados para prevenir o desenvolvimento do vírus.
"Se for confirmado, (esse estudo) muda completamente a rotina do tratamento de crianças, principalmente daquelas com mães que não se tratam", disse o infectologista Luciano Goldani. "As crianças vão ser tratadas mais agressivamente. Não será mais realizado trabalho de prevenção, mas logo o tratamento."
O trabalho de prevenção - chamado de profilaxia - diminui muito a incidência do vírus causador da aids em bebês cujas mães foram infectadas. De acordo com Goldani, há menos de 1% de chance de a criança nascer com HIV se a gestante tomar o coquetel de remédios recomendado. Essa incidência sobe para cerca de 33% quando a mãe não faz tratamento contra a infecção - como é o caso apresentado ontem.
As novidades no tratamento, porém, não deve ser adotadas como padrão a curto prazo. Reiterando que o caso ainda precisa ser bem confirmado e alvo de mais pesquisas, Goldani acredita que a aplicação de remédios antirretrovirais logo após o nascimento "não deve ser adotada em breve". "Temos que ter muito cuidado em um caso isolado como esse, com toda a mídia em volta." Se a cura for comprovada, o tratamento de recém-nascidos infectados deve mudar, levando à redução do número de crianças vivendo com HIV em todo o mundo.
Riscos
Não seria arriscado reproduzir em recém-nascidos o mesmo tratamento feito em adultos portadores do vírus? Nesse ponto, os especialistas divergem. Ainda não há estudos que analisem os resultados de uma aplicação tão prematura de remédios antirretrovirais em crianças. Se, por um lado, as drogas são as mesmas já testadas em pacientes mais velhos - e têm permissão para serem adotadas nos jovens -, por outro, a falta de pesquisa específica sobre o assunto justifica cautela.
"Tem que ser visto se o tratamento não é arriscado", afirmou Luciano Goldani. "Se representa mesmo a cura, então vale a pena, porque significa mais qualidade de vida para uma criança que viveria com o vírus pelo resto da vida", disse o infectologista. Já a médica Heloisa Marques descarta a existência de riscos. "Não é arriscado: essas drogas já estão liberadas para crianças".
O recém-nascido de Mississippi recebeu uma terapia antirretroviral nas primeiras 30 horas de vida. Os pesquisadores afirmam que a pronta administração dos medicamentos pode ter levado à cura do bebê por ter impedido a formação de "reservas" do vírus - células dormentes responsáveis por reiniciar uma infecção de HIV semanas após a interrupção da terapia tradicional com o coquetel.
Precaução
A esperança de cura do vírus da aids em recém-nascidos, porém, não deve alterar o tratamento de adultos infectados. O caso apresentado nos Estados Unidos foi bastante específico: um bebê infectado pela mãe, que não sabia da existência da doença e não tomou o coquetel de remédios recomendado. Segundo especialistas, ainda é cedo para comemorar a cura da aids.
"Estamos a caminho de alguma possibilidade nesse sentido (de cura da aids), mas ainda não dá para dizer que estamos próximos desse destino. Falta muito conhecimento e desenvolvimento tecnológico a ser produzido para o objetivo da cura ou da imunização contra o HIV", afirmou o infectologista Bernardino Souto.