Grupos de risco concentram epidemia de aids e impedem mais avanços

Mortes e contaminações estão em queda devido a avanços importantes no desenvolvimento de exames e medicamentos que controlem a doença

4 nov 2013 - 11h41
(atualizado às 11h50)

A epidemia de HIV está se concentrando em grupos marginalizados, como profissionais do sexo, usuários de drogas e homens homossexuais, o que pode complicar os esforços globais contra a aids, segundo um especialista da ONU.

Michel Kazatchkine, enviado especial da ONU para HIV/aids no Leste Europeu, disse que o avanço das infecções entre populações difíceis de abordar impede que se comemore sem restrições o vasto progresso do mundo contra a doença na última década.

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O risco, diz ele, é que a aids volte a ser uma doença associada a "grupos de risco", como já aconteceu nas décadas de 1980 e 1990, e que não haja vontade política suficiente para reverter isso.

"Se não tratarmos das raízes do problema, se não tratarmos do estigma, da discriminação e da legislação inadequada, se não olharmos para essa gente do ponto de vista da saúde pública, e não de um ponto de vista criminal, delinquente, como fazemos agora, então essa tendência permanecerá", afirmou ele em entrevista. "Então a epidemia de aids vai se tornar cada vez mais a soma dessas epidemias concentradas."

Cerca de 35,3 milhões de pessoas no mundo são portadoras do vírus da imunodeficiência humana (HIV), mas esse número expressivo na verdade reflete avanços importantes relacionados ao desenvolvimento de exames e medicamentos que controlem a doença, ainda incurável.

Já o número de mortes está caindo, tendo ficado em 1,6 milhão em 2012, depois de atingir o auge de 2,3 milhões em 2005. O número de novas contaminações também diminuiu um terço nos últimos dois anos.

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Kazatchkine considera esses progressos "extraordinários", mas disse estar "realmente preocupado com o futuro da epidemia de aids, especialmente em uma época em que estamos talvez um pouco otimistas demais por causa do enorme progresso que estamos obtendo do ponto de vista tecnológico e científico".

"Devemos estar conscientes de que não vamos conter o HIV e a aids apenas tendo drogas mais sofisticadas e apenas focando na epidemia generalizada, e não focando o suficiente nas complexidades das epidemias concentradas."

Os grupos de risco estão bem definidos: usuários de drogas injetáveis, que disseminam o vírus por agulhas e seringas contaminadas; prostitutas e outros trabalhadores do sexo, que costumam ser criminalizados e terem pouco acesso aos serviços de saúde; e homens homo e bissexuais, população na qual a epidemia da aids surgiu, há cerca de 30 anos.

Duas histórias

Para ilustrar como pouca coisa mudou na batalha contra o HIV entre usuários de drogas injetáveis, particularmente em regiões como o Leste Europeu e a Ásia Central, Kazatchkine conta a história de duas mulheres.

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A primeira é Andrée, usuária que ele conheceu em 1986 em Paris, quando ainda não haviam surgido os tratamentos efetivos contra a aids. Essa mulher morreu solitária. O outro caso é o da russa Larissa, de Yekaterinburgo, que foi várias vezes presa por causa do uso de drogas, passou anos privada de medicamentos e chegou a ser condenada a cinco anos de trabalhos forçados.

"Essas histórias são notavelmente semelhantes", disse. "Mas Larissa não é de 1986, é deste ano. Cerca de 25 anos se passaram entre meus encontros com essas duas mulheres, mas seu drama era depressiva e tragicamente o mesmo."

Entre os homens gays, a situação é um pouco melhor, segundo Kazatchkine. Em países pobres e de média renda, homens que fazem sexo com homens e com prostitutas têm uma chance 19 e 13 vezes maior de terem o HIV, respectivamente, do que o restante da população.

Mesmo em regiões ricas, como a Europa Ocidental e a América do Norte, a incidência do HIV entre homens que mantêm relações com outros homens se mantém teimosamente estável, ou tem até mesmo crescido.

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"E isso, pelo menos na Europa Ocidental, no contexto de terapias e serviços (médicos) basicamente gratuitos e de fácil acesso", observou o representante da ONU.

Já em lugares como a China os homens homossexuais respondem por mais de um terço das novas contaminações pelo vírus, e as projeções indicam até 2020 que os gays poderão representar mais de metade das novas infecções.

Kazatchkine admite estar tão frustrado e preocupado com a atual permanência da epidemia, ainda que de forma mais concentrada, do que estava há uma década, quando o surto generalizado na África parecia impossível de ser contido.

"Estamos um pouco desordenados. Não sabemos ao certo o que deveríamos fazer. Aqui estamos, temos toda a tecnologia, temos um progresso científico extraordinário, e simplesmente não podemos traduzir isso em uma diferença para essas populações."

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Se nada mudar, o vírus da aids poderá jamais ser derrotado.

Kazatchkine defendeu uma "mudança na mentalidade coletiva" para colocar a igualdade e os direitos humanos no centro da luta contra o HIV nesses grupos. "Se não realizarmos a resposta correta, não vamos conseguir acabar com a aids", afirmou ele.

Foto: AFP
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