Nos últimos seis anos, o FSB — serviço de inteligência da Rússia, sucessor da antiga KGB — acusou dezenas de físicos do país de traição. Eles estão presos desde 2018, quando o presidente russo, Vladimir Putin, começou a falar publicamente sobre a produção de novos mísseis hipersônicos no país.
Os físicos são acusados de transferir informações secretas sobre armas para o exterior. Mas colegas dos cientistas dizem que eles não trabalhavam diretamente no desenvolvimento militar, e eram apenas teóricos.
A BBC analisou quais os segredos de Estado que o FSB está buscando nestes projetos internacionais — e conversou com familiares dos cientistas presos.
A 'arma na parede' hipersônica
"Criamos pela primeira vez sistemas de armas de ataque ofensivo que o mundo nunca viu antes", disse Putin em uma entrevista de 2020 à TASS, a agência de notícias estatal russa. "Agora os EUA estão tentando se recuperar. É uma situação única, nunca aconteceu antes. Em primeiro lugar, é claro, estou falando de sistemas de armas de ataque hipersônico."
O repórter fez uma piada em resposta, parafraseando Chekhov: "Sempre que uma arma hipersônica aparece pendurada na parede no primeiro ato de uma peça, ela será disparada no segundo".
Dois anos depois, a Rússia iniciou a guerra na Ucrânia e colocou em uso esses mísseis hipersônicos.
Putin falou pela primeira vez em 2005 sobre armas que "operariam em velocidade hipersônica". Em 2018, ele as revelou em seu discurso à Assembleia Federal. Foi apresentado aos parlamentares e VIPs um vídeo de simulação, em que esses mísseis foram simulados em voo em direção aos EUA.
"Eles serão virtualmente invulneráveis, e a velocidade será hipersônica. Será como um meteorito", declarou.
O novo silo e o sistema de mísseis estratégicos baseados em terra foram denominados 'Avangard', e o sistema de aviação foi denominado 'Kinzhal' ou 'Dagger'. Putin encerrou seu discurso com uma ameaça ao Ocidente: "Ninguém nos ouviu. Ouçam agora!"
Ele também agradeceu aos desenvolvedores de armas: "Eles são realmente todos os heróis do nosso tempo".
Putin mencionou armas hipersônicas em discursos pelo menos 70 vezes desde então. No mesmo período, desde 2018, 12 cientistas russos associados ao trabalho hipersônico estão atrás das grades. Todos eles são acusados de traição.
Vários foram presos ao mesmo tempo pelo FSB no Instituto Central de Pesquisa de Construção de Máquinas (TsNIIMash) e no Instituto Aerohidrodinâmico Central (TsAGI) nos subúrbios de Moscou, e também no Instituto de Mecânica Teórica e Aplicada (ITPM), que faz parte da filial da Sibéria da Academia Russa de Ciências em Novosibirsk.
Alexander Kuranov, um cientista de 76 anos que contribuiu para um projeto de avião hipersônico, recebeu uma sentença de sete anos de prisão em um julgamento a portas fechadas realizado em apenas duas sessões em 18 de abril de 2024. O FSB prendeu o cientista em agosto de 2021.
"Com esta abordagem, outras áreas da ciência também serão afetadas em breve", diz um colega de um dos cientistas detidos sob acusação de traição. "Por enquanto, eles escolheram uma das linhas de investigação mais 'frutíferas'. Mas eles realmente não entendem isso e confundem 'hipersônico' com algo completamente diferente."
"A hipersônica é um tema pelo qual agora somos obrigados a colocar pessoas na prisão", diz Yevgeny Smirnov, da organização jurídica e de direitos humanos First Division, que apoia pessoas que enfrentam acusações de espionagem.
O próprio Smirnov, antes de ser forçado a deixar a Rússia em 2021, costumava defender casos de traição em tribunal, incluindo de cientistas. Ele diz que em conversas privadas, os oficiais do FSB admitiam frequentemente que os casos sobre a venda de segredos hipersônicos no exterior foram abertos "para satisfazer os desejos dos superiores".
"Os documentos do caso afirmam que a Rússia possui tecnologias altamente avançadas no domínio do armamento hipersônico que não têm equivalente em qualquer outro lugar do mundo", diz Smirnov. "E supostamente oficiais de inteligência estrangeiros estão à caça deles."
Os investigadores, diz ele, não escondem que reportam a Putin todos os casos de traição que envolvem cientistas.
"Os físicos presos em Novosibirsk nunca tiveram nada a ver com 'Kinzhal'", diz Vladimir Lapygin, um ex-funcionário do TsNIIMash que foi condenado por traição e libertado no início de 2020. "Eles estavam envolvidos em pesquisas e desenvolvimento teórico. Todos que foram presos por conexão com armamento hipersônico estavam muito longe de tratar desse tema."
Yevgeny Smirnov também afirma que nenhum dos doze cientistas detidos nos últimos anos por revelarem "os segredos da arma hipersônica russa" tinha qualquer relação com o setor de defesa. Os cientistas envolvidos no "caso Novosibirsk" eram simplesmente especialistas na aerodinâmica dos fluxos hipersônicos.
"Os cientistas estudam processos físicos. Digamos que seja dado a eles um tema de pesquisa: como certos metais poderiam se deformar em velocidades hipersônicas, ou como seriam as zonas de turbulência. Não se trata de 'fazer um foguete', mas de estudar a física dos processos", explica Smirnov.
Depois que eles fazem alguma descoberta, qualquer pessoa pode fazer uso delas, diz ele: incluindo instituições militares envolvidas na fabricação de armas. Mas nos processos de traição, os réus estavam envolvidos em investigação primária e ciência fundamental, e não no desenvolvimento de armas.
Smirnov diz que o objetivo do FSB é provar que os espiões estrangeiros estão à caça dos segredos dos mísseis russos: "Para massagear o seu ego, mostrando que os mísseis russos são os melhores e que [agentes do exterior] estão tentando roubá-los."
Artigos com fórmulas científicas confiscados
Na primavera de 2023, quando um terceiro cientista do Instituto de Mecânica Teórica e Aplicada (ITPM, na sigla em inglês) foi preso sob acusação de traição, os pesquisadores do centro decidiram escrever uma carta aberta em seu apoio.
Foi só graças a esta carta que seu nome se tornou de conhecimento público: Valery Zvegintsev estava detido em prisão domiciliar, enquanto seus outros dois colegas do ITPM que trabalhavam com aerodinâmica, Anatoly Maslov e Alexander Shiplyuk, estavam em prisão preventiva desde o verão anterior.
"Sua experiência e reputação profissional teriam permitido que conseguissem empregos de prestígio e bem remunerados no exterior. Mas eles não deixaram a pátria. Eles dedicaram suas vidas à ciência russa", escreveram os autores na carta aberta.
Mas a carta não mencionava outro físico, detido por um tribunal em Novosibirsk no mesmo dia que Zvegintsev. Vladislav Galkin, um professor do departamento de petróleo e gás do Instituto Politécnico de Tomsk, também tinha sido preso sob acusação de traição.
Sua detenção foi noticiada pela primeira vez somente em meados de dezembro — embora ele estivesse atrás das grades desde 7 de abril. Galkin não trabalhava no ITPM, mas, assim como os outros três cientistas que haviam entrado no radar do FSB, trabalhava na área de tecnologia hipersônica.
"Homens armados usando máscaras pretas chegaram para revistar a casa às 4h da manhã", disse um parente próximo de Galkin, que pediu para permanecer anônimo por temer por sua segurança. "Eles vasculharam tudo o que puderam, e disseram que também levantariam as tábuas do chão, se estivessem procurando drogas. Todos os artigos que tinham fórmulas científicas foram confiscados, junto a uma montanha de arquivos."
As mesmas cenas foram presenciadas na casa de outro cientista, Vladimir Kudryavtsev, que foi preso sob acusação de traição em 2018. Ele morreu antes do seu caso ser levado a julgamento.
"Eles chegaram às 5h ou 6h da manhã", recorda sua viúva, Olga. "Foi engraçado: não temos nada a esconder. Eles levaram o computador, mas não havia mais nada. Eu tinha cartas, que havíamos escrito um para o outro quando éramos jovens, e um oficial do FSB passou muito tempo estudando-as cuidadosamente. Cheguei por trás dele, e perguntei: 'E aí, encontrou alguma coisa interessante?' Ele corou na hora."
Ela se lembra dos agentes de segurança perguntando "onde estavam escondidos o ouro e os diamantes". Eles até escavaram um monte de areia que estava na garagem.
Um dos parentes de Vladislav Galkin conta que, inicialmente, ele passou três meses em confinamento solitário em um centro de detenção provisória de Novosibirsk. O cientista de 68 anos foi então colocado em uma cela com outros quatro presos. Agora, ele está detido ao lado de dez companheiros de cela.
A esposa de Galkin, Tatyana, diz que o FSB a proibiu de comentar sobre o processo enquanto estiver em andamento. "Não vou arriscar, porque fazemos nossas orações todos os dias", afirma. "Não conheço a área de atuação dele. Não sou física por formação. Sou historiadora."
Até ser preso, ela conta que ele escrevia e reescrevia artigos constantemente.
"Ele terminava um, e logo algum outro pensamento surgia — 'E se eu tentar desta forma?' É assim que funciona a mente de um aficionado por tecnologia", diz ela.
E, quando ele não estava trabalhando, organizava competições de xadrez com os netos.
"Não sei jogar. Só damas", afirma Tatyana Galkina, que disse aos netos que o avô estava viajando a trabalho.
"Eles perguntam: 'Onde está o vovô, por que ele não voltou para casa?' E eu digo que é por causa da viagem."
Progressão criminal hipersônica
Galkin é autor de cerca de 100 artigos científicos, incluindo mais de uma dúzia publicados em revistas estrangeiras entre 2002 e 2021. Valery Zvegintsev foi coautor com Galkin em nove deles. Sua pesquisa mais recente foi sobre métodos numéricos em mecânica de fluidos, gases e plasma.
O arquivo online da Universidade Politécnica de Tomsk, onde Galkin trabalhou até recentemente, lista mais de 20 de seus trabalhos, incluindo aqueles que escreveu com Zvegintsev e com Alexander Shiplyuk, do ITPM.
Uma fonte do ITPM disse à agência de notícias estatal TASS que o processo contra Zvegintsev pode ter sido motivado por um artigo publicado em uma revista científica iraniana em 2021. Galkin também foi publicado pela revista. E tanto o seu trabalho quanto o de Zvegintsev foram impressos em inglês nos anais da Conferência Internacional sobre Métodos de Pesquisa Aerofísica, realizada anualmente em Novosibirsk desde 1996.
O evento está previsto para acontecer novamente neste ano.
"Vamos ver quantos participantes estrangeiros vão participar da conferência desta vez", comentaram os parentes de Shiplyuk, quando questionados sobre as perspectivas de cooperação internacional com o ITPM.
Os cientistas trabalharam juntos em estreita colaboração. Em 2001, Zvegintsev fundou e dirigiu o laboratório de Aerodinâmica de Fluidos em Alta Velocidade do instituto. Shiplyuk, que seria o futuro diretor do instituto, assumiu a liderança do laboratório em 2006. O departamento de aerodinâmica como um todo era supervisionado por Maslov, que foi vice-diretor do instituto por duas décadas.
"Alexander Nikolaevich [Shiplyuk] recebeu de forma muito dura a notícia da prisão de Maslov. Ele era seu professor favorito, orientador científico e chefe do seu laboratório mais estimado", disseram membros da família de Shiplyuk, em resposta a perguntas enviadas por escrito.
Mikhail, filho de Shiplyuk, é um estudante de pós-graduação que também trabalhou no ITPM — ele agora está em licença acadêmica. O filho de Maslov aparentemente também trabalhou no instituto, de acordo com sua lista de telefones, pelo menos até 2020.
Os três homens detidos estavam ligados não só pelo local de trabalho, mas também por sua participação no "FP7", Sétimo Programa de Estrutura para Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico da União Europeia, que financia pesquisa espacial. É gerido pelo Instituto von Karman de Dinâmica de Fluidos, com sede na Bélgica.
Além do ITPM, participaram do programa as outras duas organizações científicas mencionadas acima — TsAGI e TsNIImash. O FSB também fez uma visita a eles, e seis dos seus funcionários acabaram atrás das grades — mais uma vez, sob a acusação de traição.
Todos os físicos se conheciam. "Eu conhecia todos eles: Zvegintsev, Shiplyuk, Maslov", conta Vladimir Lapygin, o cientista do TsNIIMash que foi preso por traição e posteriormente libertado. A viúva de Kudryavtsev diz que o marido também era amigo de Maslov, do ITPM.
"Levaram os mais decentes, os que tinham melhor reputação em toda a história deste instituto", afirmou um funcionário do ITPM, sob condição de anonimato para sua segurança.
A família de Shiplyuk recebeu apoio do instituto, que arrecadou dinheiro para pagar os advogados. "No início, estávamos preocupados que os outros funcionários atravessassem a rua quando nos vissem. Mas isso não aconteceu até agora. Tem havido um interesse sincero e profundo no caso dele, que não diminuiu — nem sequer um ano e meio após sua prisão."
Eles dizem que, em uma carta que escreveu em janeiro, Shiplyuk contou ter recebido "tantas cartas e cartões postais de tanta gente diferente que não dava para mantê-los na cela, por causa das regras do serviço penitenciário estadual".
Muitas vezes, os acusados em processos de traição são interligados entre si pelo FSB, de acordo com a prática habitual dos investigadores. O jornalista Ivan Safronov, preso sob acusação de traição e condenado a 22 anos de prisão, explicou a razão — o agente do FSB precisa construir uma "progressão criminal" que garanta que o acusado não só confesse a sua culpa, mas também comprometa outros. Isso permite que os investigadores iniciem novos processos.
A viúva de Kudryavtsev lembra que os agentes responsáveis pela investigação ofereceram ao seu marido uma espécie de delação premiada, na qual ele admitiria sua culpa e também acusaria outra pessoa. Ele recusou o acordo.
Outros se declararam culpados, como Roman Kovalyov, discípulo de Kudryavtsev, que deu um depoimento ao FSB incriminando seu antigo mentor. Kuranov, condenado em 18 de abril de 2024 a sete anos de prisão por traição, também optou por colaborar. De acordo com o jornal Kommersant e uma fonte da BBC familiarizada com o processo, Kuranov testemunhou contra Alexander Maslov, de 77 anos, cujo processo de traição estava sendo julgado simultaneamente no mesmo tribunal.
Professor de física, Kuranov foi diretor da Empresa de Pesquisa Científica para Sistemas Hipersônicos de São Petersburgo. Seu processo é sigiloso, mas em 2021 a agência de notícias Interfax informou que, de acordo com a investigação, Kuranov "esteve envolvido com tecnologias hipersônicas por muitos anos, e havia entregado a um cidadão estrangeiro informações confidenciais sobre esses desenvolvimentos científicos".
Em 2001, como CEO de uma empresa de pesquisa de sistemas hipersônicos baseada em São Petersburgo, Kuranov falou abertamente sobre os testes do avião hipersônico "Ajax" e seu trabalho com parceiros americanos. O projeto foi desativado em meados da década de 1990, mas foi retomado quando a Força Aérea dos EUA decidiu apoiá-lo.
O jornal Kommersant observa que os desenvolvedores russos da época estavam competindo por financiamento com seus homólogos dos EUA e da França, em parte devido aos orçamentos mais baixos disponíveis para esse tipo de trabalho no país. Representantes dos EUA que participaram de uma conferência em São Petersburgo, naquele ano, disseram que Kuranov não escondeu seu objetivo de garantir milhões de dólares em investimento dos militares americanos para o seu projeto.
Kommersant cita Kevin Bowcutt, principal especialista da Boeing em sistemas hipersônicos na época, dizendo que a cooperação internacional era essencial para tais projetos, dados os recursos humanos e financeiros que esse trabalho exige. Ao ser questionado pela BBC sobre sua reação à série de detenções recentes, Bowcutt optou por não responder às nossas perguntas. A Boeing disse "não temos nenhum comentário neste momento".
Kuranov esperava ser capaz de desenvolver um protótipo funcional da sua aeronave dentro de uma década. Ele falou sobre planos de iniciar negociações com os chineses, que demonstraram interesse em utilizar a pesquisa hipersônica russa para aeronaves civis. Um acordo com a China para reunir recursos para o trabalho foi assinado em abril de 2001 (por Anatoly Turchak, que chefiava a holding Leninets, e é pai do atual líder do partido governista Rússia Unida, Andrei Turchak).
Duas décadas depois, aqueles que haviam colaborado abertamente (e mediante incentivo oficial) com os EUA, a China e outros países estrangeiros, como Kuranov, foram acusados de traição. Entre eles, apenas Kuranov falou publicamente sobre estar envolvido na aplicação de pesquisas hipersônicas em armamentos. "Nos próximos 10 a 15 anos, a principal tarefa (da pesquisa) hipersônica será a criação de um míssil de cruzeiro hipersônico", disse Kuranov ao jornal Izvestia em 2011. Dez anos depois, ele estava atrás das grades.
"Parece que só por fazer o seu trabalho você pode se tornar um traidor da Pátria!", exclama um dos parentes de Galkin. "Ele tem um contrato na Universidade Politécnica. (O documento) afirma que ele é obrigado a realizar trabalhos científicos. E as publicações estrangeiras sempre foram muito valorizadas. O tempo passa, a 'operação militar especial' na Ucrânia começa e, de repente, 'ah, acontece que você foi publicado no exterior!' Mas foram eles que queriam que a ciência russa fosse internacional. Ele fez o que pediram a ele. Se tivessem proibido publicações estrangeiras, ele não teria escrito para eles. Primeiro, eles foram varridos para as publicações acadêmicas estrangeiras com uma vassoura, e depois foram presos por isso."
Os autores da carta aberta em apoio aos cientistas do ITPM observam que a presunção de culpa se baseou nas apresentações de relatórios dos cientistas em seminários e conferências internacionais, na publicação de artigos em publicações científicas de alto nível no exterior e na sua participação em projetos científicos internacionais.
"O Ministério da Educação e da Ciência, seguindo as ordens do presidente, instrui diretamente os institutos a se envolverem em estudos para fortalecer a cooperação no exterior", diz a família de Shiplyuk. "Da parte dele, ele cumpriu conscientemente esta instrução. A avaliação de riscos não era trabalho dele."
A família dele afirma que representar o ITPM internacionalmente fazia parte da descrição básica do cargo de Shipluk.
Na carta aberta, os autores do ITPM afirmaram que o trabalho dos físicos detidos havia sido repetidamente verificado pela comissão de especialistas do instituto quanto à presença de informações confidenciais, e nenhuma havia sido encontrada. O advogado de defesa Yevgeny Smirnov confirma que o mesmo se aplica aos trabalhos publicados no exterior pelos presos por traição do TsAGI e do TsNIIMash.
Em nenhum dos casos, isso impediu o FSB de apresentar acusações criminais com base nos projetos internacionais dos cientistas. No caso do TsAGI, os oficiais do serviço secreto se basearam na conexão com o projeto HEXAFLY-INT para desenvolver aeronaves civis hipersônicas. O trabalho foi coordenado pelo cientista belga Johan Steelant, da Agência Espacial Europeia (ESA, na sigla em inglês). O FSB decidiu que ele era um espião.
Johan Steelant não respondeu um e-mail com nossas perguntas, nem no LinkedIn. Mas a Agência Espacial Europeia nos enviou este comentário sobre o projeto HEXAFLY.
"HEXAFLY foi um projeto de pesquisa sobre transporte aéreo civil de alta velocidade, com velocidades até Mach 8, criado em 2012 e patrocinado na época pela Comissão Europeia, e um consórcio europeu liderado pela ESA composto por várias companhias e instituições de pesquisa francesas, alemães, italianas e britânicas foi estabelecido. O projeto foi concluído há muito tempo. Houve também um acordo de cooperação internacional separado entre o consórcio e as entidades russas TsAGI, o Instituto de Física e Tecnologia de Moscou, o Instituto de Pesquisa de Voo e o Instituto Central de Motores de Aviação."
"Todas as contribuições técnicas e intercâmbios foram acordados e previstos no acordo de cooperação entre o Consórcio Europeu e as entidades russas."
"Johan Steelant liderou e coordenou o envolvimento da ESA e os esforços do Consórcio Europeu. A ESA está ciente dos eventos subsequentes. Estamos igualmente cientes de que o nome de Johan Steelant foi incluído neste processo. Johan Steelant é um membro valioso da ESA, e durante o seu mandato como coordenador do HEXAFLY, desempenhou seu papel de acordo com os termos mutuamente acordados do acordo de cooperação, e em prol dos interesses de todos os membros desta cooperação internacional na época."
"Meus sentimentos pessoais são totalmente negativos", diz um dos colegas de Vladislav Galkin que preferiu permanecer anônimo. "Durante anos, o ministério nos obrigou a publicar em revistas científicas estrangeiras e a trabalhar ao lado de cientistas estrangeiros, e a obrigação ainda não foi revogada. No entanto, o FSB considera que manter contato com cientistas estrangeiros e escrever para revistas estrangeiras é uma traição à Pátria. Há um conflito dentro do sistema."
Ele contou que o Ministério da Educação e da Ciência não está fazendo nada para resolver a questão: "Nas listas ministeriais, 60% das publicações ainda são destinadas a revistas científicas estrangeiras".
Ele diz que o ITPM encerrou o contato e a cooperação com institutos e periódicos estrangeiros, e também interrompeu suas pesquisas na área hipersônica. "É difícil trabalhar nessas condições. Não tanto pelas restrições, mas pela ausência de diretrizes detalhadas e leis claras. Estamos aguardando pacientemente, mas acreditamos que o bom senso vai prevalecer", acrescentou o cientista.
Após a publicação da carta aberta do ITPM, o Kremlin emitiu um comentário. "Vimos o apelo deles, mas os serviços especiais estão trabalhando e cumprindo seu dever. As acusações são graves", afirmou Dmitry Peskov, o porta-voz da presidência. Mas se resumiu a um breve furor na imprensa, dizem os parentes de Shiplyuk. Desde então, não houve mais nenhuma reação.
A carta foi uma rara manifestação de apoio público aos cientistas presos sob acusação de traição. O FSB conseguiu assustar os físicos russos — assim como seus colegas no exterior. Advogados tentaram, sem sucesso, convencer estes últimos a serem testemunhas de defesa em processos de traição, e a ajudar seus colegas russos a provar que estavam se comunicando com cientistas, e não com espiões. Segundo Smirnov, "eles estão totalmente aterrorizados desde o envenenamento de Sergei Skripal [um agente duplo que os russos tentaram matar em Salisbury, no Reino Unido, em março de 2018]".
Os colegas russos dos réus, ele acrescenta, também costumam se recusar a ser testemunhas de defesa no tribunal e evitam comentar as acusações. "Todo mundo está assustado e recolhido em seu canto", diz a viúva de Kudryavtsev.
Os cientistas têm medo até hoje. "Assumi um compromisso com uma determinada organização, por isso não posso comentar", afirmou um funcionário do ITPM quando contatado, dizendo temer a perseguição do FSB. Outro funcionário disse para entrar em contato com ele em um mês. Outros três não atenderam ligações, nem responderam mensagens. "Eles vão me colocar de volta na prisão depois de falar com você", declarou Vladimir Lapygin, o ex-cientista do TsNIIMash.
'Se eu enfiar um lápis no seu olho, vira uma arma'
Quase todos os processos de traição contra cientistas abertos recentemente seguiram um caminho semelhante, diz Smirnov: agentes do FSB foram aos institutos e buscaram projetos internacionais realizados nos últimos 10-15 anos para o que "for mais conveniente para eles".
"A missão não era encontrar culpados, mas prender várias pessoas de cada instituto", afirma Smirnov. O FSB pediu então a especialistas que verificassem os projetos e apresentações de seu interesse quanto à presença de segredos de Estado.
"A raiz do problema está nas conclusões tiradas pelos especialistas que descobrem os 'segredos'", explica Smirnov. Os especialistas são frequentemente engenheiros militares de um dos vários institutos da agência espacial russa, Roskosmos. "Se você tem um cientista civil e um cientista militar olhando para o mesmo trabalho, o cientista militar vai ver naturalmente um segredo de Estado ou outro para onde quer que olhe, embora a física na engenharia militar e civil seja exatamente a mesma", acrescenta.
A comissão de especialistas vai chamar até mesmo as informações dos livros didáticos de segredo de Estado, afirma Smirnov. "Digamos que você precise de uma tabela de multiplicação ao redigir uma apresentação, e também ao construir um foguete Burevestnik. Você está usando a mesma tecnologia." É assim que um cientista que apresenta o seu trabalho no exterior, ou participa de um projeto internacional, é acusado de traição.
Lapygin concorda que a lógica das investigações é exatamente a descrita acima, e lembra do seu próprio interrogatório: "Tínhamos alguns modelos para testar em tubos aerodinâmicos que pareciam com ogivas de mísseis ou com as formas da carenagem de mísseis. As formas das coisas em si não são um segredo. O investigador me disse: 'Isto aqui são ogivas de foguetes!' Peguei um lápis e disse: 'Aqui está um lápis — não é um segredo, nem está escondido, nem é uma arma. Mas se enfiar no seu olho, ele se torna uma (arma). Mas não estou cutucando você com isso. Portanto, o lápis não pode ser considerado uma tecnologia secreta'. O fato de a carenagem de um míssil ter um formato elíptico não faz da elipse uma fórmula secreta."
Os investigadores do FSB também encontraram o formato de um foguete na pesquisa que Kudryavtsev enviou ao Instituto von Karman, na Bélgica. Como lembra sua viúva, o instituto foi encarregado de estudar o comportamento em fluxos turbulentos de um modelo em forma de cone pontiagudo. O experimento não funcionou, então os físicos arredondaram o cone para alcançar o fluxo turbulento que precisavam. O estudo foi um sucesso, mas o FSB descobriu nele informações secretas: o cone com ponta arredondada lembrava agora um foguete. Especialistas em engenharia militar concordaram que o comportamento de tal modelo em fluxos turbulentos seria útil a eles — e que, portanto, constituía um segredo de Estado.
"Fique na sua, não publique artigos, e não encontre com estrangeiros", diz Lapygin.
"Escreva artigos em segredo, e você vai receber seu salário e uma boa avaliação."
Na opinião dele, esta é a única forma de um cientista se salvar da acusação de traição.
"Mas é ruim para o nosso país porque significa que não haverá progresso. O lance é que nem todo mundo se incomoda com isso. Eles acham que você pode viver assim, e que não é tão terrível."
Ao falar sobre o FSB hoje, Lapygin lembra como, na era soviética, havia um agente da KGB em TsNIIMash encarregado de guardar segredos de Estado.
"Ele copiava as fórmulas para um caderno selado, o que as tornava confidenciais. Isso não fez bem à mente dele."
Lapygin está convencido de que o que hoje o FSB chama de traição ao Estado, um cientista na era soviética teria se safado com uma reprimenda ou, na pior das hipóteses, perdido o emprego. "De maneira alguma, haveria um processo de traição contra ele."
Centenas de cientistas russos deixaram o país desde o início da guerra em grande escala na Ucrânia. Mas mesmo antes da invasão, a fuga de cérebros era surpreendente: um estudo oficial de 2018 mostrou que 800 mil russos com ensino superior tinham ido para o exterior.
No total, os órgãos de segurança pública da Rússia prenderam 12 cientistas sob a acusação de traição. Todos eles estavam de uma forma ou de outra ligados ao estudo da física em velocidades hipersônicas. Três já morreram.
Além de Kudryavtsev, havia seu colega do TsNIIMash Roman Kovalev — sua esposa faleceu quando ele estava detido, e ele próprio morreu um mês depois de ser libertado da prisão. Dmitry Kolker, chefe do Laboratório de Óptica Quântica do Instituto de Física do Laser, foi detido no hospital, apesar de ter câncer de pâncreas em estágio quatro. Ele morreu dois dias depois.
Há mais de 20 anos, Putin já era presidente, enquanto Kolker trabalhava no Instituto de Física do Laser. Eles conversaram na televisão estatal durante a primeira maratona anual de perguntas e respostas aberta ao público de Putin.
"O que vai acontecer com a ciência fundamental, e o financiamento para a pesquisa fundamental vai aumentar?", perguntou Kolker, na ocasião. Putin garantiu a ele que a ciência é mais importante que o petróleo e o gás, "e, claro, o Estado deve prestar a atenção necessária à ciência". O Estado realmente prestou atenção aos cientistas — o FSB, ainda mais.
Dois cientistas do TsAGI, Anatoly Gubanov e Valery Golubkin, foram condenados a 12 anos de prisão numa colônia penal de "regime rigoroso". Gubanov recorreu da decisão, e sua advogada, Olga Dinze, espera obter uma redução da pena.
Em 17 de abril, o Supremo Tribunal da Rússia anulou a decisão do processo de Golubkin, e ordenou uma revisão. Golubkin participou pessoalmente da audiência, sendo transferido de uma colônia penal em Petrozavodsk para Moscou.
Ele está detido agora na prisão de Lefortovo, na capital russa, onde as condições são melhores em comparação com a colônia penal, segundo Maria Eismont, advogada de direitos humanos.
"Esperamos que os médicos o examinem, realizem exames de marcadores tumorais, e que ele fique mais próximo dos seus familiares, que vão poder visitá-lo regularmente", explicou Eismont. Golubkin foi submetido a uma cirurgia para câncer de cólon há vários anos.
Sergei Meshcheryakov, do TsNIIMash, recebeu uma sentença de suspensão condicional da pena de sete anos em 2021. "Ele tinha câncer. Queria rejeitar a pena suspensa e lutar contra o processo", lembra Lapygin.
Valery Zvegintsev, do ITPM, permanece em prisão domiciliar em Novosibirsk.
O diretor do ITPM, Alexander Shiplyuk, está no centro de detenção do FSB de Lefortovo, em Moscou. "Ele nunca reclamou das condições de lá, e nos últimos 18 meses nos acostumamos com a situação", diz sua família.
"Ele está em uma cela para dois homens, com boa ventilação e sem problemas de aquecimento. Levamos regularmente cestas de comida ou enviamos coisas para ele manter sua saúde e força. Nem sempre é fácil fazer isso a partir de Novosibirsk, mas estamos gratos aos parentes e às pessoas em Moscou que se preocupam com ele."
No ano passado, Shiplyuk só obteve permissão para ver a esposa três vezes, e os filhos, uma vez. Ele foi autorizado a dar dez telefonemas para parentes.
Seu filho Mikhail diz que o pai vivia para o trabalho. "Ele essencialmente dedicou sua vida a isso." Shiplyuk gostava de praticar snowboard, mas mesmo nestas ocasiões, ele combinava a atividade com a participação em conferências sobre física.
Mikhail conta que os livros que ele lê na prisão agora não têm nada a ver com ciência. Ele está mais interessado em filosofia, e decorou o poema Eugene Onegin, de Pushkin.
"Um pai dá uma sensação de constância. Sem ele, isso desaparece, e você tem que se virar sozinho, sem um ombro de pai para se apoiar", diz ele. "Sinto falta do apoio e dos conselhos dele. Escrevemos cartas um para o outro, mas não sobre tudo. Só sobre as coisas essenciais."
O advogado de Shiplyuk, que tem medo de revelar seu nome, diz que o cientista insiste na sua inocência. A investigação preliminar está agora chegando ao fim. "Isso é tudo que posso dizer em termos processuais, já que não aborda os autos do processo. Assumi um compromisso de confidencialidade porque, segundo os investigadores, os autos do processo contêm informações confidenciais."
Anatoly Maslov, de 77 anos, colega de Shipluk no ITPM, também foi detido em Lefortovo, mas a investigação está agora concluída, e seu caso está sendo apresentado nos últimos sete meses em um tribunal de São Petersburgo. Ele não admitiu culpa. Mikhail, filho de Shiplyuk, também conhece Maslov, e está em contato com ele. "Ele não é tão emocionalmente estável e positivo em suas cartas quanto meu pai", afirma.
Maslov também está sendo defendido por Olga Dinze. Ela diz que o julgamento dele está sendo realizado separadamente dos outros casos do ITPM. "Sua área da ciência sempre foi turbulência, e não tinha nada a ver com (a área) hipersônica", explica. "Mas ele foi envolvido nisso, e alguns morreram, e outros tiveram que responder."
A defesa também precisa provar que Maslov não possui conhecimento especializado em um campo científico específico — Dinze não pôde especificar qual, já que os autos do processo são confidenciais.
"Ele não admite culpa; não há nada a admitir aqui. O processo é baseado nas fantasias da promotoria", afirma Dinze. "Quando ele percebeu o que estava acontecendo, ficou consternado e apático em participar da audiência", diz ela. "Estamos tentando encorajá-lo, dizendo que precisamos pelo menos tornar o processo embaraçoso para nossos oponentes."
Vladislav Galkin só consegue ver seus familiares por meio de uma divisória de vidro no centro de detenção em que está preso em Novosibirsk. "Ele segura o telefone de um lado, e nós seguramos do outro", diz sua esposa, Tatyana.
"Estava pensando outro dia que poderia escrever uma carta. Não sei para quem, talvez para o promotor. Obviamente não para Putin", afirma. "Eu poderia pedir que me colocassem no mesmo centro de prisão preventiva. Seria bastante fácil — você só precisa suspeitar de alguém por alguma coisa. Porque ele só fica sentado ali, dia após dia."
Ela está falando sério. Já se passou quase um ano exatamente desde que seu marido foi preso.
"O FSB está a todo vapor. 'É preciso quebrar ovos para fazer um omelete', como dizem. É assim que as coisas estão no país agora."