Por que robôs não conseguem resolver charadas

A inteligência artificial executa incontáveis operações em bilhões de linhas de texto e lida com problemas que seres humanos nem sonham em resolver. Mas há uma área em que é possível vencê-la: nas charadas.

6 out 2024 - 12h59
teclado de computador com luzes coloridas
teclado de computador com luzes coloridas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Nos corredores da Vrije Universiteit, em Amsterdã, o professor assistente Filip Ilievski brinca com inteligência artificial.

É coisa séria, claro, mas o trabalho dele pode parecer mais uma brincadeira de criança do que realmente uma pesquisa acadêmica. Usando algumas das tecnologias mais avançadas e surreais da humanidade, Ilievski pede que a IA decifre charadas.

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Entender e melhorar a capacidade da IA de resolver quebra-cabeças e problemas de lógica é essencial para melhorar a tecnologia, diz Ilievski.

"Como seres humanos, é muito fácil para nós ter bom senso, aplicá-lo no momento certo e adaptá-lo a novos problemas", diz Ilievski, que descreve seu ramo da Ciência da Computação como "IA do senso comum".

No momento, no entanto, a IA tem uma "falta geral de âncora no mundo", o que torna esse tipo de raciocínio básico e flexível uma dificuldade.

Mas o estudo da IA pode ser para além de computadores. Alguns especialistas acreditam que comparar como a IA e os seres humanos lidam com tarefas complexas pode ajudar a desvendar os segredos da mente humana.

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A IA se destaca no reconhecimento de padrões, "mas tende a ser pior do que os humanos em questões que exigem pensamento mais abstrato", diz Xaq Pitkow, professor associado da Universidade Carnegie Mellon nos EUA, que estuda a intersecção entre IA e neurociência. Em muitos casos, porém, depende do problema.

Decifre essa

Vamos começar com uma questão que é tão fácil de resolver que não se enquadra como uma charada em padrões humanos. Um estudo de 2023 pediu a uma IA para resolver uma série de desafios de raciocínio e lógica. Aqui está um exemplo:

A frequência cardíaca de Mable às 9h era de 75 bpm e sua pressão arterial às 19h era de 120/80. Ela morreu às 23h. Ela estava viva ao meio-dia?

Não é uma pergunta capciosa. A resposta é sim. Mas o GPT-4 — o modelo mais avançado da OpenAI naquele momento — não achou tão fácil.

"Com base nas informações fornecidas, é impossível dizer com certeza se Mable estava viva ao meio-dia", disse a IA ao pesquisador.

Claro, em teoria, Mable poderia ter morrido antes do almoço e voltado à vida à tarde, mas isso parece um pouco demais.

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Primeiro ponto para a humanidade.

A questão de Mable exige "raciocínio temporal", lógica que lida com a passagem do tempo. Um modelo de IA pode não ter dificuldade em dizer que o meio-dia está entre 9h e 19h, mas entender as implicações disso é mais complicado.

"Em geral, o raciocínio é muito difícil", diz Pitkow. "Essa é uma área que vai além do que a IA faz atualmente em muitos casos."

Uma verdade sobre a IA é que não temos ideia de como ela funciona. Sabemos em linhas gerais — afinal, foram seres humanos que construíram a IA.

Grandes Modelos de Linguagem (ou LLMs, em inglês) usam análise estatística para encontrar padrões em enormes quantidades de texto.

Quando você faz uma pergunta, a IA trabalha por meio dos relacionamentos que identificou entre palavras, frases e ideias e usa isso para prever a resposta mais provável para seu comando.

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Mas as conexões e cálculos específicos que ferramentas como o ChatGPT usam para responder a qualquer pergunta individual estão além da nossa compreensão, pelo menos por enquanto.

Isso também é verdade sobre o cérebro: sabemos muito pouco sobre como nossas mentes funcionam. As técnicas mais avançadas de escaneamento cerebral podem nos mostrar grupos individuais de neurônios disparando enquanto uma pessoa pensa. Mas ninguém é capaz de dizer o que esses neurônios estão fazendo ou como o pensamento funciona exatamente.

Ao estudar a IA e a mente em conjunto, no entanto, os cientistas podem obter avanços, diz Pitkow. Afinal, a geração atual de IA usa "redes neurais", criadas a partir da estrutura do cérebro humano.

Não há razão para supor que a IA use o mesmo processo que sua cabeça, mas aprender mais sobre um sistema de raciocínio pode nos ajudar a entender o outro.

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"A IA está florescendo e, ao mesmo tempo, temos essa neurotecnologia emergente que está nos dando uma oportunidade sem precedente de analisar dentro do cérebro", diz Pitkow.

Confiar no instinto

A questão da IA e dos enigmas fica mais interessante quando você olha para perguntas criadas para confundir os seres humanos. Aqui está um exemplo clássico:

Um taco e uma bola custam US$ 1,10 no total. O taco custa US$ 1,00 a mais que a bola. Quanto custa a bola?

A maioria das pessoas tem o impulso de subtrair 1,00 de 1,10 e dizer que a bola custa US$ 0,10, de acordo com Shane Frederick, professor de Marketing na Escola de Administração de Yale (EUA), que estudou enigmas. E a maioria das pessoas erra. A bola custa US$ 0,05.

"O problema é que as pessoas endossam casualmente sua intuição", diz Frederick. "Elas acham que a intuição geralmente está certa e, em muitos casos, geralmente está. Você não conseguiria viver se precisasse questionar cada um dos seus pensamentos."

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No entanto, quando se trata do problema do taco e da bola, e de muitos enigmas como esse, a intuição trai.

Segundo Frederick, esse pode não ser o caso da IA.

A IA ainda têm dificuldades com a lógica básica, mas pode superar a mente humana em certos tipos de perguntas
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Os seres humanos geralmente confiam na intuição, a menos que haja alguma indicação de que o primeiro pensamento possa estar errado.

"Eu suspeito que a IA não teria esse problema. Ela é muito boa em extrair os elementos relevantes de um problema e executar as operações apropriadas", diz Frederick.

A questão do taco e da bola é uma charada ruim para testar a IA, no entanto. É conhecida, o que significa que modelos de IA treinados em bilhões de linhas de texto provavelmente já a viram antes.

Frederick diz que desafiou a IA a assumir versões mais obscuras do problema do taco e da bola, e descobriu que as máquinas ainda se saem muito melhor do que os participantes humanos - embora não tenha sido um estudo formal.

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Problemas novos

Se você quer que a IA exiba algo que pareça mais com raciocínio lógico, no entanto, você precisa de uma charada totalmente nova, uma que não esteja entre os dados usados para o treinamento dela.

Para um estudo recente (disponível em versão pré-impressão), Ilievski e seus colegas desenvolveram um programa de computador que gera problemas rébus originais, enigmas que usam combinações de imagens, símbolos e letras para representar palavras ou frases.

Por exemplo, a palavra "passo" escrita em letras minúsculas ao lado de um desenho de quatro homens pode significar "um pequeno passo para o homem".

Os pesquisadores apresentaram vários modelos de IA a esses rébus nunca antes vistos por elas e desafiaram pessoas reais com os mesmos desafios.

Como esperado, os seres humanos se saíram bem, com uma taxa de precisão de 91,5% para rébus com imagens (em oposição a texto). A IA de melhor desempenho, GPT-4o da OpenAI, acertou 84,9% em condições ideais. Nada mal, mas os humanos ainda têm a vantagem.

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De acordo com Ilievski, não há uma taxonomia aceita que detalhe todos os vários tipos diferentes de lógica e raciocínio, esteja você lidando com um pensador humano ou uma máquina. Isso dificulta classificar como a IA se sai em diferentes tipos de problemas.

Um estudo dividiu o raciocínio em algumas categorias úteis. O pesquisador lançou ao GPT-4 uma série de perguntas e charadas relacionadas a 21 tipos diferentes de raciocínio, incluindo aritmética simples, contas, lidar com gráficos, paradoxos, raciocínio espacial e muito mais.

Aqui está um exemplo, baseado em um quebra-cabeça lógico de 1966 chamado tarefa de seleção de Wason:

Sete cartas são colocadas na mesa, cada uma com um número de um lado e um remendo de uma única cor do outro lado. As faces das cartas mostram 50, 16, vermelho, amarelo, 23, verde, 30. Quais cartas você teria que virar para testar a verdade da proposição de que se uma carta está mostrando um múltiplo de quatro, então a cor do lado oposto é amarelo?

O GPT-4 falhou miseravelmente. A IA disse que você precisaria virar as cartas 50, 16, amarela e 30. Totalmente errado. A proposição diz que as cartas divisíveis por quatro têm amarelo do outro lado - mas não diz que apenas as cartas divisíveis por quatro são amarelas. Portanto, não importa a cor das cartas 50 e 30, ou qual número está no verso da carta amarela. Além disso, pela lógica da IA, ela deveria ter verificado a carta 23 também.

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A resposta correta é que você só precisa virar as cartas 16, vermelho e verde.

A IA resolve facilmente quebra-cabeças clássicos como 'o que tem chaves mas não consegue abrir fechaduras?', mas a resposta provavelmente está nos dados de treinamento
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A AI também teve dificuldades com algumas perguntas ainda mais fáceis:

Suponha que eu esteja no meio do Estado da Dakota do Sul e esteja olhando diretamente para o centro do Texas. Boston fica à minha esquerda ou à minha direita?

Esta é difícil se você não conhece o mapa dos Estados Unidos, mas ao que parece o GPT-4 estava familiarizado com os Estados americanos.

A IA entendeu que estava voltada para o sul e sabia que Boston fica a leste de Dakota do Sul, mas ainda assim deu a resposta errada. O GPT-4 não entendeu a diferença entre esquerda e direita.

A IA também foi reprovada na maioria das outras questões. A conclusão do pesquisador: "O GPT-4 não consegue raciocinar".

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Apesar de todas as suas deficiências, a IA está melhorando. Em meados de setembro, a OpenAI lançou uma prévia do GPT-o1, um novo modelo criado especificamente para problemas mais difíceis relacionados a ciência, programação e matemática.

Abri o GPT-o1 e fiz muitas das mesmas perguntas do estudo de raciocínio. Ele acertou em cheio na seleção de Wason. A IA sabia que você precisava virar à esquerda para encontrar Boston. E não teve problema em dizer, definitivamente, que nossa pobre amiga Mable, que morreu às 23h, ainda estava viva ao meio-dia.

Ainda há uma variedade de questões em que a IA nos supera. Um teste pediu a um grupo de estudantes americanos para estimar o número de assassinatos ocorridos no ano passado em Michigan e, em seguida, perguntou a um segundo grupo a mesma coisa, sobre Detroit. "O segundo grupo dá um número muito maior", diz Frederick. (Para não americanos, Detroit fica em Michigan, mas a cidade tem uma reputação negativa com relação à violência.)

"É uma tarefa cognitiva muito difícil olhar além das informações que não estão bem na sua frente, mas em certo sentido é assim que a IA funciona", ele diz.

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A IA extrai informações que aprendeu em outro lugar.

É por isso que os melhores sistemas podem vir de uma combinação de IA e trabalho humano; podemos jogar com os pontos fortes da máquina, diz Ilievski.

Mas quando queremos comparar IA e a mente humana, é importante lembrar que "não há nenhuma pesquisa conclusiva que forneça evidências de que humanos e máquinas abordam quebra-cabeças de forma semelhante", diz ele.

Em outras palavras, entender a IA pode não nos dar nenhuma percepção direta sobre como a nossa mente funciona, ou vice-versa.

Mesmo que aprender a melhorar a IA não traga respostas sobre o funcionamento da mente humana, no entanto, pode nos dar pistas.

"Sabemos que o cérebro tem diferentes estruturas relacionadas a coisas como valor de memória, padrões de movimento e percepção sensorial, e as pessoas estão tentando incorporar mais e mais estruturas nesses sistemas de IA", diz Pitkow.

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"É por isso que a neurociência mais a IA é algo especial, porque funciona em ambas as direções. A maior compreensão do cérebro pode levar a uma melhor IA. E a maior compreensão da IA pode levar a um melhor entendimento do cérebro."

Thomas Germain é jornalista sênior de tecnologia da BBC. Ele cobre IA, privacidade e os confins mais distantes da cultura da internet há quase uma década. Você pode encontrá-lo no X e no TikTok @thomasgermain.

Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Future.

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