Por que uma nova pandemia nos próximos anos é praticamente inevitável

É apenas uma questão de 'quando' e não de 'se' a próxima vai surgir. Só não se sabe qual será o agente causador.

12 ago 2020 - 15h18
(atualizado às 15h22)
"É apenas uma questão de 'quando' e não de 'se' a próxima vai surgir", diz virologista Camila Malta Romano
"É apenas uma questão de 'quando' e não de 'se' a próxima vai surgir", diz virologista Camila Malta Romano
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Se há alguma coisa quase certa em relação à atual pandemia é que ela não será a última que a humanidade vai enfrentar. Só não se sabe quando e de onde virá a próxima e qual seu agente causador, se um vírus, bactéria ou outro micro-organismo.

A julgar pelas últimas que ocorreram, há chances significativas de ela ser causada por algum tipo de vírus influenza, como foram os casos, por exemplo, das gripes russa, em 1889-90, e asiática, em 1957-58, ambas causadas pelo H2N2, com 1,5 milhão e 2 milhões de mortos, respectivamente.

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Depois houve outras epidemias de longo alcance, como a gripe de Hong Kong, em 1968-69, causada pelo vírus influenza H3N2 (3 milhões de mortes).

Houve outras, como a da gripe espanhola, que, apesar do nome, surgiu primeiro nos Estados Unidos, e, segundo estimativas, matou entre 50 e 100 milhões de pessoas em todo o mundo.

O mais recente surto causado por este tipo de vírus foi o da gripe suína, em 2009-10, que teve como agente o H1N1, responsável pela morte de 17 mil pessoas no planeta.

Para a virologista Camila Malta Romano, do Instituto de Medicina Tropical de São Paulo, da Universidade de São Paulo (USP), a pandemia de covid-19 está longe de ser a última do planeta.

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"É apenas uma questão de 'quando' e não de 'se' a próxima vai surgir", diz. "Esses surtos, embora menos comuns do que epidemias, ocorrem de vez em quando e temos exemplos passados de situações esporádicas como a peste bubônica e mais de uma de influenza (gripe espanhola, asiática, suína)."

Mas, segundo ela, parece que ultimamente a emergência de agentes potencialmente pandêmicos tem sido mais frequente. "Veja as próprias pandemias de influenza, de 1918, 1957-58, 1968-69 e 2009-10", explica.

"Antes teve a da Sars, causada por um vírus bastante similar ao atual Sars-Cov-2, causador da covid-19, a primeira epidemia do século 21 (em 2003). Já naquele momento, sabíamos que não seria a última. Portanto, a epidemia do Sars-Cov-2 certamente também não será."

Degradação ambiental

O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto, da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da USP, também afirma que o mundo ainda enfrentará muitas pandemias.

"Haverá outros vírus ou micro-organismos tentando colonizar o homem, nos usando como reservatório e produzindo doença", diz ele, que foi fundador e presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).

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Seu colega médico, Jair Ferreira, do Hospital das Clínicas de Porto Alegre (HCPA), da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) igualmente acredita que "quase" certamente a atual não será a última, porque de tempos em tempo a humanidade sempre enfrenta pandemias. "Não há razão para supor que esta venha a ser a última", diz.

Não se sabe quando e de onde virá a próxima e qual seu agente causador, se um vírus, bactéria ou outro micro-organismo - mas sim se sabe que haverá outra pandemia
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Mas, afinal, por que elas são inevitáveis, muita gente se pergunta? "Isso acontece porque estamos destruindo o meio ambiente", resume Vecina.

"Esses vírus e outros micro-organismos vivem na natureza. Quando acabamos com ela, diminuímos o espaço vital deles. Então, eles buscam alternativas para continuarem existindo. E por isso, saltam de um hospedeiro para outro. Não é à toa que tivemos gripe aviária, suína e outras."

Há um outro problema. "Não só estamos invadindo o espaço desses micro-organismos, como, em contrapartida, estamos proporcionando, ao mesmo tempo, muitos outros lugares para eles, com a criação intensiva de gado, de porco, de frango, dando oportunidade deles aumentarem outros espaços para prosperar", explica Vecina.

Em seu livro Inimigo Mortal - Nossa guerra contra os germes assassinos, os autores, Michael Osterholm e Mark Olshaker, vão um pouco mais além.

Eles dizem que a próxima pandemia encontrará "um mundo em equilíbrio precário em países em desenvolvimento, invasão de habitats naturais que trouxeram reservatórios de doenças de animais à porta de nossas casas, centenas de milhões de seres humanos e animais hospedeiros vivendo colados uns nos outros e uma cadeia de suprimentos planetária que fornece de tudo, de eletrônicos e autopeças a remédios sem os quais até hospitais avançados deixam de funcionar". 

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Criando riscos

Para Fernando Aith, professor titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da FSP-USP, esse é um cenário bastante realista.

"Para além de ampliar os riscos naturais (temporais, ciclones, secas), o homem está criando riscos que sequer sabemos o potencial de dano para a sociedade", diz. "Seja nas novas tecnologias (reprodução assistida, clonagem, engenharia genética, inteligência artificial) seja na ocupação urbana, que, no padrão brasileiro, já gera a dengue, a zika, a chikungunya, a hanseníase e a tuberculose, por exemplo."

Autores dizem que a próxima pandemia encontrará "um mundo em equilíbrio precário em países em desenvolvimento, invasão de hábitats naturais que trouxeram reservatórios de doenças de animais à porta de nossas casas, centenas de milhões de seres humanos e animais hospedeiros vivendo colados uns nos outros e uma cadeia de suprimentos planetária que fornece de tudo, de eletrônicos e autopeças a remédios sem os quais até hospitais avançados deixam de funcionar"
Foto: EPA / BBC News Brasil

Segundo Aith, para contornar isso e diminuir os riscos ou os danos de uma nova pandemia, a humanidade deve mudar radicalmente o seu conceito de "desenvolvimento".

"Deve deixar de produzir tanto lixo e passar a viver em harmonia com a natureza", defende.

"Além de mudar a matriz industrial e econômica, para que se passe a considerar a necessidade de preservá-la. Respeitar os limites do ambiente e o seu tempo de recuperação. Parar imediatamente de degradar e desmatar florestas. Observar mais rigidamente a ética em pesquisa e a do cuidado. Fortalecer os sistemas de vigilância em saúde dos países e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Reduzir iniquidades entre nações e no interior delas."

A médica Cristina Brandt Friedrich Martin Gurgel, da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, lembra que o ser humano, inserido na natureza, está sujeito às suas leis.

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"Uma delas é a convivência com demais seres vivos e esta pode ser extremamente benéfica ou justamente o contrário", diz. "Em relação a micro-organismos, com especial referência a vírus, a taxa de multiplicação deles é naturalmente muito alta. Consequentemente, a possibilidade de ocorrerem mutações genéticas é elevada. As mudanças advindas podem significar a não identificação ou inadequação de nossa resposta imune ao entrarmos em contato com eles, o que pode causar doença."

''A taxa de multiplicação de vírus é naturalmente muito alta. Consequentemente, a possibilidade de ocorrerem mutações genéticas são elevadas"
Foto: Reuters / BBC News Brasil

De acordo com ela, as possibilidades para que isso ocorra são infinitas e, portanto, "estamos sim sujeitos" a novas pandemias.

"Entretanto, a eclosão de uma epidemia, sua extensão e a gravidade não são facilmente previsíveis, pois dependem de outras variáveis", explica.

"Dentre alguns exemplos, há a capacidade imune, determinada geneticamente em certa população e certas características dela, como a sua densidade e o estado nutricional daquele grupo. Enfim, a simples presença de um micro-organismo não significa necessariamente que ele provocará doenças."

Por essa e outras razões, Camila diz que é difícil prever se a próxima pandemia será mais ou menos mortal do que a atual. "Isso depende das características do agente biológico (vírus, fungo ou bactéria), letalidade e transmissibilidade", diz.

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"A de Sars em 2003, por exemplo, se espalhou rapidamente e tinha uma mortalidade muito maior do que a covid-19, mas infectou apenas cerca de 8.000 pessoas no mundo e matou cerca de 10% delas. Portanto, só sabemos que sim, haverá outras pandemias, mas se mais ou menos mortais, é impossível dizer."

Se não dá para evitar uma nova pandemia, pelo menos é possível amenizar seus efeitos e o número de mortes que pode causar.

"Uma população bem informada quanto aos riscos certamente seria de grande valia", diz Cristina, que integra o Grupo de Estudos da História das Ciências da Saúde, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). "Não somos imortais e, infelizmente, perdas de vidas ocorrem e ainda ocorrerão nesta e nas próximas."

Segundo ela, a despeito de existirem variáveis inevitáveis para o desenvolvimento de um surto epidêmico, saber lidar com ele, com dados confiáveis, concebidos pela experiência e pela ciência geraria orientações imprescindíveis no comportamento da população.

"Deve-se alertar sem apavorar", recomenda. "Explicar como proceder e a razão desse procedimento, sem imposições. Unir a população em torno do inimigo maior - o vírus e suas implicações na saúde, na economia e na sociedade em geral - e não dividi-la e confundi-la absurdamente."

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