Vacina contra malária é 'conquista histórica', mas provavelmente não será usada no Brasil

A ciência busca uma vacina contra essa doença há quase um século. Finalmente um produto foi aprovado pela OMS e será usado em larga escala, especialmente em países africanos.

6 out 2021 - 19h51
Imunizante recém-aprovado é estudado desde os anos 1980
Imunizante recém-aprovado é estudado desde os anos 1980
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Com 229 milhões de casos e 409 mil mortes apenas em 2019, a malária é uma das doenças infecciosas que mais afetou a humanidade ao longo da história. E, após décadas de pesquisa, finalmente temos uma vacina disponível contra ela.

Numa coletiva de imprensa realizada nesta quarta (06/10) em Genebra, na Suíça, a Organização Mundial da Saúde (OMS) recomendou oficialmente o uso do imunizante RTS,S nas regiões do planeta com alta taxa de transmissão do Plasmodium falciparum, um dos protozoários por trás da enfermidade.

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O local que mais deve se beneficiar da medida é a África Subsaariana, que concentra a vasta maioria dos casos e das mortes pela moléstia: todos os anos, mais de 260 mil crianças com menos de cinco anos que moram ali morrem de malária.

"Essa é uma conquista histórica. A tão esperada vacina contra malária é um avanço para a ciência, para a saúde infantil e para o controle desta doença", comemorou Tedros Adhanom Ghebreyesus, diretor-geral da OMS.

Porém, apesar de representar uma ótima notícia para todo o mundo, a vacina provavelmente não será utilizada no Brasil, que registrou cerca de 130 mil casos e menos de 30 óbitos pela enfermidade em 2020.

Isso porque o agente causador da maioria das infecções por aqui é o Plasmodium vivax, protozoário sobre o qual o novo produto aprovado não tem efeito.

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O que é a malária?

Essa doença infecciosa é transmitida a partir da picada de mosquitos da família Anopheles, que são muito comuns em regiões tropicais e úmidas. Em algumas partes do Brasil, eles são conhecidos como mosquito prego.

Como explicamos acima, o agente causador é protozoário Plasmodium e há cinco tipos diferentes dele. Os mais comuns são o falciparum, o vivax e o malariae.

"O parasita causador da malária é diverso e tem uma capacidade de mutação muito grande. E isso faz com que seja quase impossível desenvolver imunidade após a infecção", explica o infectologista André Siqueira, pesquisador do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fundação Oswaldo Cruz (FioCruz), no Rio de Janeiro.

Os mosquitos Anopheles são os transmissores do protozoário causador da malária
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Em lugares com muita circulação do micro-organismo, não é raro encontrar pessoas que tiveram a doença dezenas de vezes.

Após entrar no organismo humano, esse parasita viaja pela corrente sanguínea e se instala nas células do fígado. Após um tempo de maturação, ele volta ao sangue e invade as células vermelhas (também conhecidas como hemácias).

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Ao longo desse processo, as células hepáticas e sanguíneas são destruídas, o que provoca sintomas como febre alta, dor de cabeça, calafrios, dor no corpo e perda de apetite.

"E vale destacar que o parasita assume diferentes formas em cada uma dessas fases, o que acarreta uma dificuldade para desenvolver vacinas com boa eficácia em todas as etapas", observa o médico.

Na sequência, o mosquito Anopheles pica a pessoa com malária e suga o sangue infectado, criando novas cadeias de transmissão na comunidade.

A boa notícia é que a doença tem diagnóstico rápido e o tratamento é curativo, quando dado no momento correto. Ela costuma ser mais perigosa para indivíduos com o sistema imune comprometido, idosos e, principalmente, crianças, que são as principais vítimas fatais da infecção.

O parasita costuma invadir e destruir as células vermelhas do sangue. Na ilustração, é possível ver uma unidade infectada ao centro
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Como a nova vacina funciona?

A RTS,S é desenvolvida desde 1987 pela farmacêutica britânica GSK. Após os testes preliminares, o imunizante foi avaliado em ensaios clínicos envolvendo seres humanos a partir do ano 2000, com o apoio da ONG Path e da Fundação Bill e Melinda Gates.

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Feito a partir de uma proteína do Plasmodium falciparum e algumas outras substâncias, a vacina atua no chamado "esporozoíto" do protozoário, que é uma forma que ele assume entre a picada do mosquito e a "viagem" até o fígado.

A título de curiosidade, esse trajeto do parasita da nossa pele até o tecido hepático costuma levar ao redor de 30 minutos.

A última etapa de estudos foi concluída em 2015. O trabalho final, publicado no periódico científico The Lancet, envolveu quase 15 mil crianças da África Subsaariana e comprovou que o produto era seguro e eficaz.

Mesmo com os resultados favoráveis, a OMS ainda tinha algumas reservas sobre a efetividade da RTS,S em larga escala. O primeiro problema tinha a ver com o esquema vacinal: para surtir efeito, é preciso aplicar quatro doses em cada indivíduo. As primeiras três são dadas no quinto, no sexto e no sétimo mês de vida. A quarta (e última) é ofertada quando o bebê completa 18 meses.

A entidade temia que esse número de aplicações poderia prejudicar o uso de outros imunizantes, dados de rotina contra outras doenças, e até traria uma falsa sensação de segurança às famílias que, sentindo-se mais protegidas, abandonariam outros métodos de prevenção da malária, como a instalação de mosquiteiros nas camas e nos berços ou a aplicação de repelentes.

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Para acabar com essas dúvidas, a OMS criou em 2019 um projeto piloto em que as quatro doses da nova vacina foram aplicadas em cerca de 800 mil crianças que moram em Gana, Quênia e Malauí.

Experiência de 2019 feita em Gana, Quênia e Malauí comprovou a efetividade da vacina contra a malária
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Os resultados da experiência foram considerados positivos: além de ter um bom perfil de segurança, a nova vacina preveniu 40% dos casos de malária e, ainda mais importante, reduziu em 30% as infecções mais severas, que estão relacionadas à hospitalização e morte.

"Se considerarmos que são 260 mil mortes anuais de crianças menores de cinco anos, uma redução de 30% é algo considerável", calcula Siqueira.

É claro que essa taxa de 30 ou 40% ainda não é a ideal, mas ela significa um avanço importante e abre a possibilidade para que novos produtos, ainda mais eficazes, sejam desenvolvidos a partir de agora.

"Essa aprovação pode servir de impulso para novos financiamentos e esforços de pesquisa para soluções ainda melhores", concorda o infectologista.

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A OMS destaca outras duas observações importantes a partir da experiência de vida real nas três nações africanas: não houve um relaxamento das outras medidas preventivas (como o uso de telas na cama) e a aplicação das doses mostrou-se custo-efetiva.

"Por séculos, a malária afeta a África Subsaariana e causa um enorme sofrimento pessoal. Nós esperávamos por uma vacina efetiva e, pela primeira vez, podemos recomendar o uso de um imunizante em larga escala", discursou a médica Matshidiso Moeti, diretora regional da OMS para a África.

"Isso representa um vislumbre de esperança para o continente que carrega o fardo mais pesado da doença e esperamos que muitas crianças que serão protegidas a partir de agora se tornem adultos saudáveis", completou a representante.

E no Brasil?

A recomendação da OMS é que a nova vacina seja usada em regiões em que há transmissão "moderada ou alta" do Plasmodium falciparum.

No Brasil, esse não é o causador de malária mais frequente: de acordo com o Ministério da Saúde, o Plasmodium vivax representa 89% dos casos notificados no país, que se concentram especialmente na região amazônica.

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"A RTS,S, portanto, não é uma vacina com aplicação no Brasil", concorda Siqueira.

A boa notícia é que os novos casos dessa enfermidade estão em queda em nosso país.

"Dados do PNCM (Programa Nacional de Prevenção e Controle da Malária) mostram que no ano de 2019, o Brasil notificou 157.454 casos de malária, uma redução de 19,1% em relação a 2018, quando foram registrados 194.572 casos da doença no país", informa um boletim publicado pelo ministério no final de 2020.

Para o infectologista da FioCruz, os casos de malária no Brasil são influenciados diretamente por dois fatores: a organização dos sistemas de saúde e as mudanças ambientais.

"Muitas vezes, uma cidade faz uma mobilização para diagnosticar e tratar a malária. Quando os casos caem, esses programas deixam de existir, o que provoca um novo aumento algum tempo depois", observa.

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"E também vemos o crescimento ocorrer em áreas de desmatamento e garimpo na Amazônia", informa.

O Brasil possui, inclusive, um plano para acabar com a malária em território nacional. A meta é registrar menos de 14 mil casos e nenhum óbito até 2030 e eliminar completamente a transmissão do Plasmodium falciparum nos próximos nove anos.

Para alcançar isso, é preciso fortalecer os sistemas de vigilância da doença, adquirir testes rápidos de diagnóstico, ofertar tratamentos na rede pública e investir na pesquisa e no desenvolvimento de novas soluções para esse problema.

Uma saída interessante pode ser a utilização de um novo remédio chamado tafenoquina. Atualmente, a medicação precisa ser tomada por alguns dias, o que pode ser difícil para uma parcela de pacientes.

"Essa droga está sendo estudada em Manaus e em Porto Velho e, caso os resultados sejam positivos, ela pode se tornar mais ferramenta valiosa para mudar a história da malária", avalia Siqueira.

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Embora existam estudos para a criação de uma vacina contra o Plasmodium vivax, o desafio é ainda mais complexo. Um artigo de 2013 assinado por especialistas da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e da Universidade de Zurique, na Suíça, destacam a resiliência desse parasita mais frequente em terras brasileiras.

"O Plasmodium vivax possui mecanismos sofisticados que permitem que ele fique dormente por meses ou até anos em pequenas estruturas do fígado, o que significa um enorme desafio para a erradicação da malária", escrevem os autores.

Siqueira também entende que há menos interesse no desenvolvimento de um imunizante para o Plasmodium vivax. "Até temos alguns grupos que trabalham nessa área, mas o financiamento é muito menor".

De acordo com o site ClinicalTrials.Gov, existem 10 testes clínicos concluídos ou em andamento com candidatos a imunizantes contra este parasita mais comum no Brasil. No caso do falciparum, mais frequente na África, são 130 registros de estudos do tipo.

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