Dados de DNA são pouco usados para resolver crimes no Brasil; SP lidera

Banco Nacional de Perfis Genéticos tem 193.751 perfis cadastrados, mas só contribuiu com pouco mais de 5.000 investigações em nove anos

7 jul 2023 - 05h00
Segundo dados do governo, 5.055 investigações foram auxiliadas no Brasil por amostras de DNA em nove anos
Segundo dados do governo, 5.055 investigações foram auxiliadas no Brasil por amostras de DNA em nove anos
Foto: Freepik

Você já deve ter visto uma cena como essa em algum filme ou série de TV: policiais coletam pistas na cena de um crime, e pouco depois, laboratórios descobrem amostras de DNA dos possíveis suspeitos. Isso até acontece no Brasil, mas com uma frequência bastante rara. Há dez anos o país definiu por lei a criação do o Banco Nacional de Perfis Genéticos (BNPG) com esse objetivo. No entanto, ele é menos usado do que deveria.

Nos EUA, essa prática ocorre desde os anos 80. Aqui, um relatório de maio realizado pela Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos (RIBPG), que compartilha e compara os bancos de dados estaduais, aponta que 5.055 investigações foram auxiliadas no Brasil por amostras de DNA. O período analisado é de novembro de 2014 a maio de 2023.

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Para efeito de comparação, só em 2021 houve no país 47.503 vítimas de mortes violentas intencionais, segundo o anuário mais recente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ou seja, o trabalho da nossa "polícia genética" ainda é pequeno perto do cenário geral.

São Paulo foi o estado que mais investigou com DNA, em 2.140 casos nestes nove anos. Já Rondônia e Alagoas não computaram nenhuma ocorrência do tipo no mesmo período.

Especialistas ouvidos pelo Byte apontam alguns motivos para este cenário, como falta de condições de trabalho e pouco controle na confiabilidade dos exames. Além disso, a polícia especializada vê com cautela uma possível adesão maior à ferramenta, para que falhas no processo não induzam a condenações de inocentes.

Como funciona a análise genética para crimes no Brasil

O Banco Nacional de Perfis Genéticos tem atualmente 193.751 perfis cadastrados. A maior parte dos registros é ligada a pessoas envolvidas em casos violentos e de abuso sexual. 

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Quando uma investigação recorre aos bancos genéticos, amostras de DNA retiradas de locais de crimes ou em corpos de vítimas —presentes em fios de cabelo, sangue, unhas e outros vestígios corporais — são confrontadas com perfis genéticos de indivíduos cadastrados criminalmente. O objetivo é achar coincidências que permitam encontrar suspeitos dos delitos em questão.

Os perfis genéticos gerados pela rede integrada são enviados ao BNPG. Lá, são realizados os confrontos de DNA a nível interestadual, com os perfis levantados em todos os 22 laboratórios do país dedicados a isso. Também há a comparação com dados similares de outros países organizados pela Interpol, organização multinacional de cooperação policial.

Vestígios como fios de cabelo, sangue e outros materiais biológicos são coletados no local do crime ou no corpo da vítima
Foto: Freepik

A lei nº 12.654/2012 obriga a identificação do perfil genético de criminosos que cometeram violência de natureza grave, como homicídios, latrocínio, sequestro e estupro, ou em casos que sejam determinados pelo juiz. 

A mesma lei determina que as informações nos bancos de dados de perfis genéticos não poderão revelar traços somáticos (ligados ao corpo) ou comportamentais das pessoas, com a exceção da determinação do gênero do(a) suspeito(a). 

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Crimes solucionados pelo DNA no Brasil

Em novembro de 2008, Rachel Genofre, de nove anos, foi encontrada morta com sinais de violência sexual em Curitiba. O acusado pelo crime, Carlos Eduardo dos Santos, foi identificado 11 anos depois, devido ao cruzamento de dados de DNA das polícias do Paraná, São Paulo e Distrito Federal. O homem já estava preso por outros crimes, o que facilitou a coleta dos dados genéticos para resolver o caso.

Apontado como um dos maiores ladrões de banco do país, Tiago Ciro Tadeu Faria, conhecido como "Gianechini", cometeu um deslize em um ataque a banco no interior de São Paulo. Ele deixou no local a embalagem de uma bebida láctea. Como já havia sido condenado em 2005 por roubo, seu perfil genético já estava inserido no banco de dados da Polícia Científica de São Paulo. 

Peritos analisaram as amostras de saliva colhidas na embalagem e concluíram a compatibilidade com o perfil de "Gianechini". Os profissionais também analisaram amostras em uma touca apreendida na cena do roubo, em 2018, de Bauru (SP), e o resultado do exame confirmou o perfil do criminoso.

Disparidade entre estados

Um fator que deve influenciar no pouco uso de DNA para elucidar crimes em alguns estados é a disparidade entre eles. De acordo com o relatório nacional mais recente, com dados até junho deste ano, o estado com mais informações é Minas Gerais, com 25.603 perfis, que representam 13,21% do total nacional. Em contrapartida, Alagoas, na última colocação, tem o registro de 1.516 perfis genéticos, representando 0,78% da fatia do país. 

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São Paulo (12,92%) e Pernambuco (11,5%) ocupam, respectivamente, o segundo e terceiro lugar dentro os estados com mais dados armazenados, com 25.023 e 22.274 perfis respectivamente. Já Amapá (1,09%) tem 2.116, e Mato Grosso (1,34%), 2.592.

Chama atenção a situação do Rio de Janeiro; segundo estado mais populoso do Brasil, ele se encontra com apenas 4.083 perfis em seu banco genético, com 2,11% do total nacional. Lá, apenas oito investigações usaram análises de amostras de 2014 a 2023. Segundo uma auditoria do Tribunal de Contas do Estado (TCE-RJ), algumas possíveis causas para a situação seriam:

  • Peritos de perfis genéticos acumulam outras funções, por causa do reduzido quadro de servidores; 
  • Não há comunicação suficiente entre a SEAP (Secretaria de Estado de Administração Penitenciária) e o IPPGF (Instituto de Pesquisa e Perícia em Genética Forense (IPPGF) sobre novos condenados no sistema prisional do Estado;
  • O IPPGF recebe menos amostras de evidências criminais do que outras categorias, como pessoas desaparecidas e restos mortais não identificados.

O Byte entrou em contato com a assessoria da Polícia Civil do Rio de Janeiro para comentar a conclusão da auditoria do TCE-RJ, mas não obteve retorno.

Minas Gerais, São Paulo e Pernambuco estão entre os estados que mais contribuem com perfis genéticos
Foto: Rede Integrada de Bancos de Perfis Genéticos

Desafios: do treinamento às condições materiais

“Os exames de DNA, dado o emprego de alta tecnologia e de metodologias científicas, oferecem resultados com alto grau de confiabilidade, que possibilitam a vinculação de vestígios criminais entre si ou com indivíduos identificados", afirma a perita Ana Claudia Pacheco, diretora do Núcleo de Biologia e Bioquímica do Instituto de Criminalística (IC).

Ela acha que “ainda falta preparo do meio jurídico para o entendimento dos métodos e potenciais resultados esperados das análises de DNA”. Mas reconhece os esforços recentes da Polícia Civil para suprir a atualização de conhecimento.

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Os profissionais responsáveis pelos laudos periciais devem ser peritos criminais oficiais do estado, concursados, com formação na área de ciências biológicas e, em sua maioria, com alta especialização no tema, adquiridos por títulos de mestrado, doutorado e pós-doutorado. 

O diretor do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Antonio Pedro Melchior, diz que o exame de DNA oferece contribuição relevante ao sistema de justiça. Entretanto, ele cita obstáculos no país, como condições inadequadas de trabalho e ausência de controle judicial da "confiabilidade de determinados exames periciais”. 

“Estes problemas favorecem a confecção de laudos enganosos que podem conduzir a condenações errôneas. No caso do Rio de Janeiro, as deficiências estão relacionados ao baixo investimento financeiro nas perícias técnicas, que sofrem todo tipo de privação para realizar o seu trabalho”, disse Melchior. 

Para ele, a capacitação das perícias no uso de perfis genéticos deve ser reforçada. “Isso não significa que não temos profissionais habilitados no país. O que faltam são condições materiais, integração entre órgãos técnicos e vontade política para discutir a necessária autonomia da perícia da estrutura policial”, afirma. 

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Minas Gerais tem o maior banco de perfis genéticos do Brasil
Foto: ASCOM-PCMG

O professor de Criminologia da Universidade de São Paulo (USP) Mauricio Stegemann Dieter, cita que o Banco Nacional de Perfis Genéticos é “extremamente problemático”.

“Existem hoje aparelhos rápidos e portáteis que fazem exame em DNA, mas a banalização da tecnologia vem acompanhada de muitos problemas. Assim, por exemplo, algumas amostras acabam sendo destruídas ou corrompidas no processo de verificação, impedindo contraprova e, com isso, o exercício do direito ao contraditório”, explica.

Ele acrescenta aos problemas a frequente contaminação do material analisado e a pouca instrução para os peritos — que geralmente é oferecida pelas empresas privadas que vendem essa tecnologia.

“Quanto mais conhecemos as técnicas e a tecnologia no uso de exame em DNA como evidência forense, maiores são os riscos de erro de procedimento ou de conclusão descobertos”, afirma o professor.

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Porém, Dieter acredita que essa ferramenta deveria ser usada na justiça para afastar hipóteses acusatórias, eliminando suspeitos por meio de consulta comparativa.

Especialistas comentam os problemas que envolvem o uso de análise de DNA na Justiça brasileira
Foto: DcStudio via Freepik

Como melhorar o processo de DNA nas investigações

No relatório “A Regulamentação da Base de Dados Genéticos para Fins de Persecução Criminal no Brasil”, a doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) Taysa Schiocchet cita que os perfis genéticos não oferecem resultados de identificação absoluta e, portanto, não são irrefutáveis.

O documento sugere a harmonização das normas com aquelas reconhecidas internacionalmente, para haver mais controle dos procedimentos técnicos e científicos e a possibilidade de contraperícia. 

“No Reino Unido, por exemplo, existe regulamentação detalhada e rigorosa que determina, dentre outras questões, que as mostras devem ser lacradas e etiquetadas na frente do doador, a temperatura de conservação da amostra e o prazo de entrega em 48h”, afirma Schiocchet.

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“Além disso, dispõe que o laboratório não deve aceitar as amostras que sejam entregues em condições insatisfatórias, ou seja, sem a devida identificação ou cuja consistência seja motivo de suspeita”, completou. 

Por fim, o relatório sugere à Justiça brasileira critérios de inserção, manutenção e exclusão tanto dos perfis de DNA extraídos e analisados quanto das amostras coletadas; a eventual necessidade de que a coleta da amostra genética seja realizada com o acompanhamento de um advogado; e antever a possibilidade de utilizar a prova para apurar outros delitos.

Fonte: Redação Byte
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