Em frente a uma pequena fila de pessoas tirando foto do rosto e dos olhos com uma estrutura metálica redonda na altura da face, duas jovens caminham e comentam: “Você viu isso? Gente recebendo dinheiro em troca do registro da íris...”, diz uma. A outra, também surpresa, comenta: “Meu Deus!” O fenômeno vem ganhando força em várias partes de São Paulo e do mundo, com o aplicativo World ID, que promete, por meio da verificação de dados biométricos, como o registro da íris, criar uma rede de identidade humana global.
Receba as principais notícias direto no WhatsApp! Inscreva-se no canal do Terra
O World ID, desenvolvido pela empresa Tools for Humanity (TFH), tem como objetivo garantir uma "identidade única humana" por meio de um processo que requer o escaneamento da íris de usuários em troca de criptoativos.
A proposta é simples: você registra sua íris, ganha uma recompensa em criptoativos da plataforma, Worldcoin, e se torna parte de uma rede que promete não apenas permitir a verificação de sua identidade, como também possibilitar uma transação financeira de moedas digitais, conforme explicação da empresa. A promessa de dinheiro fácil e anonimato atraiu brasileiros para se submeter ao processo.
Nas redes sociais, vídeos de pessoas que foram "vender as íris" se popularizaram. Em um registro, que conta com milhares de comentários de pessoas curiosas, uma internauta brinca que o namorado "vendeu a íris para o Elon Musk" sem se preocupar.
O processo e as recompensas
Em um dos 38 pontos de coleta, no centro de São Paulo, onde o World ID instalou Orbs, o Terra esteve presente para observar o processo nesta quinta-feira, 16. De acordo com o gerente da unidade, o local tem atraído cerca de 800 participantes por dia desde a instalação, há duas semanas.
Ele relatou que uma das maiores dificuldades tem sido explicar cada etapa do processo para os participantes durante a triagem, já que muitos chegam sem entender como funciona o registro.
A triagem é dividida em quatro partes: explicação do processo, registro da íris, confirmação e explicação do pagamento. Durante todas as etapas, a equipe de aproximadamente oito pessoas utiliza palitos para apontar e orientar os participantes sobre como realizar o registro diretamente em seus celulares, evitando tocar nos aparelhos. Apesar do esforço, o gerente afirmou que o trabalho de orientação é indispensável.
Rogério Yogi, fisioterapeuta de 42 anos, contou que foi incentivado por um amigo a registrar sua íris. "Eu trouxe minha irmã para fazer. Fiquei sabendo do aplicativo através de um amigo", disse ele, entre risos. Quando questionado sobre quanto estava recebendo pela verificação, ele revelou que inicialmente obteve R$ 344, mas que o valor agora gira em torno de R$ 240. "Coloquei de volta, para investir", contou.
A criptomoeda tem apresentado comportamento volátil, oscilando entre $ 1,88 (R$ 11,33) e $2,70 (R$ 16,28) em apenas uma semana. Conforme a TFH, em nota ao Terra, não se trata da venda do íris, como tem sido chamada a ação.
"Nenhum pagamento é oferecido aos usuários, que adquirem uma credencial para se comprovarem humanos na internet e recebem, opcionalmente, um token ou criptoativo. Fazendo uma comparação, é como se fosse uma ação do protocolo, que pode ser vendida no mercado, como se vende uma ação em bolsa, e o valor obtido dependerá do valor do ativo no momento da venda".
Henrique, de 24 anos e atualmente desempregado, também compartilhou sua experiência. "Eu vim participar de uma experiência. A gente ganha moedas em troca dessa repartição de informações", disse ele. Como muitos outros, Henrique ficou sabendo do World ID por meio de amigos e não demonstrou preocupação com o compartilhamento de dados. “Não, acho tranquilo", afirmou, minimizando os riscos envolvidos.
Proteção de dados
Embora os incentivos financeiros chamem atenção, as preocupações com a coleta de dados sensíveis, como a íris, têm gerado discussões mais profundas.
Desde sua criação, o World tem enfrentado uma série de críticas e batalhas judiciais em diversos países. Na Espanha, por exemplo, o serviço foi proibido devido à falta de transparência sobre o tratamento e a finalidade dos dados coletados, incluindo acusações de obtenção de informações de menores de idade e a impossibilidade dos usuários revogarem o consentimento após o registro.
Em Portugal, as operações da empresa também foram barradas, com as autoridades justificando a medida como forma de proteger o direito fundamental à privacidade e à segurança de dados pessoais, especialmente no caso de menores.
Na Coreia do Sul, o projeto foi multado em US$ 830 mil por violações à legislação de privacidade de dados, enquanto a Argentina aplicou sanções semelhantes à empresa.
Em nota à imprensa, a World afirmou que o processo de verificação é transparente e seguro, ressaltando que os dados são processados localmente em dispositivos chamados "orbs", que capturam uma foto da íris e a convertem em um código criptografado.
A empresa garante que as imagens da íris são excluídas após a verificação, e os dados criptografados são fragmentados por uma tecnologia chamada Computação Segura Multipartidária (SMPC), que permite calcular resultados sem que nenhuma parte tenha acesso aos dados em sua totalidade. A empresa também defende a ideia de que, com a exclusão dos dados, o usuário mantém o controle total sobre suas informações. No Brasil, já são mais de 400 mil registros.
Quanto à possibilidade do "login humano" ser usado em outras plataformas, a empresa afirmou: "vislumbra-se que a verificação de humanidade possa ser utilizada em plugins com outros aplicativos, mas até o momento nenhuma parceria está encaminhada nesse sentido".
No entanto, a Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) instaurou um processo de fiscalização em 11 de novembro de 2024 para investigar o tratamento de dados biométricos no contexto do World ID. A ANPD afirmou que tem monitorado o uso dessas tecnologias, preocupando-se com questões como o consentimento adequado para o tratamento de dados pessoais sensíveis, além dos riscos de discriminação e falhas de segurança.
A TFH, por sua vez, afirmou que há planos de expansão de pontos de coleta para além de São Paulo, que serão anunciadas "oportunamente".