Quase 260 milhões de pessoas passam fome no mundo, segundo levantamento da Organização das Nações Unidas (ONU) na quarta-feira passada (3). Para além de questões políticas, econômicas e sociais, a tecnologia poderia ajudar a melhorar o quadro da producão de alimentos. As fazendas verticais, que usam 97% menos água em relação a uma plantação tradicional e dispensam o uso de pesticidas, são um exemplo disso.
O conceito, também chamado de agricultura interior, seria viável em um país como o Brasil, segundo especialistas ouvidos por Byte para esta reportagem. No entanto, esse tipo de plantação precisaria se aliar à produção agrícola nacional de forma massiva para isso acontecer.
Estima-se que o mercado de fazendas verticais e urbanas vai triplicar nos próximos três a cinco anos, com volume global de negócios dos US$ 3 bilhões em 2021 para mais de US$ 10 bilhões até 2026. No Brasil, o movimento não é muito diferente. De acordo com o Radar Agtech, levantamento publicado em 2023 referente a 2022, já existem mais de 20 fazendas verticais ou urbanas no Brasil.
Nos Estados Unidos, a estimativa é de que haja mais de 2 mil plantações deste tipo. O conceito de fazenda vertical surgiu com Dickson Despommier, professor emérito da Columbia University (EUA), que conduz estudos nesta área desde 1999.
Como funcionam as fazendas verticais?
Com a agricultura interior, as influências ambientais nas plantas podem ser precisamente determinadas. O local é monitorado 24 horas por dia. LEDs controlam quanta luz as plantas recebem, e a temperatura, umidade, teor de dióxido de carbono (CO2) no ar e nutrientes no solo podem ser modificados para fomentar o crescimento ideal das plantas.
As plantas são cultivadas em um tipo de hidrocultura chamada hidropônica, em paletes (verticais) empilhados. Isso permite que a mesma quantidade de alimentos seja produzida em uma área física muito menor do que a usada nas plantações convencionais.
Soluções de automação e digitalização otimizam o cultivo e a colheita das fazendas verticais. A robótica e a automação atuam na produção. Já a computação de borda — uma tecnologia que melhora a comunicação entre as máquinas e o ambiente físico — monitora a gestão de colheitas e controla as condições ambientais.
Em uma das maiores feiras de tecnologia do mundo, a Hannover Messe, na Alemanha, a multinacional de soluções industriais Siemens apresentou um projeto de fazenda vertical em parceria com a startup 80 Acres Farms, líder em agricultura interior sediada em Ohio (EUA).
As duas empresas digitalizam e dimensionam fazendas indoor, possibilitando que a startup produza 300 vezes mais alimentos por metro quadrado do que uma terra agrícola similar com meios tradicionais de cultivo.
“O projeto da Siemens está acelerando esse progresso, permitindo-nos construir mais rapidamente, em mais lugares. Portanto, quanto mais dados você tiver, mais conhecimento terá sobre como suas plantas estão crescendo, é mais previsível”, disse Rebecca Haders, vice-presidente de marketing da 80 Acres.
As vantagens da fazenda vertical
Andre Gildin, coordenador da especialização de gestão do agronegócio do Ipog (Instituto de Pós-graduação e Graduação), afirma que existem várias razões para este crescimento, a começar pelos desafios do setor de alimentos.
“Temos uma população crescente no mundo e no Brasil, ou seja, uma demanda crescente por alimentos. O Brasil é hoje, e continuará sendo o principal produtor de alimentos no mundo, o que exige um crescimento de produção e distribuição”, disse.
Gildin também menciona o desperdício de mais de 30% do que é produzido, além do desafio do uso da água, com riscos de secas e baixas de reservatórios.
Simone Mello, professora de fitotecnia da USP (Universidade de São Paulo) e especialista em produção de hortaliças em fazendas verticais, diz que essa nova indústria é promissora e soma benefícios para a saúde da população.
Nesse tipo de ambiente a água é constantemente tratada, principalmente por meio de radiação ultravioleta C, eliminando contaminação por fungos, bactérias e vírus. Além disso, pelo fato da produção ser em ambiente fechado e climatizado, reduz-se a chance de haver patógenos no ar. “É possível a gente ter um controle muito mais eficiente das práticas de manejo e do ambiente”, explica a especialista.
Inteligência artificial na agricultura vertical
Como em quase tudo hoje em dia, a inteligência artificial também está turbinando soluções de fazendas verticais. Veja exemplos:
- Controle climático: algoritmos de IA regulam o microclima dentro das fazendas verticais. Ao analisar fatores como temperatura, umidade e intensidade de luz, os sistemas controlados por IA podem criar o ambiente ideal para cultivos específicos;
- Monitoramento das plantas: algoritmos de visão computacional (que analisa e extrai dados de imagens reais) e aprendizado de máquina são empregados para monitorar a saúde e o crescimento das plantas. Isso permite que os agricultores detectem doenças, pragas ou outros problemas precocemente e os solucionem com antecedência;
- Análise preditiva: a IA checa dados históricos e em tempo real para prever o momento ideal para plantio, colheita e outras atividades agrícolas. Isso ajuda a melhorar o gerenciamento de recursos e reduzir o desperdício;
- Otimização de recursos: A IA controla o consumo de água, nutrientes e energia nos sistemas de agricultura vertical, garantindo a sustentabilidade e eficiência da operação.
Fazenda vertical x tradicional
Em entrevista exclusiva a Byte, a diretora global de sustentabilidade da Siemens, Judith Wiese, falou sobre o mercado no Brasil e como a tecnologia das fazendas verticais pode impactar o país, disse que o Brasil ainda tem muita agricultura tradicional e não acha que isso não vai desaparecer rapidamente.
"No entanto, qual é o benefício da agricultura digital? Você basicamente leva comida para onde mora muita gente, sem perder nada na logística”, explica.
“Se você pensar bem, 40% da comida vai para o lixo. E isso é no caminho para o consumidor através das cadeias logísticas. Então você diminui a emissão de carbono, e também a perspectiva de desperdício. E eu poderia imaginar isso [fazendas verticais] nas metrópoles do Brasil, nas grandes cidades, como São Paulo, por exemplo”, complementa.
Para André Gildin, o Brasil tem tecnologia e modelo de cadeia produtiva eficiente para produiz grãos e fibras em grande escala. Portanto, acha que as fazendas verticais e urbanas vão ficar restritas a hortifrútis nos próximos anos.
Desafios deste setor no Brasil
Apesar de promissoras por agregarem uma produção mais sustentável ao setor de alimentos, as fazendas verticais ainda esbarram em alguns desafios. Simone Mello, da USP, afirma que há tendência de expansão da ideia nos grandes centros urbanos; mas alerta para o consumo de energia.
“Essa tecnologia ainda tem um custo relativamente alto, por ser um ambiente totalmente climatizado e a iluminação totalmente dependente da iluminação artificial, o que necessita de maior consumo de energia elétrica. Mas, a geração de energia limpa, como a energia solar e eólica, são tendências que podem apresentar redução no custo de produção”, disse a professora.
José Damico, CEO da empresa de soluções para agronegócio SciCrop, destaca que o custo de produção está entre os principais desafios. As fazendas verticais precisam receber luz por fontes elétricas, que alimentam lâmpadas de LED com espectro em diversos comprimentos de onda. Essas peças são caras e consomem muita potência.
"Ainda sobre o custo de produção, essas fazendas verticais normalmente funcionam com aquaponia ou hidroponia, que necessitam de fontes de água privadas, ou seja, pagas. Além disso, essa água precisa de bombas para circularem até as plantas, o que significa mais um custo de eletricidade", inclui o especialista.
Damico aposta nesta alternativa em cidades com alta densidade populacional e alto poder aquisitivo, longe de produtores em áreas rurais, onde o custo de transporte e refrigeração seriam altos demais.
"Ainda assim, é muito difícil concorrer com países como o Brasil, onde sempre existe a proximidade de cinturões de produção agrícola, a abundância de luz solar (somos tropicais) e de chuva, com vasta área agricultável, a custos menores", diz o CEO da SciCrop.
* A repórter viajou a Hannover, na Alemanha, a convite da Siemens