Não é à toa que a imagem que vêm à cabeça quando alguém fala em 'nerd' é a de um homem: a presença das mulheres na tecnologia é muito baixa em relação à dos homens. É por isso que a programadora Valerie Aurora, uma das palestrantes desta quinta-feira do Fórum Internacional Software Livre, em Porto Alegre, criou a Ada Iniciative. A ONG realiza ações para aumentar a participação das mulheres no mundo da tecnologia livre.
"Muita gente acha que no mundo do software livre há mais mulheres que no mercado privado, mas é o oposto. Como trabalhamos em geral à distância, com contatos apenas digitais, as pessoas são mais sexistas e mais agressivas (nas piadas)", explica a programadora ao Terra. Os números que ela tem indicam que, nos estados unidos, 20% dos profissionais de tecnologia são mulheres, e apenas 2% trabalham com software livre.
Segundo Valerie, o Brasil tem os mesmos números que o resto do mundo: entre 5 e 10% dos estudantes da área de computação e programação são mulheres. E o número de profissionais tem até diminuído em países como Estados Unidos, Suécia e Dinamarca - o mercado americano, por exemplo, viu metade das mulheres da área deixarem a profissão nos últimos dez anos.
Por outro lado, em lugares como Índia e Malásia os índices estão crescendo. "Nesses países, a ciência da computação é vista como uma boa carreira, não como uma profissão masculina, por isso os pais querem que suas filhas entrem no ramo", explica.
E de onde vem o preconceito?
"Muitas pessoas têm se perguntado isso, mas ninguém sabe realmente a resposta. A primeira programadora do mundo era uma mulher; foram mulheres que programaram o primeiro computador do mundo, o ENIAC. O que eu acho é que em algum momento houve um processo de dar à profissão um alto status, e é claro que as mulheres não têm alto status", opina.
Uma das principais dificuldades enfrentadas pelas mulheres na tecnologia é o assédio, tanto moral quanto sexual.
"Se você fala para alguém que agressão física contra mulher é ruim, todo mundo concorda. Mas se você diz que mandar uma piada sexista por e-mail é ruim, as pessoas respondem, 'são só palavras, isso não é ofensivo", ilustra Valerie.
Por isso, a Ada Iniciative concentra esforços em convencer organizadores de eventos a criarem políticas antiassédio, para atrair a participação feminina, tanto como inscritas quanto como palestrantes. O fisl desse ano é um dos encontros que aceitou e publicou as normas contra agressões físicas, piadas sexistas e outras atitudes do gênero para os participantes - quem desrespeitar as regras pode ser convidado a se retirar do evento.
Outro problema que as mulheres enfrentam é o descrédito por parte dos pares, o que leva à chamada síndrome do impostor, quando a mulher acha que seu trabalho é inferior ao de colegas homens, mesmo que não seja o caso na maioria das vezes. "Isso aconteceu comigo. Uma pessoa que eu admirava muito chegou para mim e perguntou, 'o que você já escreveu? você não é programadora'. E fiquei me sentindo péssima, depois de dois anos escrevendo códigos e programando dia e noite, eu não sou programadora?", relata.
Luta contra o preconceito
Mesmo sendo uma vítima, ela mesma, do preconceito por gênero, Valerie só decidiu montar a Ada Iniciative após ouvir a história de uma amiga, também programadora. "Na mesma conferência passaram a mão nela três vezes. Um homem chegou a colocar a mão dentro da calça dela", conta Valerie. "Depois disso eu falei: 'chega, isso é demais'".
A ONG que ela criou e da qual é diretora-executiva foi batizada em homenagem a Ada Lovelace, a primeira programadora do mundo. "A gente ouve cada coisa. 'Você só está aqui porque é mulher' - e é simplesmente a coisa mais estúpida, por é bem o contrário", continua. Ativista dos direitos das mulheres, ela decidiu que era preciso tomar uma atitude para evitar essas situações no mundo da tecnologia. "Para mim é uma carreira tão boa, eu ganhei muito dinheiro, viajei o mundo, gostaria que outras mulheres optassem por essa profissão também", resume.
Os dados que Valerie têm apontam que no mundo corporativo as programadoras e cientistas da computação sofrem um pouco menos de agressão, o que ela atribui às rígidas políticas internas das companhias. "Mas no software livre não é como se você corresse o risco de perder o emprego por causa disso", opina.
Como em geral trabalham à distância, os profissionais do setor se encontram em conferências. "É o único lugar onde você pessoalmente as pessoas com quem você trabalha. É onde você faz contatos profissionais, onde surgem as ideias. Quem quer estar nesse mercado precisa ir a esses eventos", afirma, justificando a escolha de começar a luta contra o preconceito nesses ambientes.
Segundo a diretora-executiva da ONG, as conferências de tecnologia livre também são lugares mais abertos a esse tipo de alerta contra o preconceito. "Em geral os organizadores são pessoas em busca de justiça social, e eles querem atrair mais pessoas para o evento. Uma política que proteja as mulheres atrai essas profissionais", explica.
Para Valerie, a maioria das pessoas não se dá conta de que está sendo sexista. "Eles não percebem que há mulheres no lugar. Também é mais difícil perceber quando só há nenhuma", ironiza. Mas mais do que aplicar as políticas aos poucos dias dos eventos, a diretora-executiva explica que, uma vez que as pessoas se dão conta do preconceito, "elas pensam sobre isso em outros lugares".
Entre as grandes conquistas desde que começou a trabalhar, Valerie cita a consultoria que sua ONG prestou ao Google para a construção da política antiassédio do Google I/O, a conferência anual do gigante de buscas para desenvolvedores. "Está publicada no site", acrescenta, com um sorriso de fora a fora no rosto. Outro sucesso que a Ada Iniciative conseguiu nesse sentido foi fazer a Python US, conferência americana para programadores da linguagem, bater o recorde de participantes e palestrantes mulheres: 20% em 2012.
As maiores dificuldades e frustações, por outro lado, vêm das conferências de segurança digital. "Eles têm um sentimento que me parece de serem os rebeldes da computação, além da fronteira da lei. Sempre se opõem muito à criação de uma política antiassédio", conclui.