A indústria do entretenimento enfrenta uma revolução digital que vai além das telas de cinema e dos sets de filmagem. A recente greve dos atores e roteiristas em Hollywood, que abrange não apenas aqueles que aparecem fisicamente em tela, mas também os artistas de voz que dão vida a personagens de animações originais, ressalta um dos pontos cruciais dessa transformação.
Dois pontos são essenciais para entender os conflitos de interesse entre os estúdios de cinema e os artistas: a dominância das plataformas de streaming e o uso de inteligência artificial (IA).
Os atores pedem revisão de ganhos residuais por streaming, além de aumento de salários e outras reivindicações. No que diz respeito à IA, a preocupação é a recriação digital da imagem e da voz de diferentes atores em uma produção. Atualmente, há pouca regulamentação em torno do que o estúdio pode fazer com a "digitalização" da imagem e da voz dos atores no futuro.
O Sindicato de Atores (SAG-AFTRA) está desde julho em paralisação, dois meses que o Sindicato de Roteiristas dos EUA (WGA) fez o mesmo. As greves começaram após as duas organizações não conseguirem chegar a um acordo com a Alliance of Motion Picture and Television Producers (AMPTP), entidade que representa empresas de audiovisual como Sony, Disney e Warner.
A IA na dublagem
No cerne da evolução da dublagem, a IA pode ser usada na forma de deepfake. A técnica é projetada para sintetizar vozes humanas com precisão e detalhes, imitando nuances sutis, entonações e características únicas de diferentes indivíduos.
O funcionamento dessas IAs é alimentado por algoritmos complexos de processamento de linguagem natural e aprendizado profundo. Elas processam grandes quantidades de amostras de voz, que podem incluir gravações de atores, dubladores e até mesmo de pessoas comuns.
O ator de voz Alejandro Graue é exemplo disto. Ele publicava vídeos em seu canal no YouTube onde o conteúdo em inglês teria que ser dublado para espanhol. Para sua surpresa, um dia o perfil publicou um novo vídeo em espanhol — no qual ele não havia trabalhado.
Em entrevista à BBC, Graue explicou: "Quando cliquei no vídeo, o que escutei não foi minha voz, mas uma voz gerada por inteligência artificial — uma dublagem muito mal sincronizada. Foi terrível. E eu fiquei pensando: O que é isso? Vai ser meu novo colega de trabalho no canal? Ou vai me substituir?", relembra.
Um telefonema para o estúdio em que trabalhava confirmou: o cliente queria experimentar a inteligência artificial porque era mais barato e mais rápido. Mas o resultado não foi bom: os espectadores reclamaram da qualidade da dublagem e, por fim, o canal retirou os vídeos que apresentavam a voz gerada por IA.
No cinema, o filme "Supernova" (2020), estrelado por Colin Firth e Stanley Tucci, utilizou uma IA desenvolvida pela empresa inglesa Sonantic para aprimorar a qualidade do áudio das vozes dos atores.
Embora não tenha substituído completamente as vozes dos atores, a tecnologia ajudou a melhorar a clareza e a qualidade das falas durante a pós-produção.
Outras aplicações de deepfake envolvem a produção de conteúdo de humor. É o caso do brasileiro Bruno Sartori, jornalista, humorista e editor de vídeo, que, há alguns anos, evolui no uso da técnica.
E o futuro?
Raul Colcher, membro sênior do IEEE (Instituto dos Engenheiros Elétricos e Eletrônicos), enxerga a inteligência artificial como prestes a tornar obsoleta e substituir integralmente a profissão de dublador.
“A tecnologia necessária a essa substituição massiva encontra-se essencialmente disponível e será provavelmente melhorada de forma radical no futuro próximo”, disse.
Exemplo disto são caixas de supermercado. Com o avanço das tecnologias de automação, a necessidade de humanos atuando nessas profissões tem diminuído, especialmente para transações simples.
Outro caso são os atendentes de telemarketing. Empresas já usam chatbots e sistemas de atendimento automatizado para lidar com consultas e suporte ao cliente, reduzindo a demanda por atendentes humanos.
O caso mais recente foi a campanha da automotiva Volkswagen, que promoveu um "encontro" da cantora Maria Rita com sua falecida mãe, Elis Regina.
Nas redes sociais, o debate sobre ética e privacidade ganhou a cena. Diogo Cortiz, professor da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo) e pesquisador de inteligência artificial, falou que o debate deve ser intenso no futuro, com a IA criando realidades alternativas e novos mundos.
"Esse comercial ficou uma obra-prima, mas, claro, surgem muitas novas questões éticas, filosóficas para os próximos anos", tuítou.
Questões econômicas
A inteligência artificial, ao substituir a voz de um humano, cruza uma linha tênue que nos faz perguntar: por que criar um aparato assim?
“A resposta parece surgir intuitiva: lucro. A ideia da IA neste específico caso (bem como naqueles que “criam” textos, roteiros, petições, etc.) é economizar, transformando os seres humanos em meros fornecedores de conteúdo”, disse Amaury Marques, advogado especialista em direito do entretenimento.
Colcher, do IEEE, ressalta que as questões comerciais, econômicas, sociopolíticas, regulatórias e culturais serão resolvidas a curto prazo.
“Exemplos óbvios imediatos são a necessidade de adaptar os contratos de atores para cobrir os aspectos de propriedade intelectual relacionados ao uso de suas vozes e de lidar com o desemprego no setor”, avaliou.
Regulamentação também é um ponto
A regulamentação da inteligência artificial já é realidade em alguns países da Europa. Para garantir melhores condições para o uso de desenvolvimento da tecnologia, a Comissão Europeia propôs o primeiro quadro regulamentar da União Europeia para a IA em 2021.
A ideia é que os sistemas de IA sejam analisados e classificados de acordo com o risco que representam para as pessoas que as usam.
A discussão também chegou ao Brasil: em maio deste ano, o projeto de lei (PL) 2.338/2023, de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG), que preside a Casa, propõe a regulação da inteligência artificial no Brasil.
Ainda que não haja uma legislação específica para a IA, há limites impostos pelos ramos do direito que protegem os direitos de autor e conexos. O mesmo vale para a imagem deles, considerando-se não só a “fotografia” mas todos os elementos que distinguem os seres humanos uns dos outros e a humanidade dos demais seres.
Nesse sentido, afirma Marques, a questão legal hoje se restringe à autorização constante de cláusulas contratuais. Assim, o dublador “cede” seu direito de imagem e permite a utilização de sua voz, indistintamente e em qualquer trabalho futuro.
"Sem a autorização expressa do dublador, não há como (legalmente) utilizarem-se de sua voz em inteligência artificial. O que parece resolver a questão: quem não quiser que sua voz seja exposta em trabalhos para os quais nada recebeu, basta não concordar com a cláusula", avalia o advogado.