Uma questão importante sobre inteligência artificial (IA) tem tomado conta das redes sociais nos últimos dias: quem tem o QI (quociente de inteligência) mais alto, o homem ou a máquina?
A opinião mais recente partiu do youtuber Felipe Castanhari em uma participação no podcast Podpah; ele fez uma comparação do QI do ChatGPT, da OpenAI — que ele afirma ser de "mais ou menos" 155 — com o do cientista Albert Einstein, que era de 160.
Na fala de Castanhari, o youtuber diz que uma futura possível atualização do programa, ainda não confirmada pela empresa, seria dez vezes maior, superando o de Einstein.
"Se o Einstein, tendo duas vezes o QI de uma pessoa mais lentinha, conseguiu transformar totalmente a Humanidade.... A gente não teria GPS se não fosse Einstein. (...) então a gente está a uma atualização...", disse Castanhari. "Da era de Ultron", completou o apresentador Cauê Moura, comparando a IA com o robótico supervilão do universo Marvel.
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— Podpah (@Podpah) June 30, 2023
O conteúdo viralizou com usuários questionando se, de fato, é possível comparar certos tipos de inteligência artificial, como o modelo de linguagem de grande escala (LLM), com a de humanos. O grande argumento de quem é contra essa comparação é que não é possível dizer que há “inteligência” real nos LLMs.
Isso porque eles são sistemas treinados com grandes volumes de dados, que realizam matemática e estatística em alta velocidade para prever sequências de palavras. O modelo não tem consciência do que está respondendo ao gerar texto.
O que é QI, afinal?
Para essa discussão fazer sentido, primeiro é necessário recuperar o significado de QI. O termo foi criado pelo psicólogo alemão William Stern em 1912 e funciona como uma medida da capacidade de raciocínio de um indivíduo.
Em outras palavras, o quociente mede o quanto uma pessoa pode usar de lógica e informações para responder perguntas ou chegar a conclusões razoáveis de conhecimento. Os testes de medição de QI são projetados para avaliar as habilidades cognitivas em várias áreas, como raciocínio lógico, memória, habilidades verbais e habilidades visuais-espaciais.
Esses testes geralmente envolvem uma série de perguntas, que variam em formato e complexidade, com o objetivo de medir a capacidade de solucionar problemas.
No entanto, os testes de QI têm suas limitações e não são capazes de medir totalmente a inteligência ou prever o sucesso em todas as áreas da vida. Afinal. existem muitos outros aspectos que contribuem para a inteligência e o desempenho humano.
QI de humanos x inteligência artificial
Felipe Castanhari não foi o único a comparar recentemente a mente humana com a de robôs. Conhecido como "padrinho da IA", o psicólogo e cientista da computação Geoffrey Hinton pediu para se afastar do Google em maio. Na ocasião, afirmou que a inteligência artificial em modelos como o ChatGPT poderá, no futuro, superar a de humanos.
Apesar das afirmações causarem estranheza, o pós-doutor em neurociências e professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e autor do livro “De Futuro em Futuro”, Álvaro Machado Dias, disse em entrevista ao Byte que a comparação entre o QI humano e a de robôs é viável e esperada. Mas há ressalvas sobre a possível superação à inteligência do homem.
Afinal, a IA poderá até superar os humanos em tarefas específicas, como cálculos complexos ou reconhecimento de padrões. Mas a inteligência de uma pessoa continua a ser única em sua capacidade de compreender e interagir com o mundo de maneira geral.
“O teste de QI é baseado em um teste de raciocínio que uma IA consegue emular. A discussão diferente é se a IA consegue superar o humano no ambiente interágico”, avaliou o neurocientista.
Tarefa difícil
A tarefa de comparar a inteligência humana com a artificial é um desafio complexo devido à natureza diferente desses dois tipos. De um lado, a inteligência do indivíduo é moldada pela nossa experiência, emoções, intuição e capacidade de adaptação; do outro, a IA é baseada em algoritmos, cálculos e modelos matemáticos.
Outro ponto é que a inteligência humana também é caracterizada por uma ampla gama de habilidades, como criatividade, empatia, senso ético e pensamento crítico, que são difíceis de serem replicadas pela IA.
Já a medição da capacidade da inteligência artificial geralmente é avaliada por meio de benchmarks e testes de desempenho específicos. Esses exercícios podem incluir tarefas como reconhecimento de imagem, processamento de linguagem natural e jogos estratégicos.
Um artigo publicado na revista científica Scientific American em março deste ano demonstrou a mesma dúvida: saber qual o QI do ChatGPT, já que ele se mostrou o candidato ideal em diversas matérias e provas para universidades.
O autor, Eka Roivainen, é psicólogo de avaliação no Oulu University Hospital, na Finlândia, e resolveu testar a inteligência da máquina baseando-se em perguntas-testes feitas para humanos.
O teste usou a escala Wechsler de inteligência para adultos (WAIS), mais comumente usada para medir o QI. A terceira edição utilizada no experimento consiste em seis subtestes verbais e cinco subtestes não-verbais que compõem os componentes Verbal IQ e Performance IQ, respectivamente.
No estudo, foi possível testar o ChatGPT porque cinco dos subtestes da escala de QI verbal – vocabulário, semelhanças, compreensão, informação e aritmética – podem ser apresentados na forma escrita.
Um sexto subteste da escala de QI verbal é o Digit Span, que mede a memória de curto prazo. Mas não pode ser administrado ao chatbot, devido à falta do circuito neural relevante que armazena brevemente informações como um nome ou número.
Estimado com base em cinco subtestes, o QI verbal do ChatGPT foi de 155, superior a 99,9% dos examinandos que compõem a amostra de padronização americana WAIS III de 2.450 pessoas.
“Como o chatbot não possui os olhos, ouvidos e mãos necessários, ele não é capaz de realizar os subtestes não-verbais do WAIS. Mas as escalas de Verbal IQ e de Full Scale IQ estão altamente correlacionadas na amostra de padronização, então o ChatGPT parece ser muito inteligente para qualquer padrão humano”, escreveu o autor.
Ao comentar o teste da Scientific American e as falas de Castanhari, Diogo Cortiz, professor da PUC-SP e pesquisador no NIC.br (Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR), disse em um post no Linkedin que "não existe consenso sobre o que é inteligência e nem sobre como medi-la".
"A própria OpenAI afirmou que não está treinando o GPT-5, então qualquer fala sobre a sua capacidade é especulação. Não há como saber que o GPT não tenha sido treinado com esse tipo de teste. Pode ser que estamos dando uma prova para quem tem o gabarito", concluiu.
As máquinas e as pessoas
E é esse o ponto-chave para a discussão de que um robô poderia superar o QI de Einstein: tais máquinas não existem ainda e estão longe disso, segundo Machado Dias.
De acordo com o neurocientista, se houver um algoritmo do ChatGPT-5 ou ChatGPT-6, ele pode até ter uma performance melhor do que 99% dos alunos brasileiros no Enem, por exemplo. Mas isso não quer dizer que esses modelos estejam superando a inteligência humana em outras dimensões.
“Existem limitações. A ideia de comparar a base dos algoritmos atuais ao ser humano funciona quando usamos testes psicométricos muito precisos [como QI], mas no mundo real isso não tem sentido”, afirma.
Outro exemplo mais prático é que, apesar do seu alto QI, o ChatGPT ainda falha em tarefas que exigem um raciocínio humano real ou uma compreensão do mundo físico e social. No dia 5 de julho a reportagem de Byte fez um teste com a inteligência artificial da OpenAi e perguntamos: “Qual é o primeiro nome do pai dos filhos de Sebastian?"
O ChatGPT respondeu: "Lamento, mas como um modelo de linguagem baseado em texto, não tenho acesso a informações em tempo real sobre indivíduos específicos, como Sebastian ou sua família. Além disso, sem contexto adicional ou detalhes específicos, não posso fornecer o primeiro nome do pai dos filhos de Sebastian."
Nesta situação, o ChatGPT falha em raciocinar logicamente e tenta confiar em seu vasto banco de dados com o termo “Sebastian” mencionados em textos online.
Por essa razão, Machado Dias não acredita que modelos de inteligência artificial com o QI alto possam superar humanos em um futuro próximo. Mas o professor avalia que o pode pode acontecer é uma facilitação das descobertas científicas por conta dos algoritmos.
"Isso já está acontecendo e vai acontecer cada vez mais. Mas achar que o próximo Einstein é um algoritmo é uma ingenuidade total", disse.