A proibição do ministro do Supremo Tribunal Federal Alexandre de Moraes ao X (ex-Twitter) não é a primeira vez que a Justiça brasileira suspende uma plataforma de mídia social no país e entra em colisão com um bilionário poderoso do mundo da tecnologia.
Em 2022, o mesmo Alexandre de Moraes determinou a suspensão do serviço do aplicativo de mensagens Telegram no Brasil, em circunstâncias parecidas com as de agora.
Como acontece com o X e Elon Musk agora, o STF determinou na época que o Telegram precisaria indicar um representante legal no país e precisaria excluir canais que estavam divulgando dados de um inquérito sigiloso da Justiça brasileira.
Horas depois da divulgação da decisão de Moraes, o diretor-executivo da companhia, o bilionário russo Pavel Durov, divulgou um pedido de desculpas e anunciou que estava começando a cumprir as ordens da Justiça brasileira.
Alguns dias depois, Moraes reverteu a decisão de suspender o Telegram no país.
Nesta semana, enquanto Moraes determinava a suspensão do X no Brasil, Pavel Durov também foi manchete internacional.
Ele foi preso na França, acusado pelas autoridades do país de não tomar medidas para impedir o uso criminoso do Telegram. A BBC apurou que o Telegram se recusa a participar de programas internacionais destinados a detectar e remover material de abuso infantil online.
Moraes e o Telegram em 2022
Em 2022, autoridades brasileiras reclamavam da postura do Telegram diante de investigações e pedidos feitos pela Justiça.
O Tribunal Superior Eleitoral (TSE), responsável pela condução das eleições brasileiras, pediu por meses colaboração do Telegram para combater a propagação de fake news em canais de conteúdo político.
O Ministério Público Federal, que atua sobre crimes cometidos na internet, queria discutir mecanismos contra delitos como pornografia infantil e venda de armas dentro da plataforma.
Cartas judiciais foram ignoradas. Uma correspondência enviada para a sede da empresa em Dubai chegou a ser devolvida para o TSE.
Em março de 2022, Alexandre de Moraes determinou, a pedido da Polícia Federal, que a operação do Telegram fosse suspensa no Brasil sob a justificativa de que a companhia não respeitava medidas judiciais.
Moraes afirmou em seu despacho que "o aplicativo Telegram é notoriamente conhecido por sua postura de não cooperar com autoridades judiciais e policiais de diversos países, inclusive colocando essa atitude não colaborativa como uma vantagem em relação a outros aplicativos de comunicação, o que o torna um terreno livre para proliferação de diversos conteúdos, inclusive com repercussão na área criminal".
A ordem teve repercussão imediata. O bilionário Pavel Durov fez um pedido de desculpas a Moraes e o ministro revogou a ordem de bloqueio.
O Telegram removeu os links no canal oficial do então presidente Jair Bolsonaro que permitiam baixar documentos de um inquérito sigiloso e não concluído da Polícia Federal.
Essa investigação da PF dizia respeito à invasão do sistema do Tribunal Superior Eleitoral. O canal de Bolsonaro alegava que houve comprometimento as urnas eletrônicas, mas não havia evidências que sustentassem essa alegação.
O Telegram bloqueou, como determinado pelo STF, o canal do jornalista Cláudio Lessa, que era servidor da Câmara dos Deputados e fazia em seus canais elogios ao presidente e divulgava ataques a opositores da base bolsonarista.
Ele chegou a ser processado pelo Governo da Bahia durante a pandemia por mostrar imagens de hospitais superlotados, atribuindo à rede pública baiana, sendo que eram de Alagoas.
O Telegram também adotou uma série de medidas em resposta às exigências de Moraes:
- A companhia nomeou o advogado Alan Campos Elias Thomaz, da Campos Thomaz & Meirelles Advogados, como figura legal no país. A nota da empresa dizia: "Alan Campos Elias Thomaz tem acesso direto à nossa alta administração, o que garantirá nossa capacidade de responder as solicitações urgentes do Tribunal e de outros órgãos relevantes no Brasil em tempo hábil".
- o Telegram prometeu monitorar os 100 canais mais populares no Brasil.
- A empresa declarou que sua equipe foi instruída para acompanhar posts no X e de outras redes sociais sobre conteúdo dentro do Telegram potencialmente problemático. Haveria "resumos diários" para ajudar na moderação de conteúdo. "Acreditamos que se tivéssemos monitorado a mídia no Brasil antes, a crise atual poderia ter sido evitada", disse a carta ao STF.
- O Telegram também anunciou parcerias com agências de checagem de fatos, restrição a usuários banidos e um aviso para postagens que potencialmente contivessem informações imprecisas.
Um ano depois, em abril de 2023, o Telegram voltou a ser alvo da Justiça brasileira.
Desta vez, a ordem partiu do juiz Wellington Lopes da Silva, da Justiça Federal do Espírito Santo. A Polícia Federal havia solicitado ao Telegram informações sobre integrantes e administradores de dois grupos online que promoviam antissemitismo e conteúdo neonazista.
A suspensão era em caráter liminar e foi derrubada poucos dias depois por decisão do Tribunal Regional Federal (TRF) da Segunda Região, que manteve um multa diária de R$ 1 milhão.
Na revisão, o TRF disse que suspender o Telegram nacionalmente não era uma decisão razoável por afetar a liberdade de comunicação de milhares de pessoas "absolutamente estranhas aos fatos sob apuração".
O próprio Telegram e outras plataformas, como o WhatsApp, já foram alvos de liminares de primeira instância que suspenderam seu uso nacionalmente, mas acabaram derrubadas posteriormente em instâncias superiores.
Impasse com X
Estima-se que tanto o Telegram quanto o X tenham mais de 20 milhões de usuários no Brasil cada um.
Para o editor Mike Butcher, do site TechCrunch, a polêmica envolvendo X e o Brasil tem potencial para agravar a visão que as empresas têm da plataforma, algo que já vem acontecendo desde que Musk assumiu a rede social. Segundo ele, grandes empresas hoje em dia estão se distanciando do X.
"As grandes empresas estão cada vez mais abandonando a plataforma, por causa do aumento das vozes extremistas em todos os espectros políticos desde que Elon Musk assumiu a empresa e removeu diversos mecanismos de checagem contra discursos extremistas", disse Butcher à BBC.
"Cerca de 90% das receitas do X vêm de anunciantes, e na primeira metade deste ano a empresa perdeu 25% dessas receitas. E é tudo por causa da forma polêmica como Elon Musk administra o X."
Para Butcher, o bloqueio ao X pode favorecer uma migração em massa no Brasil de usuários para o Threads, plataforma semelhante do Instagram, que é controlada pelo grupo Meta, de Mark Zuckerberg.
"A Meta emprega muito mais recursos no seu engajamento com governos e em moderação do que Elon Musk", disse Butcher.
Ao contrário do que aconteceu no passado com o Telegram, a disputa atual entre o STF e o X não parece se encaminhar para um acordo.
Elon Musk foi incisivo em suas declarações contra a medida de Alexandre de Moraes.
"A liberdade de expressão é a base da democracia e um pseudo-juiz não eleito no Brasil está destruindo-a para fins políticos", disse Musk.
Em 17 de agosto, Musk fez o oposto de Durov: fechou o escritório do X no país, retirando o seu representante legal, justificando a decisão por causa das "exigências de censura".
No dia 8 de agosto, Moraes havia determinado o bloqueio de sete perfis de bolsonaristas na rede social. Dentre eles, o do senador Marcos do Val (Podemos-ES). O X, porém, não cumpriu a decisão judicial. O despacho ainda determinava uma multa de R$ 20 mil por dia.
Também a posição do STF é mais dura em relação ao X do que no episódio do Telegram.
Moraes determinou que a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) tome as providências para o bloqueio da rede, o que o órgao disse já estar em curso. O texto fixa ainda um prazo de até cinco dias para que todos os envolvidos na operação, incluindo empresas de telefonia e servidores, cumpram com o bloqueio da plataforma.
Musk é investigado no STF por acusações de obstrução à Justiça, organização criminosa e incitação ao crime. O bilionário também foi incluído no chamado inquérito das milícias digitais, que também tem outros investigados.
Moraes estabeleceu uma multa de R$ 50 mil por dia para pessoas físicas ou jurídicas que serviços de VPN para burlar o bloqueio e continuar acessando a rede social. O VPN permite que o usuário acesse a internet a partir da rede localizada em outro país e, portanto, sem as restrições locais.
Além disso, a Starlink, empresa de Musk que fornece internet para usuários em várias regiões do Brasil, alegou que teve suas contas bloqueadas por Moraes.
"Essa ordem é baseada em uma determinação infundada de que a Starlink deve ser responsável pelas multas aplicadas — de forma inconstitucional — contra o X. Foi emitida em segredo e sem conceder à Starlink o devido processo legal garantido pela Constituição do Brasil", diz um comunicado da empresa.
Ao comentar a notícia sobre o bloqueio de contas da Starlink, Musk disse que a medida é "ilegal" e escreveu que Moraes "é um criminoso declarado do pior tipo, disfarçado de juiz."
Questionado pela BBC News Brasil, o STF afirmou "não ter a informação" sobre o caso da Starlink.
França e Telegram
No Brasil, o Telegram não foi mais alvo de medidas do STF. Mas na França, Pavel Durov também virou alvo das autoridades nesta semana.
O bilionário, de 39 anos, foi detido por supostos crimes relacionados à falta de moderação na plataforma.
De acordo com as autoridades, ele é acusado de não cooperar com a polícia em investigações sobre tráfico de drogas, conteúdo sexual infantil e fraude.
O Telegram se recusa a participar de programas internacionais destinados a detectar e remover material de abuso infantil online, segundo a BBC apurou.
O aplicativo não é membro do Centro Nacional para Crianças Desaparecidas e Exploradas (NCMEC, na sigla em inglês) nem da Fundação de Vigilância da Internet (IWF, na sigla em inglês) — ambas as organizações trabalham com a maioria das plataformas digitais para encontrar, denunciar e remover esse tipo de material.
O Telegram já havia insistido anteriormente que sua moderação está "dentro dos padrões da indústria e em constante melhoria".
Mas, diferentemente de todas as outras redes sociais, ele não está inscrito em programas como o CyberTipline, do NCMEC, que tem mais de 1,6 mil empresas de internet registradas.
O Telegram foi fundado na Rússia, mas agora está sediado em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, onde Durov mora.
A grande maioria das denúncias de material de abuso sexual infantil online vem de gigantes da tecnologia e redes sociais, incluindo: Facebook, Google, Instagram, TikTok, Twitter (atual X), Snapchat e WhatsApp.
A BBC apurou que o NCMEC pediu repetidamente ao Telegram para aderir (à iniciativa), no intuito de ajudar a combater o material de abuso sexual infantil (CSAM, na sigla em inglês) online, mas a plataforma ignorou as solicitações.
A BBC entrou em contato com o Telegram para comentar sobre sua recusa em aderir aos programas de proteção à criança.
Anteriormente, a empresa disse que é "absurdo alegar que uma plataforma ou seu proprietário são responsáveis por abusos dessa plataforma".
O Telegram também não faz parte do programa TakeItDown, que trabalha para remover a chamada pornografia de vingança.
Snapchat, Facebook, Instagram, Threads, TikTok, Pornhub e OnlyFans são todos membros do programa, que usa o chamado valor hash (uma espécie de impressão digital na forma de um código numérico) para procurar imagens e vídeos em suas plataformas públicas ou não criptografadas.
O Telegram também adota um sistema incomum para a imprensa em geral. A forma de contato é por meio de um bot (robô) automatizado no aplicativo. A BBC entrou em contato com o bot e não recebeu resposta. Há um endereço de e-mail não divulgado para consultas de imprensa, para o qual a BBC News enviou um e-mail, mas ainda não recebeu uma resposta.
Em junho, Pavel Durov disse ao jornalista Tucker Carlson que ele emprega apenas "cerca de 30 engenheiros" para administrar sua plataforma.