Em um vídeo publicado no blog da Meta na terça-feira (7/1), o presidente-executivo da empresa de tecnologia, Mark Zuckerberg, anunciou que está abandonando o uso de checagem independente de fatos no Facebook e no Instagram.
A checagem de fatos conduzida por especialistas e jornalistas nas plataformas será substituído por "notas da comunidade", um sistema aberto aos usuários, em um modelo semelhante ao do X.
O anúncio foi celebrado por defensores da liberdade de expressão absoluta e por apoiadores do presidente eleito dos Estados Unidos, Donald Trump, que classificaram a medida como um esforço para "reduzir a censura" no Facebook e Instagram.
Em sua declaração, Zuckerberg disse que os moderadores profissionais utilizados até agora são "muito tendenciosos politicamente" e que era "hora de voltar às nossas raízes, em torno da liberdade de expressão".
Ao mesmo tempo, ativistas contra o discurso de ódio na internet e organizações de jornalismo e checagem de fatos receberam as mudanças com grande preocupação.
Analistas políticos e especialistas na área de tecnologia também viram na medida motivações políticas no momento em que as empresas de tecnologia e seus executivos se preparam para a posse de Trump, marcada para 20 de janeiro.
'Movimento político'
Entre os críticos da mudança, muitos sugeriram que ela seria motivada justamente pela intenção de Zuckerberg de se aproximar do próximo presidente americano.
"O anúncio de Zuckerberg é uma tentativa flagrante de agradar a próxima administração Trump — com implicações prejudiciais", disse Ava Lee, do Global Witness, grupo que se descreve como dedicado a cobrar a responsabilização das grandes empresas de tecnologia por seus atos.
Já Kate Klonick, professora associada da Faculdade de Direito da Universidade de St John, afirmou à BBC que as mudanças refletem uma tendência "que parecia inevitável nos últimos anos, especialmente desde a aquisição do X por [Elon] Musk".
"A gestão privada do discurso nestas plataformas tornou-se cada vez mais um ponto político", .
Donald MacKenzie, sociólogo da Ciência e Tecnologia e professor da Universidade de Edimburgo, afirma que o momento é de readequação, com as grandes corporações americanas se preparando para o segundo mandato de Trump, que promete ser um período de transformação ainda maior do que o primeiro.
"As corporações americanas sabem que esse é um momento de grande mudança - e que é muito melhor para elas ficaram do lado dessa mudança do que se opor a ela", disse à BBC News Brasil.
Trump já foi um crítico voraz da Meta e de sua abordagem à moderação de conteúdo, chamando o Facebook de "um inimigo do povo" em março de 2024.
Mas as relações entre ele e Zuckerberg melhoraram desde então: o CEO da Meta jantou na casa de Trump na Flórida, em Mar-a-Lago, no último mês de novembro e a empresa doou US$ 1 milhão (cerca de R$ 6,2 milhões) para um fundo para o evento de posse de Trump.
Em mais um gesto de aproximação, Zuckerberg anunciou na segunda-feira (6/1) que Dana White, presidente-executivo do Ultimate Fighting Championship (UFC) e apoiador de longa data de Trump, passaria a fazer parte do conselho administrativo da Meta.
"As eleições mais recentes parecem sinalizar um ponto de virada cultural para, mais uma vez, dar prioridade à liberdade de expressão", disse Zuckerberg no vídeo que publicou nesta terça-feira.
A substituição de Nick Clegg — um liberal-democrata britânico que ocupava o cargo de principal executivo de políticas globais da Meta — por Joel Kaplan também foi interpretada como um sinal da mudança da empresa em relação à moderação e de realinhamento de suas prioridades.
Kaplan atuou como vice-chefe de gabinete na Casa Branca durante o governo do presidente George W. Bush e é conhecido por chefiar as relações da empresa com os republicanos nos EUA.
O novo executivo da Meta anunciou as mudanças na política de checagem do Facebook e Instagram em uma entrevista exclusiva ao Fox & Friends, um dos programas de TV favoritos de Donald Trump.
Para Vivian Schiller, vice-presidente e diretora executiva da Aspen Digital, da organização internacional sem fins lucrativos Instituto Aspen, tudo isso parece muito com um "movimento político" por parte da Meta e de Zuckerberg.
"É muito difícil olhar para esse momento e para essa mudança de 180 graus e não interpretar sob uma ótica que não seja a de Donald Trump voltando ao poder, assim como os riscos e as ameaças que ele representa para as empresas de redes sociais", disse Schiller, que também é ex-chefe da área de notícias do Twitter (agora X), ao podcast Newscast da BBC.
A Justiça americana conduz atualmente uma série de ações antitruste contra grandes empresas de tecnologia, incluindo Amazon, Apple, Google e Meta.
A empresa de Zuckerberg enfrenta um processo movido pela Comissão Federal de Comércio (FTC), que alega que as aquisições do Instagram em 2012 e do WhatsApp em 2014 foram realizadas para eliminar concorrentes emergentes, consolidando o monopólio da Meta no mercado de redes sociais.
A companhia argumenta que as aquisições beneficiaram os consumidores, permitindo o crescimento e a inovação das plataformas adquiridas. A empresa também contesta a definição de mercado utilizada pela FTC, afirmando que não considera concorrentes significativos, como o TikTok, YouTube e LinkedIn.
Em novembro de 2024, o juiz responsável pelo caso negou o pedido da Meta para encerrar o processo, movido em 2020, durante o primeiro governo de Trump. Uma data para o julgamento ainda não foi marcada.
Para Donald MacKenzie, da Universidade de Edimburgo, a Meta e as demais empresas de tecnologia estão cientes de que "o presidente dos EUA tem muitas ferramentas para tornar sua vida muito difícil".
"Trump poderia agir para barrar esses casos ou então fazê-los prosseguir a todo vapor", explica MacKenzie.
Em um caso semelhante ao da Meta, a Alphabet, controladora do Google, foi considerada culpada de violar a lei antitruste dos EUA para manter o monopólio nos serviços de busca e publicidade.
Como consequência, o Departamento de Justiça dos EUA emitiu, em novembro de 2024, uma decisão que forçava a empresa a desativar ou vender o seu navegador próprio, o Chrome. O processo continua correndo e, até o momento, a ferramenta está no ar sob a gestão da Alphabet.
Donald MacKenzie afirma que esse e os demais casos contra outras grandes empresas de tecnologia certamente tiveram impacto na estratégia da Meta, que tenta se aproximar de Trump.
"Qualquer grande empresa sabe o perigo potencial que é ter um presidente correndo atrás dela."
Em entrevista ao canal de notícias CNBC, Lina Khan, presidente do FTC indicada por Joe Biden para o cargo, sugeriu que a Meta e outras empresas que enfrentam os processos antitruste da agência podem estar buscando "acordos favoráveis" com a administração Trump.
"É verdade que a FTC tem sido muito bem-sucedida, inclusive em seus litígios em andamento contra a Amazon e o Facebook. E então, é natural que essas empresas queiram entrar e ver se conseguem algum tipo de acordo favorável", disse Khan, que será substituída no cargo de liderança do órgão pelo comissário da FTC Andrew Ferguson, indicado por Trump.
Na entrevista, Lina Khan ainda questionou se as empresas poderiam "obter algum tipo de acordo que seja barato" e que "os deixe escapar de uma descoberta de responsabilidade no tribunal" por meio de uma aliança com o novo governo.
Acionistas e presença fora dos EUA
Em seu anúncio sobre as mudanças na política de checagem de fatos, Mark Zuckerberg afirmou ainda que a Meta vai se aliar ao governo de Donald Trump para pressionar outros países que buscam regular o ambiente digital.
"Vamos trabalhar com o presidente Trump para pressionar os governos ao redor do mundo que estão perseguindo empresas americanas e pressionando para censurar mais", afirmou o dono da Meta, Mark Zuckerberg.
Segundo o empresário, "a única maneira de resistir a essa tendência global é com o apoio do governo dos EUA".
O bilionário argumentou ainda que a Europa está "institucionalizando a censura", que os países latino-americanos têm "tribunais secretos que podem ordenar que empresas retirem coisas discretamente [do ar]" e que a China "censurou nossos aplicativos".
Para Vivian Schiller, da Aspen Digital, há uma correlação entre essas declarações e o fato de que manter seus negócios e uma presença robusta nesses mercados é importante para a Meta e seus acionistas.
"Expressões como 'censura' e 'liberdade de expressão' têm sido usadas por vários atores com diferentes significados", diz.
"E cada país tem um conjunto muito diferente de políticas nessa área. Europa e partes da América Latina têm abordagens diferentes dos Estados Unidos."
Resposta a acusações de imparcialidade
Defensores da liberdade de expressão absoluta e conservadores, porém, viram nas medidas anunciadas por Zuckerberg uma resposta às demandas por mais imparcialidade na moderação das redes sociais.
A Fundação para os Direitos Individuais e Expressão (FIRE) - uma organização conservadora e sem fins lucrativos dos Estados Unidos dedicada à defesa da liberdade de expressão - afirmou que os usuários do Facebook e do Instagram "querem uma plataforma de mídia social que não suprima conteúdo político" ou use um sistema de checagem de informações que siga apenas decisões tomadas pela liderança da empresa.
"A empresa [Meta] admite que suas práticas de moderação anteriores introduziram viés e não funcionaram, notando uma taxa de erro provável de 10% a 20% no conteúdo que remove. Essas mudanças devem resultar em decisões de moderação menos arbitrárias e discurso mais livre nas plataformas da Meta", disse a fundação em nota.
Elon Musk, dono do X, também aprovou as mudanças anunciadas pela Meta. "Legal", reagiu em sua rede social.
Já a CEO do X, Linda Yaccarino, afirmou que o sistema de "notas da comunidade" usado pela plataforma tem sido "profundamente bem-sucedido ao manter a liberdade de expressão sagrada".
"É uma jogada inteligente do Zuck e algo que espero que outras plataformas sigam, agora que o X mostrou o quão poderoso ela é. Bravo!", escreveu no X, se referindo ao presidente-executivo da Meta.
Em editorial nesta quarta-feira (8/1), o jornal Wall Street Journal também elogiou a decisão de Zuckerberg.
"Um resultado da vitória de Donald Trump é que os CEOs das empresas estão repensando sua obediência à esquerda democrata. O exemplo mais recente é a decisão bem-vinda da Meta esta semana de abandonar seu regime de censura", afirma o jornal no editorial intitulado "O mea culpa sobre liberdade de expressão de Mark Zuckerberg".
O Wall Street Journal afirma que, nos últimos anos, a Meta adotou políticas de checagem de informação para agradar políticos democratas.
"Essas mudanças podem ser motivadas em parte pelo desejo da Meta de reparar a relação com os republicanos que em breve controlarão Washington e evitar mais regulamentação [das Big Techs]. Mas Zuckerberg sem dúvida também está respondendo à mensagem que os eleitores enviaram ao eleger Trump: interrompam o imperialismo progressista", diz o editorial.
"Alguns conservadores pediram maior regulamentação das plataformas de mídia social sob a justificativa de que elas são praças públicas de fato. Mas Musk e Zuckerberg estão mostrando como os mercados, incluindo os mercados políticos, estão resolvendo o problema da censura. Mais controle do discurso do governo tornaria isso pior."
'Preocupação com a segurança online'
Mas muitos também criticaram a medida e demonstraram preocupação com as suas consequências para a segurança do ambiente online e a disseminação de desinformação.
"Alegar evitar a 'censura' é uma manobra política para evitar assumir a responsabilidade pelo ódio e pela desinformação que as plataformas encorajam e facilitam", disse Ava Lee, do Global Witness.
A Fundação Molly Rose, do Reino Unido, descreveu o anúncio como uma "grande preocupação com a segurança online".
"Estamos esclarecendo urgentemente o âmbito dessas medidas, incluindo se elas se aplicarão ao suicídio, à automutilação e ao conteúdo depressivo", disse o seu presidente, Ian Russell.
"Essas medidas podem ter consequências terríveis para muitas crianças e jovens."
A organização de checagem de fatos Full Fact — que participa do programa do Facebook para verificação de publicações na Europa — afirmou ainda que "refuta as alegações de parcialidade" feitas pela empresa.
O presidente-executivo do órgão, Chris Morris, descreveu a mudança como "decepcionante e um retrocesso que corre o risco de ter um efeito inibidor em todo o mundo".
Vivian Schiller, da Aspen Digital, disse à BBC que é importante ressaltar que os checadores de informações independentes utilizados pela Meta "não são atores desonestos quaisquer", como as palavras de Zuckerberg fizeram parecer.
"Eles incluem organizações de notícias sérias e muito legítimas, como Associated Press, ABC News, USA Today e muitas outras organizações de notícias nas quais milhões e milhões de pessoas confiam para obter informações confiáveis e baseadas em evidências", explica.
Para Schiller, a checagem de fatos nem sempre funciona para dissuadir leitores e usuários das redes sociais em relação à desinformação que circula.
"As pessoas não gostam de ouvir que estão erradas, mesmo quando são confrontadas com evidências", diz.
"Mas não é isso que Zuckerberg está argumentando, o que ele está dizendo é que a checagem de fatos é parcial."
"Os checadores cometem erros, mas eu rejeito a noção de que eles não têm qualquer compromisso com a verdade."
No Brasil, a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) disse estar preocupada com as consequências do anúncio da Meta.
"A ação voluntária de usuários das redes não é capaz de substituir a checagem profissional de fatos, principalmente em um cenário em que a poluição do ambiente informativo provoca danos evidentes à democracia, especialmente com o avanço de ferramentas como a inteligência artificial", afirmou a organização em nota.
O secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República, João Brant, também criticou o fim da checagem profissional em um post no LinkedIn: "Significa um convite para o ativismo da extrema direita reforçar a utilização dessas redes como plataformas de sua ação política."
"Facebook e Instagram vão se tornar plataformas que vão dar total peso à liberdade de expressão individual e deixar de proteger outros direitos individuais e coletivos", completou o integrante do governo Lula.
Ele também comentou sobre o fato de Zuckerberg ter feito referência, no vídeo em que postou detalhando as medidas, a "cortes secretas" na América Latina. Para ele, o CEO da Meta fez tacitamente referência ao Supremo Tribunal Federal (STF).
Em resposta às mudanças anunciadas, o Ministério Público Federal (MPF) também comunicou que irá cobrar explicações.
O órgão quer compreender como será o impacto dessas alterações no Brasil e se elas estarão de acordo com a legislação nacional, segundo disse um representante do MPF ao jornal O Globo.
*Com reportagem de Liv McMahon, Zoe Kleinman e Courtney Subramanian, da BBC News em Glasgow e Washington.