Red pills e incels: por que é difícil frear misoginia online no Brasil

Além da misoginia, fóruns extremistas também promovem adoração às armas e crimes de ódio contra minorias

14 mar 2023 - 05h00
(atualizado em 16/3/2023 às 09h35)
Coach red pill Thiago Schutz e atriz Livia La Gatto, ameaçada por ele
Coach red pill Thiago Schutz e atriz Livia La Gatto, ameaçada por ele
Foto: Reprodução/Instagram/@manualredpill/@livialagatto / Estadão

"Você tem 24 horas para retirar seu conteúdo sobre mim. Depois disso, processo ou bala. Você escolhe”. A ameaça do coach Thiago Schutz para a atriz Livia La Gatto gerou grande repercussão na mídia, mas é apenas o caso mais recente em que os movimentos incels e red pills saíram das bolhas da internet para expor a misoginia pela qual são conhecidos.

Apesar de alguma resistência, a verdade é que grupos como esses atuam na internet há quase duas décadas, e tanto o Brasil quanto as grandes plataformas ainda parecem estar engatinhando em iniciativas contra o problema. Mas especialistas ouvidos por Byte acreditam que a atenção do novo governo Lula para o assunto deverá gerar mais pressão contra esses grupos.

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O atual presidente chegou a montar um grupo de trabalho em seu governo de transição para combater a formação de fóruns de extrema direita e ataques em escolas, mas detalhes sobre ações concretas ainda são incertos.

Schutz se define como um porta-voz dos red pills no Brasil. O movimento faz referência ao filme Matrix, no qual o protagonista Neo deve escolher entre a pílula vermelha, que o faria enxergar a vida como ela é, e a azul, que faria com que ele continuasse vivendo em um mundo de ilusões.

A visão do é uma "distorção da realidade, porque coloca as mulheres numa posição de privilégio", segundo Tainá Junquilho, doutora em direito e pesquisadora do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITSRio).

Mas não é a primeira vez que esse tipo de perfil ganha destaque na imprensa. Casos recentes de ataques armados a escolas, inspirados em acontecimentos semelhantes nos EUA, evidenciaram os incels. Esta é uma abreviação em inglês para "celibatários involuntários", culpam as mulheres por sua incapacidade de se relacionar com elas.

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Por anos, esses grupos trocaram informações na dark e deep web, dois tipos de internet com conteúdos que não aparecem facilmente nos resultados de busca do Google e precisam de programas específicos para serem acessados. No entanto, apps como Telegram e WhatsApp hoje em dia também são pontos de encontro entre eles, e não raro alguns membros planejam por lá crimes contra mulheres.  

Quem são os misóginos

Além da misoginia, os fóruns frequentados por incels promovem crimes de ódio e a adoração às armas, sendo alguns grupos associados ao estímulo de ataques terroristas em escolas.

Um exemplo recente é o de Henrique Lira Trad, jovem de 18 anos que invadiu uma escola municipal em Vitória (ES) portando armas e com a intenção de matar pessoas em agosto do ano passado. O criminoso se definia nas redes como "sancto", vocabulário Incel usado para glorificar quem consegue realizar ações criminosas. 

"O fato deles não conseguirem se relacionar com mulheres retorna como uma forma de agressividade contra as mulheres", explica Maycon Rodrigo da Silveira Torres, doutor em psicologia e professor da UFF.

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São homens mais introspectivos, com baixas habilidades sociais, que se comunicam pouco e que têm pouco repertório de comportamento para lidar com suas próprias frustrações.

"A dificuldade de lidar com a frustração gera raiva, que é canalizada para o ódio às mulheres", diz.

O movimento red pill representa, segundo Torres, um segundo momento do efeito da internet, onde homens se tornam influenciadores para além dos fóruns, ganhando público, notoriedade e reconhecimento social, liderando um discurso de masculinidade ideal.

"É uma forma dos homens se defenderem da necessidade de se criar novas formas de masculinidade. Então você se prende num padrão pré-estabelecido de características", diz ele.

Há ainda os Men Going Their Own Way (MGTOW), que funcionam como grupos de autoajuda, fornecendo dicas e conselhos para homens que sofrem nas mãos de mulheres "perigosas", e os "pickup artists", que objetificam mulheres e dão dicas de pegação.

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Como está o enfrentamento à misoginia online no Brasil

Um relatório da ONG britânica Center for Coutering Digital Hate diz que o Brasil está entre os dez países que mais geram tráfego para um fórum considerado a maior comunidade online incel do mundo. A página — que não teve seu nome revelado — recebe cerca de 2,6 milhões de visitas mensais e cita a palavra "estupro" a cada meia hora, apoiando a violência sexual contra mulheres.

Da parte do Judiciário, o Supremo Tribunal Federal convocou uma audiência pública sobre regras do Marco Civil da Internet para o dia 28 de março. A expectativa é que haja questionamento ao artigo 19 do Marco Civil da Internet, que isenta as plataformas da resposnsabilidade pelo que é postado por usuários, a não ser que desobedeçam uma ordem judicial de remoção.

Ações do tipo tramitam na corte desde 2017, mas o movimento só ganhou forças depois que terroristas usaram canais online para se organizar e invadir sedes oficiais dos três poderes em Brasília no dia 8 de janeiro.

Junquilho, do ITSRio, diz que atos terroristas causaram receio em todos os poderes democráticos, que agora devem dar mais atenção à problemática.

"Este é o tema mais discutido em todas as três esferas de poder", afirma.

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8 de janeiro acendeu alerta em instituições, diz especialista
Foto: Joedson Alves/Agência Brasil

O mesmo artigo do Marco Civil da Internet também ganhou destaque após a gestão petista ter anunciado que cogita uma Medida Provisória para a sua alteração. 

Na segunda-feira (13), o ministro da Justiça Flávio Dino que um projeto sobre a regulação das redes sociais já estão definidas e será apresentado na próxima semana.

"Com certeza teremos novos marcos jurídicos sobre internet no Brasil ainda em 2023, seja por deliberação do Congresso, seja por deliberação do Supremo", disse, em evento da FGV.

Segundo o ministro, casos extremos, como terrorismo e pedofilia, devem ser submetidos ao chamado "dever de cuidado" das plataformas de internet, em um esquema de regulação mista. 

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Uma década de ataques

A ONG Safernet apontou que 2022 foi o terceiro ano eleitoral consecutivo com crescimento de crimes de ódio como xenofobia, intolerância religiosa e misoginia na internet, atingindo liderança global de 39,3% no total de denúncias.

Mas, apesar do crescimento repentino, há quem lide com esses grupos há muito mais tempo. A ativista e professora da Universidade Federal do Ceará (UFC) Lola Aronovich é atacada por fóruns masculinistas desde 2008, quando escreveu em seu blog pela primeira vez sobre o assunto. Desde então, vive uma rotina constante de ataques e ameaças de morte.

"Posso afirmar que eles constituem uma das bases de apoio mais fieis a políticos fascistas como Jair Bolsonaro e Donald Trump. Quando Bolsonaro ainda era uma caricatura política e um convidado bem trapalhão em programas de TV sensacionalistas, os mascus [como ela apelida os masculinistas] já sonhavam com ele presidente", diz.

Aronovich acredita que os misóginos votaram em Bolsonaro por tudo que ele representa contra as mulheres e outros grupos historicamente oprimidos, além da promessa da liberação das armas de fogo. Este último item tem ligação direta com massacres em escolas e universidades.

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"De certa forma, ele ecoa os fóruns. É algo de longo prazo que antecede o governo. Esses fóruns abriram espaço para Bolsonaro, e não o contrário", diz Paulo Rená, co-diretor executivo do coletivo jurídico AqualtuneLab.

O especialista acredita que a internet sempre foi um ambiente masculinizado e propício para ser nocivo às mulheres, mas agora a velocidade e facilidade de compartilhamento de informações mudaram o cenário.

Lola Aronovich é professora universitária e blogueira há 15 anos
Foto: Acervo pessoal

Incels anônimos saem do armário

Em 2018, foi aprovada a Lei Lola (13.642), que introduziu o conceito de misoginia no ordenamento nacional e atribuiu à Polícia Federal a responsabilidade de investigar crimes que difundam conteúdo misógino na internet. No entanto, somente leis podem não ser suficientes.

Para Aronovich, a eleição de líderes como Trump e Bolsonaro mostrou aos criminosos que eles não precisam se esconder no anonimato para destilar o ódio, pois provavelmente não seriam punidos.

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A ativista acrescenta que "nada aconteceria com eles, assim como não aconteceu com seus 'mitos', que não apenas não foram punidos por uma longa ficha corrida de declarações preconceituosas, como ainda foram recompensados com a presidência".

Rená comenta que embora a ameaça de prisão seja importante, o direito penal por si só não resolve tudo. Para ele, políticos violando as leis são ainda piores do que a falta delas. Também acredita que as ferramentas jurídicas que temos estão sendo subutilizadas.

Já Aronovich destaca que, embora a lei que leva seu nome seja bem conhecida no poder público, ela ainda não foi de fato implantada, possivelmente devido à falta de vontade política. Mas, na visão dela, isso deve mudar com a chegada de "um governo progressista". 

Qual o papel das empresas?

Junquilho, do ITSRio, explica que os algoritmos e o design das plataformas geralmente reforçam o discurso de ódio. Afinal, quando esse tipo de conteúdo viraliza, as plataformas monetizam, vendendo anúncios. Isso incentiva a viralização ainda mais, mesmo que as pessoas assistam por curiosidade ou crítica.

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"Esses algoritmos recomendam esse tipo de conteúdo de acordo com o perfil dessas pessoas machistas, criando uma bolha que reforça o discurso de ódio, em vez de estimular um discurso plural", diz.

Rená acredita que não adianta alterar leis nacionais se a internet é um espaço internacional. "Não adianta criar um 'cercadinho' super bem regulado para uma empresa pular a cerca. A regulação precisa ser discutida com atores internacionais para ser mais efetiva", afirma.

"As plataformas têm feito menos no Brasil do que em outros países. O time das empresas para lidar com conteúdos em português é muito menor do que em outros idiomas. Não temos dados de quantas pessoas estão nas redes para lidar com o Brasil. Se não estão revelando, é porque o número é baixo", acrescenta Rená.

Fonte: Redação Byte
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