'A esquerda e o woke são absolutamente opostos'

Em entrevista à BBC News Mundo, a filósofa Susan Neiman, autora do livro 'A esquerda não é woke', critica o que considera uma confusão que ajudou Donald Trump a vencer as eleições nos EUA.

17 jan 2025 - 08h00
Susan Neiman argumenta que o woke mistura 'sentimentos tradicionais de esquerda' com 'suposições filosóficas muito de direita'
Susan Neiman argumenta que o woke mistura 'sentimentos tradicionais de esquerda' com 'suposições filosóficas muito de direita'
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

A filósofa americana Susan Neiman admite que está surpresa com a repercussão que seu último livro, A esquerda não é woke, publicado em vários idiomas, teve em tantos países.

"Não sei por que estão interessados nele na Tailândia, no Líbano ou na Croácia", disse ela, em meio a risadas, durante uma entrevista à BBC News Mundo, serviço de notícias em espanhol da BBC.

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"Fiquei surpresa com o quão internacional o problema parece ser."

A autora se refere à confusão que, na sua opinião, existe entre ser de esquerda e ser woke, termo que vem literalmente da palavra em inglês "woke", pretérito do verbo "wake", que significa "acordar". A gíria se transformou em uma referência a estar atento às injustiças sociais.

Neiman — que se define como de esquerda e dirige o Einstein Forum, na Alemanha, desde 2000 — não apenas considera "esquerda" e "woke" conceitos opostos, como também argumenta que, ao se misturar, eles ajudaram Donald Trump a vencer as eleições presidenciais nos EUA em novembro.

Autora de livros sobre o Iluminismo, a filosofia moral, a metafísica e a política, Neiman deu aula nas universidades de Yale (EUA) e Tel Aviv (Israel) — e dedicou sua carreira a colocar conceitos filosóficos profundos em termos simples.

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A BBC News Mundo conversou com a escritora em decorrência do Hay Festival, que acontece em Cartagena, na Colômbia, de 30 de janeiro a 2 de fevereiro.

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Foto: BBC News Brasil

BBC News Mundo - Por que você decidiu escrever um livro afirmando que a esquerda não é woke?

Susan Neiman - Porque eu andei conversando com amigos em vários países, e todos eles me diziam algo como: "Receio não ser mais de esquerda"... E mencionavam alguma declaração ou evento woke com o qual não se identificavam.

Era algo que sempre se repetia, e achei importante me aprofundar em por que muitos de nós temos essa impressão de que há algo errado com a esquerda.

O objetivo do livro é justamente analisar o que está enfraquecendo (a esquerda), por que as pessoas estão confusas.

É um problema que começou nas universidades americanas, mas se espalhou muito rapidamente pelo mundo.

BBC News Mundo - Qual você acha que é a principal diferença entre ser de esquerda e ser woke?

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Neiman - A confusão acontece porque o woke é fortemente alimentado por elementos tradicionais da esquerda: "na dúvida, fique do lado dos oprimidos" é um deles.

Esse é um sentimento muito esquerdista, mas agora é comum tanto para a esquerda quanto para o woke.

O problema é que as pessoas tendem a não perceber que, junto a esse sentimento tradicional de esquerda, há algumas suposições filosóficas muito de direita no woke.

Por exemplo, é de esquerda decidir que a diversidade é sempre o primeiro e mais importante mandamento, porque muita gente foi deixada de fora de posições de poder e influência por pertencer a minorias?

É uma questão que surge o tempo todo.

Minha forte sensação é que sim, a diversidade é um bem — mas não o bem supremo. E é um insulto às mulheres contratá-las só porque são mulheres, assim como é um insulto às pessoas não brancas presumir que, só porque não são brancas, elas têm uma espécie de autoridade.

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Vou entrar em mais detalhes sobre isso no meu próximo livro: ser uma vítima não é, por si só, uma fonte de autoridade. E nós tendemos a pensar que é.

BBC News Mundo - Talvez seja necessário definir conceitos. O que exatamente você quer dizer quando fala sobre woke?

Neiman - Não defino woke porque não acho que seja um conceito coerente, porque depende de uma divisão entre sentimentos de esquerda e pensamentos muito de direita.

O que faço no livro é definir o que a esquerda significa hoje. E woke é a antítese dos três primeiros conceitos que aponto como comuns à esquerda liberal.

Livro de Suan Neiman foi traduzido para vários idiomas, incluindo o português
Foto: Divulgação / BBC News Brasil

Primeiro, universalismo, em vez de tribalismo.

A esquerda e os liberais são fundamentalmente universais.

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Não presumimos, como a direita faz, que você só pode se conectar profundamente com membros da sua tribo e, portanto, só tem obrigações genuínas para com eles.

Segundo, lutamos por justiça, não apenas por poder.

Às vezes, pode ser muito difícil manter as duas coisas separadas, mas a luta pela justiça é de esquerda.

E embora muitos tenham desistido da ideia de que a justiça existe, acreditando que é uma máscara para o poder, é essencial que a esquerda não desista da sua busca e da sua universalidade.

Terceiro, o progresso é possível; não é inevitável. Sim, está nas mãos dos seres humanos, que são tão capazes de fazer tanto retrocessos quanto progressos, mas é possível, e há exemplos de que isso aconteceu no passado.

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Isso é algo importante que, muitas vezes, é negado pelo woke. Mas não é verdade.

Quando dizem que os afro-americanos nos EUA ainda vivem sob as condições das leis de Jim Crow, ou até mesmo de escravidão, ou que as mulheres ainda vivem no patriarcado, eu digo que sim, ainda vivemos com racismo e sexismo, mas dizer que não avançamos na luta contra isso é uma visão muito perigosa, porque leva as pessoas a se desesperarem com o progresso futuro.

Eu diria que há um quarto conceito: como o fascismo e o neofascismo estão crescendo no mundo, precisamos de frentes populares formadas por esquerdistas e liberais.

Mas é preciso distinguir entre os dois, porque para a esquerda os direitos sociais são direitos genuínos, tão importantes quanto os direitos políticos.

Para a esquerda, o direito à moradia, à saúde, à educação, ao acesso à cultura e a leis trabalhistas justas são tão importantes quanto, por exemplo, a liberdade de expressão.

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BBC News Mundo - Você diria que sua ideia de uma esquerda universalista se aplica apenas à Europa e aos EUA, ou também a regiões como a América Latina, onde há pessoas que se definem como esquerdistas e apoiam ou evitam condenar governos autoritários que também se dizem esquerdistas ou revolucionários?

Neiman - Sei muito mais sobre a história dos EUA e da Europa do que sobre a América Latina, mas fiquei extremamente surpresa que o livro tenha sido lançado no Chile e no Brasil, e que tenha iniciado um grande debate.

São dois grandes países latino-americanos com governos socialistas, com pequenas maiorias, ameaçados pela direita.

E o que as pessoas que gostaram do livro me disseram é que era disso que elas precisavam, porque sentiam que Lula e Gabriel Boric, para poder formar coalizões, tinham que incluir coisas que pareciam woke demais para elas.

Por exemplo, em ambos os países, fiquei chocada com o fato de haver discussões sobre banheiros com base em gênero.

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Neiman argumenta que discussões sobre questões como banheiros baseados em gênero são um 'tema inventado' que tem sido usado com sucesso por Trump
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Achava que só os políticos republicanos da Carolina do Norte se preocupavam com esse tipo de coisa.

A maioria das pessoas, quando vai ao banheiro, fecha a porta. Quem se importa? É um tema inventado, mas que tem sido muito utilizado. Trump usou isso com muito sucesso.

O livro também está sendo lançado na Tailândia, Coreia do Sul e Líbano. E eu me perguntei: Por que eles estão publicando esse livro? Um amigo me disse: porque eles estão fartos da teoria pós-colonial, e acreditam que alguém tem que acabar com ela.

BBC News Mundo - E indo além de Boric ou Lula, como se inserem as esquerdas radicais que até há pouco tempo defendiam a luta armada, ou que continuam a abraçar o conceito de luta de classes, que poderia ser uma forma de ver a sociedade pelo prisma das identidades ou das tribos…

Neiman - É verdade.

Não acho que a redução de classe seja melhor que a redução de raça. E se pensarmos por um segundo, nem Marx, nem Engels, nem Lênin, nem Trotsky vieram da classe trabalhadora.

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Há incoerência no próprio marxismo em relação a essas bases.

Tentar discutir classe 150 anos depois, quando em nenhum lugar do mundo a classe está estruturada como estava na época de Marx e Engels, faz muito pouco sentido para mim.

Sobre a luta armada, não tenho certeza se há bons exemplos de lutas revolucionárias armadas que tenham dado certo a longo prazo.

Uma crítica do livro na Alemanha dizia: "Ela não é realmente de esquerda, é uma social-democrata, não acredita na revolução armada."

Eu diria a qualquer um que ainda acredita na revolução armada em um mundo armado até os dentes, que teríamos sorte se não explodíssemos uns aos outros em um futuro próximo.

BBC News Mundo - Aliás, a luta armada, assim como os governos autoritários, nega o conceito de direitos humanos que é central na sua definição de esquerda universalista...

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Neiman - Sem dúvida.

BBC News Mundo - A confusão que você aponta entre esquerda e woke é algo novo ou é produto de um processo histórico?

Neiman - O que chamamos atualmente de woke é o que nos anos 1990 era chamado de politicamente correto.

O engraçado é que tenho idade suficiente para me lembrar de quando o politicamente correto era usado ironicamente por pessoas socialistas, mas antistalinistas, para zombar daqueles que pareciam rígidos demais.

Depois, foi tomado pela direita.

E é interessante que algo assim esteja acontecendo com o woke, um termo que começou a ser usado na década de 1930 por músicos de blues afro-americanos para denunciar o racismo, e não foi muito mais usado até Trump chegar ao poder.

De fato, não estava presente nas eleições americanas de 2016.

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Acho que, de certa forma, isso se desenvolveu como resultado da geração que cresceu pensando que a presença de Obama era normal, que era normal ter alguém na Casa Branca que era muito inteligente e competente.

Você pode não concordar com algumas de suas políticas, mas era óbvio que ele tinha integridade. E foi um choque passar de oito anos disso para o primeiro governo Trump.

Há uma citação de Martin Luther King que Obama gosta de usar: "O arco do universo é longo, mas se curva em direção à justiça".

Mas, de repente, o arco se curvou na direção errada.

Barack Obama, ex-presidente dos EUA
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Acho que houve uma sensação de desesperança, de que quase tudo o que podia ser feito era uma ação simbólica, que é no que consiste boa parte do "wokeísmo".

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Quando uma pessoa de 20 anos acha que é muito importante mudar seus pronomes, mesmo que nada mais possa ser mudado, acho que ela tem 20 anos.

Mas alguns meses atrás ouvi um podcast da Judith Butler, e ela falou sobre o quanto o mundo mudou porque as pessoas mudam seus pronomes.

É patético que uma pessoa levada a sério como pensadora política não veja que isso é um substituto para a mudança real.

BBC News Mundo - E qual é o perigo de usar 'esquerda' e 'woke' como sinônimos no mundo de hoje?

Neiman - É que eles não são! São absolutamente opostos!

A ideia de que não há nada além de poder, que as reivindicações de justiça não passam de exageros, é amada por ditadores de direita e ditadores que se dizem de esquerda, mas também está muito presente nas tradições woke: você não pode esperar justiça, deve apenas trabalhar pelo poder para sua tribo.

Essa é uma maneira completamente diferente de estar no mundo como um verdadeiro esquerdista.

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Esta é a principal razão pela qual você não pode ser as duas coisas. Mas também há uma razão prática.

Acredito que, embora Kamala Harris não tenha feito uma campanha woke, Joe Biden fez. É curioso: o homem branco idoso da Casa Branca era extremamente woke.

Ele tentou enfatizar bastante a política de identidade. Fiquei furiosa quando ele nomeou Ketanji Brown Jackson para a Suprema Corte.

Tenho certeza de que ela é uma boa juíza, mas dizer em sua campanha, quando tentava vencer as primárias na Carolina do Sul, que nomearia a primeira juíza mulher negra para a Suprema Corte é minar Ketanji Brown Jackson.

Então, Biden, embora não parecesse woke, estava comandando o governo mais woke possível.

BBC News Mundo - E Trump: quão woke ele foi durante a campanha?

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Neiman - Bem, a última declaração antitrans que Trump fez alguns dias antes da eleição foi uma obra-prima sinistra. De acordo com as pesquisas, convenceu 2,7% dos eleitores de Trump, e ele venceu por apenas 1,5%. Olha a dimensão.

Então é compreensível que o "wokeísmo" incomode e desanime as pessoas em tantos lugares.

Na Alemanha, temos eleições em breve, e isso desempenhou um papel importante na ascensão da direita.

BBC News Mundo - Quão preocupada você está com um novo governo Trump nos EUA?

Neiman - Estou muito preocupada.

A maior esperança que eu acho que podemos ter, por incrível que pareça, é que as pessoas que ele escolheu para sua equipe são tão incompetentes e terríveis que pode haver muitas brigas internas.

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'Não há dúvida' de que o woke ajudou Trump a vencer a eleição, diz Neiman
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Trump não gosta de ficar na sombra de ninguém, e sabotou qualquer um que pudesse fazer isso com ele. Ele não pode sabotar (Elon) Musk de forma tão direta, porque Musk é mais rico que ele.

Mas é horrível pensar que nossa maior esperança está na mesquinharia e na competição entre duas pessoas desagradáveis.

Não conheço ninguém que possa prever com certeza o que vai acontecer.

BBC News Mundo - Você mencionou o risco do fascismo. Muitos comparam o mundo de hoje com o que aconteceu no período entre guerras na Europa e, em particular, na Alemanha. Como você vê esse paralelismo?

Neiman - A verdade é que tenho menos medo na Alemanha do que em outros lugares.

A história nunca acontece duas vezes da mesma maneira.

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Terminei meu livro dizendo que a única razão pela qual os nazistas conseguiram tomar o poder sem ter uma maioria parlamentar foi porque a esquerda estava dividida, algo que tem ocorrido com muita frequência.

É paradoxal, porque você imaginaria que para todos esses grupos nacionalistas, cada um pensando que sua nação é a melhor, deveria ser muito mais difícil se organizar. Mas não é esse o caso. Eles trabalham juntos com muita facilidade.

Então, acho que as comparações são precisas? Não, também porque o papel da ideologia é muito diferente agora.

Mas acho que vale a pena escutar as comparações como uma advertência.

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