A mineração controlada por gangues na África do Sul: 'A vida debaixo da terra é cruel'

Os mineiros ilegais vivem perigosamente, mas podem obter enormes lucros se conseguem vender ouro no mercado paralelo.

25 nov 2024 - 12h51
As pessoas que saem da mina de Stilfontein estão frágeis e doentes
As pessoas que saem da mina de Stilfontein estão frágeis e doentes
Foto: Reuters / BBC News Brasil

Junto de outros 600 homens, Ndumiso vive e trabalha numa pequena "cidade" controlada por gangues — o local tem até mercados e um distrito de prostituição — que cresceu nas profundezas de uma mina de ouro sul-africana desativada.

Ndumiso disse à BBC que, após ser despedido por uma grande empresa da área de mineração, decidiu juntar-se à gangue no mundo subterrâneo para se tornar o que é conhecido como "zama zama", termo que descreve um mineiro ilegal.

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Ele procura o metal precioso e sobe à superfície aproximadamente a cada três meses para vendê-lo no mercado paralelo, com enormes lucros.

Atualmente, ele ganha mais do que antes, quando trabalhava para a empresa, embora os riscos sejam muito maiores.

"A vida clandestina é cruel. Muitos não saem vivos", diz o homem de 52 anos, que falou à BBC com a condição de que seu nome verdadeiro não fosse divulgado por medo de represálias.

"Em um nível do poço, há cadáveres e esqueletos. Chamamos essa parte de cemitério de zama zama."

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Mas, para aqueles que sobrevivem, como é o caso de Ndumiso, o trabalho pode ser lucrativo.

Enquanto ele dorme em sacos de areia após dias exaustivos no subsolo, sua família mora em uma casa que ele comprou na cidade de Joanesburgo.

Ele pagou cerca de US$ 7 mil (cerca de R$ 40 mil) em dinheiro pela casa de um quarto, que ampliou para incluir mais três cômodos, descreve ele.

Mineiro ilegal há cerca de oito anos, Ndumiso conseguiu enviar os três filhos para escolas particulares. Um deles agora está na universidade.

"Tenho que sustentar minha mulher e meus filhos, e esta é a única forma que conheço", diz ele.

Ndumiso argumenta que prefere trabalhar na clandestinidade em vez de contribuir para a elevada taxa de criminalidade do país, ao tornar-se ladrão de carros ou assaltante, após passar muitos anos tentando encontrar um emprego legítimo.

Ndumiso pode ficar com uma pequena parte do ouro que encontrar
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

O trabalho atual de Ndumiso acontece numa mina na pequena cidade de Stilfontein, a cerca de 145 km a sudoeste de Joanesburgo.

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O local está no centro das atenções globais depois de um ministro do governo, Khumbudzo Ntshavheni, ter prometido forçar os mineiros a sair do subsolo, com as forças de segurança impedindo o fornecimento de alimentos e água.

"Não devemos ajudar criminosos. Os criminosos devem ser perseguidos", declarou Ntshavheni.

A Sociedade para a Proteção da Nossa Constituição, um grupo ativista sul-africano, iniciou procedimentos legais para exigir acesso ao poço, que a polícia diz ter cerca de 2 km de profundidade.

Um tribunal emitiu uma decisão provisória estabelecendo que alimentos e outros itens essenciais podem ser entregues aos mineiros.

Trabalho lucrativo em pequena escala

Ndumiso subiu à superfície no mês passado, antes do atual impasse com o governo. Ele agora aguarda para ver como a situação vai evoluir, antes de decidir se retornará.

A polêmica está relacionada às dificuldades do governo reprimir uma indústria que saiu de controle, e hoje é comandada por gangues mafiosas.

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"O país tem lidado com o flagelo da mineração ilegal há muitos anos, e as comunidades mineiras suportaram o peso de atividades criminosas periféricas, como estupro, roubo e danos à infraestrutura pública, entre outras coisas", afirmou Mikateko Mahlaule, presidente da Comissão de Recursos Minerais do parlamento sul-africano.

O presidente do país, Cyril Ramaphosa, disse que as minas são "cenas de crime", mas que a polícia vai negociar com os mineiros para dar um fim ao impasse, em vez de descer para os prender.

Ndumiso é um entre centenas de milhares de trabalhadores — que vêm não apenas da África do Sul, mas também de países vizinhos, como o Lesoto — que foram demitidos por causa do declínio da indústria mineira sul-africana nas últimas três décadas.

Muitos deles tornaram-se "zama zamas" nas minas abandonadas.

David van Wyk, da Fundação Benchmark, sediada na África do Sul, estudou o setor de mineração e afirma que existem cerca de 6 mil minas abandonadas no país.

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"Embora elas não sejam rentáveis para a mineração industrial em grande escala, são lucrativas para a mineração em pequena escala", afirmou ele em entrevista ao podcast Focus on Africa, da BBC.

Ndumiso trabalhou como perfurador para uma empresa de mineração de ouro e ganhava menos de US$ 220 (R$ 1.280, na cotação atual) por mês, até ser demitido em 1996.

Depois de lutar durante as duas décadas seguintes para encontrar um trabalho em tempo integral, ele decidiu se tornar um mineiro ilegal.

Existem dezenas de milhares de mineiros ilegais na África do Sul. Segundo Van Wyk, 36 mil indivíduos atuam nesse setor só na província de Gauteng, o coração econômico do país, onde o ouro foi descoberto pela primeira vez no século 19.

"Os 'zama zama's muitas vezes passam meses no subsolo sem vir à superfície e são altamente dependentes de ajuda externa para alimentação e outras necessidades. É um trabalho árduo e perigoso", detalha um relatório da Iniciativa Global contra o Crime Organizado Transnacional.

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"Alguns carregam pistolas, espingardas e armas semiautomáticas para se protegerem de gangues rivais de mineração", acrescenta o relatório.

Ndumiso disse à BBC que possuía uma arma, mas que também pagava a uma gangue uma "taxa de proteção" mensal de cerca de 8 dólares (R$ 46).

Os guardas fortemente armados da organização criminosa defendem os trabalhadores das ameaças, especialmente de gangues do Lesoto, que têm a reputação de terem um poder de fogo mais letal, segundo Ndumiso.

Mineiro 'com sorte'

Sob a proteção permanente do grupo, Ndumiso relata que usou dinamite para explodir pedras e se vale de ferramentas rudimentares, como uma picareta, uma pá e um cinzel, para encontrar ouro.

A maior parte do que ele encontra vai direto para o líder da gangue, que paga um salário mínimo de US$ 1.100 (R$ 6.400) a cada duas semanas. Ele diz que pode ficar com uma parte do ouro, que vende no mercado paralelo para complementar a renda.

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Ele é um dos mineiros "com sorte" que chegaram a um acordo com a gangue. Mas outros indivíduos são sequestrados e levados para a mina para trabalhar como escravos, sem receber qualquer pagamento ou parte do ouro.

Ndumiso disse que normalmente permanece no subsolo durante cerca de três meses seguidos. Depois, ele sobe à superfície durante duas a quatro semanas para passar tempo com a família e vender o ouro, antes de regressar aos poços profundos.

"Estou ansioso para dormir na minha cama e comer comida caseira. Respirar ar fresco é uma sensação incrivelmente poderosa", diz ele.

A indústria de mineração sul-africana tem sido há muito tempo uma importante fonte de emprego tanto para a população local como para estrangeiros
Foto: Getty Images / BBC News Brasil

Ndumiso não sobe com mais frequência para não perder o seu ponto de escavação, mas depois de três meses de trabalho contínuo ele precisa sair do subsolo.

Ele lembra que, certa vez, quando chegou à superfície, ficou "tão cego pela luz do sol" que pensou "que tinha perdido a visão".

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A pele dele também ficou tão pálida que a esposa o levou para uma avaliação de saúde: "Fui honesto com o médico sobre onde morava. Ele não disse nada para mim e apenas me tratou. Ele me deu vitaminas."

Na superfície, Ndumiso não só descansa. Ele também trabalha com outros mineradores ilegais na detonação e na trituração de rochas que contém minério.

O grupo então "lava" esse material em um local improvisado, onde acontece a separação do ouro com o uso de produtos químicos perigosos, como mercúrio e cianeto de sódio.

Ndumiso explica que depois vende sua parte de ouro: um grama custa 55 dólares (R$ 320), que está abaixo do preço oficial, de cerca de 77 dólares (R$ 449).

Ele diz que tem contato com um comprador, com quem entra em contato via WhatsApp.

"A primeira vez que o encontrei não confiei nele, então disse para nos reunirmos no estacionamento de uma delegacia. Eu sabia que estaria seguro lá. Agora nos vemos em qualquer estacionamento. Temos uma balança. Pesamos o ouro no local. Eu dou [o ouro] e ele me paga em dinheiro", explica Ndumiso

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Nessas transações, ele ganha entre US$ 3,8 mil (R$ 22 mil) e US$ 5,5 mil (R$ 32 mil).

Ele recebe esse valor a cada três meses, o que significa que sua renda média anual varia entre US$ 15.500 (R$ 90,4 mil) e US$ 22.000 (R$ 128 mil) — muito mais do que os US$ 2.700 (R$ 15,7 mil) que ganhava como minerador legalmente contratado.

Ndumiso afirmou que os líderes das gangues ganham muito mais, mas ele não sabe precisar quanto.

Estima-se que existam cerca de 6 mil minas abandonadas na África do Sul
Foto: EPA / BBC News Brasil

Em relação ao comprador do ouro, Ndumiso afirma que não sabe nada sobre ele. Ele apenas diz que trata-se de um homem branco numa indústria ilegal que envolve pessoas de diferentes raças e classes.

Isso, aliás, torna difícil reprimir as redes criminosas. Van Wyk avalia que o governo tem como alvo os mineiros, mas não os "chefões que vivem nos subúrbios arborizados de Joanesburgo e da Cidade do Cabo".

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Uma cidade embaixo da terra

O presidente Ramaphosa disse que a mineração ilegal custa "à economia milhares de milhões de rands [moeda da África do Sul] em perdas de receitas de exportação, royalties e impostos" e que o governo continuaria a trabalhar com as empresas mineiras "para garantir que elas assumam a responsabilidade de reabilitar ou fechar essas minas".

Van Wyk afirmou ao podcast Focus on Africa da BBC que o governo pioraria a crise econômica da África do Sul se reprimisse os "zama zamas".

"Deveria haver uma política para descriminalizar as operações, organizá-las melhor e regulamentá-las", acrescentou.

Quando Ndumiso regressa ao trabalho clandestino, leva consigo comida enlatada para evitar pagar os preços exorbitantes dos "mercados" que existem no subterrâneo.

Além de alimentos, esses locais vendem itens básicos — como cigarros, lanternas, pilhas — e ferramentas de mineração, detalha ele.

A existência de uma estrutura dessas sugere que uma comunidade — ou uma pequena cidade — se desenvolveu clandestinamente ao longo dos anos.

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Ndumiso afirma que existe até um bairro de prostituição, com trabalhadoras do sexo levadas à clandestinidade pelas gangues.

Ndumiso explicou que a mina onde trabalha está dividida em vários níveis e um labirinto de túneis interconectados.

"São como rodovias, com placas pintadas que indicam como chegar aos diferentes locais e níveis, como o nível que usamos como banheiro, ou o nível que chamamos de cemitério zama zama", diz.

"Alguns morrem nas mãos de membros de gangues rivais; outros se acidentam em quedas de rochas e são esmagados por pedras enormes."

"Perdi um amigo quando o ouro que ele encontrou foi roubado e ele levou um tiro na cabeça."

Embora a vida subterrânea seja perigosa, esse é um risco que milhares de mineiros como Ndumiso estão dispostos a correr. A alternativa, dizem eles, é viver e morrer pobre numa nação onde a taxa de desemprego excede os 30%.

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