Menos de duas semanas antes da rendição incondicional da Alemanha nazista aos Aliados em 8 de maio de 1945, evento que completa 75 anos nesta sexta-feira (8 de maio), um grupo de militares opositores tentou derrubar o regime de Adolf Hitler, em um trágico e quase esquecido episódio da Segunda Guerra Mundial.
Na madrugada de 27 de abril, a Freiheitsaktion Bayern (FAB), ou Ação para a Liberdade da Bavária, tomou duas rádios nos arredores de Munique e emitiu um chamado popular contra o regime. A ação, liderada por cerca de 440 soldados, mobilizou rapidamente cerca de 990 civis, em um total de 1,430 envolvidos.
Sob grande risco pessoal, 78 grupos agiram em diversas partes do Estado do sul da Alemanha para derrubar autoridades nazistas locais. O levante, contudo, falhou. E as consequências foram pesadas: ao menos 57 execuções e perseguição aos sobreviventes.
"Os integrantes do levante não sabiam que a Alemanha se renderia. Todos dependiam muito da propaganda do regime. Não se recebia nenhuma informação valiosa. Apenas rumores. Se você não estava muito perto de posições mais altas do Exército, não sabia o que acontecia à sua volta", diz à BBC News Brasil a historiadora Veronika Diem, autora de uma premiada tese de doutorado sobre o tema que deu origem ao livro "A Campanha da Liberdade da Baviera: um levante na fase final do regime nazista".
Neste contexto, em abril, membros de unidades militares na Bavária, em especial nos arredores de Munique, se uniram para formar a FAB. Tratava-se um grupo bem heterogêneo - ou melhor, diversos grupos - que mantinha tendências católicas conservadoras. Muitos se conheciam desde os anos 1930 e tinham conflitos com nazistas.
"O major Alois Braun, por exemplo, teve uma briga com membros da SS (grupo paramilitar nazista) em sua pequena cidade. Ele entrou na Wehrmacht (as forças armadas unificadas nazistas) para se proteger", revela Diem.
Os integrantes da FAB estavam presentes em diversos setores do Estado e da Wehrmacht e sua ligação ocorria por meio de figuras centrais de cada sub-grupo. Havia um grupo que trabalhava no escritório do governador do Reich na Baviera, liderado pelo major Günther Caracciola-Delbrück. Outra parcela atuava como tradutores da Wehrmacht no 7º Distrito Militar, com a figura principal de Ruprecht Gerngross. Mais um grupo de intérpretes, atuante no Süddeutsche Freiheitsbewegung (Movimento de Liberdade do Sul da Alemanha), ficava em um campo de prisioneiros de guerra em Moosburg.
"Eles se conectaram a prisioneiros de guerra americanos, britânicos e franceses e, através de um círculo de amigos que antecederam a guerra, foram capazes de ativar pessoas em vilas e cidades em todo o sul da Alemanha", explica Sven Keller, do Instituto de História Contemporânea Munique-Berlim.
Naquele mesmo campo de prisioneiros, afirma o historiador, atuava o Bayerische Heimatbewegung, um grupo liderado pelo ex-prefeito de Regensburg. Havia ainda integrantes militares da FAB em Freising, perto de Munique.
Chamava a atenção a quantidade de jovens intérpretes no grupo. Eles tinham visões de mundo em comum, perfil acadêmico e intelectual e eram viajados. Essas características, acredita Keller, os manteve longe da ideologia nazista e do ambiente militar.
"Esses intérpretes tiveram contato com outros países e com estrangeiros. Eles tinham outro ponto de vista sobre a Alemanha e o Reich. Conheceram pessoas que sofrem com o regime e trabalhadores forçados do exterior", completa Diem.
A FAB chegou a abordar o serviço secreto dos EUA e os aliados para falar sobre seu plano, mas não foi percebida de maneira séria.
Os objetivos
O plano do grupo contava com um programa de 10 pontos, que incluía a rendição do Estado bávaro aos aliados e um governo transitório sob o controle da FAB até a aprovação popular de uma nova Constituição bávara.
Entre os objetivos estavam o "extermínio" do Nacional Socialismo, que violava "as leis da moral e da ética de tal maneira que todo alemão decente precisa se afastar dele com repugnância". A FAB se reservou o direito de exterminar "sem piedade" até a menor das células nazistas.
O grupo também pregava o fim do militarismo, o retorno da ordem por meio da reintrodução de direitos fundamentais, incluindo a liberdade de imprensa e de reunião. Além disso, o cristianismo aparece como fator importante nessa reconstrução - sem prejuízo à liberdade religiosa - e a restauração da dignidade humana para cada indivíduo.
O plano em ação
O início da tentativa de levante foi calculado para que ocorresse quando as tropas aliadas estivessem próximas o bastante de Munique - àquela altura, elas já haviam cruzado o rio Lech, afluente do Danúbio. O plano deveria durar até 28 de abril.
A organização do ato aconteceu apenas em abril, mas a possibilidade de insurgência contra o regime foi discutida por anos. "Os membros eram claramente anti-nazistas e mantinham distância do regime. Quando agiram, o fizeram com o risco de suas vidas e muitos pagaram um preço terrível. Isso exige o maior respeito. No entanto, eles entraram em ação quando já era tarde demais", argumenta Keller.
Na madruga de 27 de abril, oito grupos de soldados tentaram executar o plano. Mas diversas partes falharam: entre outros problemas, não foi possível prender Paul Giesler, o Gauleiter em Munique (uma espécie de líder do partido nazista na região). A FAB também não conseguiu persuadir o governador do Reich, Franz Ritter von Epp, a negociar um armistício com os aliados.
O grupo conseguiu, contudo, ocupar a prefeitura de Munique e duas estações de rádio, de onde transmitiu convocações "multilíngue" sobre a uma suposta tomada do governo local. Foi pedindo que o povo se juntasse para "se livrar dos funcionários" do partido nazista entre 6h e 11h.
O chamado foi recebido por diferentes grupos civis, conduziram iniciativas semelhantes, mesmo que sob o risco de confrontos graves com apoiadores nazistas. Segundo Diem, 58 destas ações não se escalaram e os respondentes conseguiram fugir. Em outras 20, houve fatalidades.
Os civis estavam mais preocupados em proteger suas respectivas comunidades de maiores destruições que o prolongamento da guerra poderia causar. "Houve uma grande variedade de ações - desde indivíduos sozinhos tentando convencer as tropas da Wehrmacht a depor suas armas até a tentativa de insurgência em Munique. Não existia a FAB no sentido de uma organização rígida e eficaz que poderia ter oferecido assistência. Muitos agiram espontaneamente", diz Keller.
O colapso
Pouco após a transmissão de rádio, as autoridades nazistas já haviam desmentido a "tomada do poder", o que levou muitos membros da FAB a fugirem e se esconderem. Também ficou claro aos civis que participaram do ato que o levante havia fracassado.
Embora a liderança da FAB fosse composta por militares, o grupo não tinha poderio militar suficiente para enfrentar as forças nazistas. A esperança era que o chamado obteria suporte amplo, o que não ocorreu.
"O consenso é que o levante foi mal preparado e apressado nas últimas semanas da guerra. Mais importante ainda, Gerngross e Caracciola-Dellbrück não conseguiram o apoio de von Epp. Gerngross pensou que seria capaz de aguentar até a chegada das tropas americanas - um erro de cálculo trágico", explica o historiador André Postert, do Instituto Hannah Arendt, em Dresden.
Caracciola-Dellbrück foi assassinado devido ao seu envolvimento, como muitos outros, e Gerngross conseguiu fugir e se esconder.
Perseguição até o final
A perseguição aos sobreviventes começou em 28 de abril, por ordem do Gauleitung. Dezenas foram presas e execuções sumárias ocorreram. Moradores leais ao regime denunciaram integrantes do levante, que acabaram cassados por soldados e membros da Volkssturm (milícia com jovens e homens velhos montada no fim da guerra).
"Em uma pequena cidade ao sul de Munique, um grupo prendeu o prefeito. E depois, ao saber que o levante falhou, o soltou. Moradores descobriam quem eles eram e foram até pessoal militar que estava por perto só por acaso. Os integrantes do levante foram assassinados imediatamente, sem nenhum processo legal", afirma Diem.
As forças nazistas foram rigorosas e cruéis contra revoltas até o fim do regime. Isso ocorreu, em parte, pelo fanatismo e cegueira ideológica, acredita Postert. Por outro lado, continua o historiador, muitos atores nazistas centrais sabiam que seriam condenados e enforcados após a guerra. "Isso explica a sua brutalidade. Giesler mandou que se executasse os envolvidos. [Dias da rendição] Giesler se matou e atirou em sua esposa. Homens como ele não tinham nada a perder."
Após a guerra, a memória da FAB foi preservada na Bavária. No centro de Munique, há a praça "Münchner Freiheit" (Liberdade de Munique) e um café com o mesmo nome. Existe ainda uma famosa banda pop homônima.