Nosso primeiro contato com a realeza é por meio da ficção. Muitas pessoas se tornaram fascinadas recentemente com a família real britânica através da série de TV The Crown, que retrata em forma de ficção a vida da rainha Elizabeth 2ª.
Esse fascínio com realeza já começa, para muitos, na infância. Princesas e príncipes encantados, reis soberanos, rainhas malvadas... Todos esses personagens habitam os contos de fadas que povoam nossa infância, com uma magia narrativa tão densa quanto o matagal que cresce em volta do castelo da Bela Adormecida.
Os símbolos da monarquia, suas coroas e tronos, e o forte senso de predestinação enunciado na forma de maldições e promessas são alinhavados em nosso imaginário coletivo antes mesmo que tenhamos idade suficiente para entender.
Na idade adulta, acabamos percebendo que toda a magia do "conto de fadas" da realeza é uma faca de dois gumes: sim, os tapetes vermelhos são estendidos para eles, mas sua notoriedade é inevitável desde o nascimento; e o fascínio provocado pelas pedras preciosas é acompanhado pelo brilho ofuscante dos flashes.
Muitas vezes, os palácios funcionam como gaiolas douradas.
Ainda assim, exercem um enorme fascínio, até porque os membros desta instituição de aparência intrigantemente anacrônica nos remetem a uma época em que nossa paixão pelo universo do "faz de conta" era insaciável.
Mas, como dois novos romances revelam, a ficção ainda pode nos ensinar muito sobre a realeza, dando aos autores acesso, ainda que imaginário, a momentos privados e íntimos aos quais biógrafos e historiadores são impedidos por questões burocráticas e de protocolo.
E, assim como essas fábulas infantis, a ficção sobre a realeza mantém seu poder de educar.
Dado o papel onipresente que príncipes e princesas desempenham na infância, é irônico que tradicionalmente a realeza tenha se mostrado tão problemática. É isso que dois novos romances, The Governess ("A Governanta", em tradução livre) e A Most English Princess ("A Princesa Mais Inglesa", em tradução livre), se propõem a revelar.
As autoras, a best-seller Wendy Holden e a estreante Clare McHugh, cresceram fascinadas pela família real britânica. No caso de Holden, ela se debruçava sobre as fotos amareladas de um livro que pertencia a sua avó, comemorando a coroação de George 6º, pai da atual rainha da Inglaterra, Elizabeth 2ª.
"Embora eu achasse as coroas e peles incrivelmente glamourosas, foram os personagens que me atraíram", relembra.
"Todos pareciam personagens de ficção para mim, e daquele ponto em diante, embora inconscientemente, eu quis colocá-los em um romance. Mas só quando descobri a incrível história de Marion Crawford que encontrei o caminho certo. "
Marion Crawford era uma jovem com consciência social que planejava dar aulas nas comunidades pobres de Edimburgo, na Escócia. Em vez disso, acabou se tornando governanta de duas princesas, Elizabeth — conhecida como Lilibet — e sua irmã mais nova, Margaret.
Ela passou 17 anos com a família real até sua aposentadoria em 1948, quando cometeu o erro fatal de escrever um livro sobre suas experiências com os Windsors. A publicação de The little princesses ("As princesinhas", em tradução livre) a levou a ser banida da vida da família real para sempre.
Segundo Holden, as revelações que Crawford fez são inofensivas para os padrões modernos. Não que suas páginas não guardassem surpresas do tipo que deixam a mente de um romancista inquieta.
"Oferecia uma visão inesperada e comovente da nossa ultra-composta rainha como uma criança preocupada, um ser humano vulnerável."
Até "Crawfie", como a governanta ficou conhecida, entrar em suas vidas, as irmãs não tinham permissão para sujar a roupa e precisavam seguir o caminho pavimentado do jardim.
"Ela levou consigo sua consciência social, e apresentou (as meninas) ao mundo, para mostrar a elas uma vida normal. Ela as levou no metrô, para fazer compras na tradicional rede de lojas Woolworth's (que fechou as portas no país em 2009) e até mesmo para nadar em piscinas públicas", conta Holden.
Enquanto outras garotas da sua idade sonhavam com a realeza, a jovem Lilibet se encantava com a escada rolante do metrô de Londres: "As escadas estão se movendo!"
A criação excessivamente protetora acaba se revelando como uma espécie de desvantagem.
"A educação real pode ser muito prejudicial se fizer com que a realeza pareça distante do povo, que odeia arrogância e senso de poder", diz Holden.
"Crawfie achava que Lilibet e Margaret estavam levando uma vida formal, isolada, vitoriana, que não tinha lugar no mundo moderno. E achava que isso não era bom para elas pessoalmente, como ser humano, ou na prática, como membros da família real."
"Ela tirou então (as meninas) do palácio e mostrou como as pessoas comuns viviam. Estimulou o humor, a criatividade e o senso de aventura delas, que estavam sendo totalmente reprimidos quando ela chegou. "
Graças em grande parte a Crawfie, uma mulher cujo nome Holden diz ainda ser sinônimo de traição no círculo da realeza, aquela criança preocupada e vulnerável foi capaz de suportar alguns dos anos mais conturbados da história do país.
"Crawfie as conduziu durante a abdicação, a coroação inesperada de seus pais e toda a Segunda Guerra Mundial. Embora tudo isso fosse bastante dramático e brilhante para ser transformado em ficção, deve ter sido muito assustador e confuso na época."
Os romances de Holden já venderam mais de três milhões de cópias ao redor do mundo, mas The Governess é sua primeira incursão no mundo da ficção histórica.
Embora tenha mergulhado de cabeça nesse período, vasculhando sebos em busca de livros esgotados coletados por monarquistas da região, sua própria imaginação, diz ela, foi a fonte mais importante de todas.
Se permitir a liberdade de inventar foi o que Clare McHugh, que tem uma carreira de 30 anos no jornalismo, achou mais difícil.
Seu romance, A Most English Princess, dramatiza a vida da filha mais velha da rainha Vitória, a princesa real conhecida como Vicky, que numa jogada de política internacional se casou com um príncipe alemão e deu à luz o futuro Kaiser, Guilherme 2º, que levou a nação à Primeira Guerra Mundial.
Toque de empatia
"Eu me preocupava com a autenticidade", diz McHugh, que mora em Washington DC, mas nasceu em Londres, e cujo bisavô britânico uma vez conduziu o filho e irmão de Vicky, o rei Edward 7º, em parte de sua jornada até Osborne House, residência real localizada na Ilha de Wight, no Reino Unido.
"Como eu poderia imaginar, com precisão, o que era ser uma princesa, e depois uma imperatriz alemã, e depois uma viúva desolada, vivendo em um enorme castelo desprezada pelo filho?"
"Entre na cabeça dela e fique lá", foi o conselho que a romancista Sandra Newman deu a ela. As cartas que Vicky escreveu para a mãe também ajudaram bastante, mas McHugh identificou paralelos que fizeram a história dela parecer mais empática.
"A família real, acima de tudo, é uma família", diz ela.
"Todos os tipos de coisas que acontecem nas famílias acontecem com eles, em termos de rivalidades e comparações difamatórias que são feitas, mas há muito mais em jogo."
Este é um ponto importante, levando em consideração especialmente outra diferença fundamental: enquanto nós podemos viver nossas próprias vidas independentes da nossa família de origem, os membros da realeza são definidos antes de tudo por sua linhagem.
É quase impossível para eles alcançarem algo que anule a sorte (ou não) de seu nascimento. E a ordem de nascimento e gênero são tudo.
Como McHugh observa, desde o início, Vicky ocupou uma posição peculiar na família. Ela não era apenas a mais velha, como também a mais inteligente e capaz dos nove filhos do casal real.
Uma criança destemida e otimista, ela teve aula de ciências, leu livros como Uncle Tom's Cabin e aprendeu com o pai sobre governo e história. No entanto, pelas regras de sucessão, ela não tinha chance de herdar o trono.
Ao mesmo tempo, ela era valiosa demais para ser autorizada a seguir seu próprio caminho. Com apenas 17 anos, ela trocou uma "gaiola dourada" por outra infinitamente mais restritiva, quando se casou com o futuro Frederico 3º, imperador alemão e rei da Prússia, como parte do plano de seu pai para levar a democracia moderna para a Alemanha.
McHugh retrata uma atração física genuína e profunda entre os recém-casados — mas ainda assim, é um casamento político e que a levaria para longe de casa.
Há uma cena no romance que simboliza toda fantasia de princesa. Vicky, uma garota que sabe que não é nenhum ideal de beleza, vai a um baile francês com um vestido desenhado para ela pela Imperatriz Eugénie — uma roupa suntuosa com várias camadas de babados de renda branca, enfeitados com veludo pêssego e ramalhetes de flores de tecido.
Entrar no Palácio de Versalhes é como "entrar em um enorme baú de tesouros incrustado de joias".
No entanto, ela foi prejudicada por seu privilégio, acredita McHugh, ao ser criada para confiar totalmente em sua própria opinião, sem se importar com o que os outros tinham a dizer, em parte porque seu status significava que ninguém nunca lhe diria a verdade.
Enquanto isso, os elogios que recebia do pai deixavam sua mãe, a quem ele costumava repreender, com ciúmes.
A postura de Vicky contou contra ela até postumamente.
"Ela é subestimada pela história e deixada de lado como uma figura real mal-sucedida e bastante patética. Na época e agora, pessoas importantes, sejam da realeza ou não, estão frequentemente sujeitas a interpretações hostis — no caso de Vicky, chegou ao ponto de Freud analisar suas falhas após sua morte."
McHugh explica:
"Minha opinião é que Vicky era uma personalidade radiante, que deu o seu melhor em um mundo estranho, desagradável e misógino."
Foi essa percepção que ajudou McHugh a dar o toque final de empatia que a ficção requer para ganhar vida. Também oferece a seu romance um valor contemporâneo.
Da falecida princesa Diana às duquesas de Cambridge e Sussex, Catherine e Meghan, as mulheres da família real neste e no último século ainda tiveram que lidar com muitos julgamentos misóginos.
"Vivemos em um mundo diferente, e muito melhor, mas espero que os esforços das mulheres em tentarem ser forças positivas em papéis políticos e familiares tenham eco", diz ela.
Por mais que sua postura se baseie na tradição, as famílias reais evoluem. Marion Crawford pode ter sido afastada da vida da rainha, mas não vamos esquecer que ela trabalhou com a família real por quase duas décadas, tempo suficiente para se tornar o que Holden insiste ser uma influência fundamental em seu longo reinado e na forma com que ela criou seus próprios filhos.
"Hoje em dia, quando as pessoas falam sobre o bom senso e a habilidade da rainha de se comunicar com o povo, qualidades que reforçaram sua autoridade ao longo do seu reinado, sempre penso em Crawfie e em como isso começou com ela", acrescenta Holden.
Ao mesmo tempo, como em qualquer narrativa épica, os padrões se repetem. Basta lembrar o que aconteceu recentemente com Meghan, a duquesa de Sussex, que se mudou para a residência de Windsor, para depois se distanciar ainda mais da família real.
Como McHugh destaca, os membros da realeza simbolizam privilégio e poder, mas também são seres humanos presos a circunstâncias muito estranhas e distorcidas.
"Não é um acordo que eu aceitaria", diz ela.
"Acho que há um debate a ser travado sobre se o custo é ou não muito alto. Vamos lembrar, eles estão sendo usados."
Estranhamente, apesar de toda liberdade concedida à uma obra de ficção, quando os membros da realeza se tornam personagens literários, é que essa vida estranha se torna mais honesta e esclarecedora.
Leia a versão original desta reportagem (em inglês) no site BBC Culture.