Aviso: esta reportagem contém descrições de abuso sexual
O julgamento do caso de estupro de Gisèle Pelicot, que terminou na França na última quinta-feira (19/12), exerceu um fascínio terrível sobre quase todas as mulheres que conheço.
Enquanto o julgamento se desenrolava em um tribunal de Avignon, eu me vi acompanhando cada detalhe terrível, e depois discutindo com minhas amigas, filhas, colegas e até mesmo com mulheres do meu clube de leitura local, enquanto tentávamos processar o que havia acontecido.
Por quase uma década, o marido de Gisèle Pelicot a drogou sem o seu consentimento, e convidou homens que conheceu na internet para fazer sexo com a esposa "Bela Adormecida" no quarto do casal, enquanto ele os filmava.
Estes estranhos, com idades entre 22 e 70 anos, com profissões distintas como bombeiro, enfermeiro, jornalista, carcereiro e soldado, obedeceram às instruções de Dominique Pelicot.
Como desejavam um corpo feminino submisso para penetrar, eles tranquilamente fizeram sexo com uma avó aposentada, cujo corpo fortemente sedado se assemelhava a uma boneca de pano.
Havia 50 homens sendo julgados no tribunal, todos viviam em um raio de 50 km de Mazan, uma pequena cidade no sul da França onde os Pelicot moravam. Eles eram, aparentemente, como "qualquer outro homem".
Uma mulher na faixa dos 30 anos me disse: "Quando li sobre o caso pela primeira vez, não quis ficar perto de nenhum homem por pelo menos uma semana, nem sequer do meu noivo. Fiquei simplesmente horrorizada".
Outra, com quase 70 anos, da mesma geração de Gisèle Pelicot, não conseguia parar de pensar no que poderia estar passando pela cabeça dos homens, até mesmo de seu marido e filhos. "Será que isso é apenas a ponta do iceberg?"
Como a escritora e terapeuta Stella Duffy, de 61 anos, escreveu no Instagram no dia em que o veredicto foi anunciado: "Espero e tento acreditar que #notallmen ("não são todos os homens"), mas imagino que as esposas, namoradas, melhores amigas, filhas e mães do vilarejo de Gisèle Pelicot também pensavam assim. E agora elas pensam de modo diferente. Todas as mulheres com quem converso dizem que esse caso mudou a maneira como elas veem os homens. Espero que tenha mudado a maneira como os homens veem os homens também."
Agora que o julgamento terminou, podemos olhar para além deste caso monstruoso e perguntar: de onde veio o comportamento insensível e violento desses homens? Será que eles não conseguiam ver que sexo sem consentimento é estupro?
Mas há também uma questão mais ampla. O que o fato de tantos homens, em uma região relativamente pequena, compartilharem essa fantasia de dominação extrema sobre uma mulher diz sobre a natureza do desejo masculino?
Como a internet mudou a norma
É difícil imaginar a dimensão dos estupros orquestrados e das agressões sexuais contra Gisèle Pelicot sem a internet.
A plataforma na qual Dominique Pelicot anunciava para que homens estuprassem sua esposa era um site francês sem moderação, o que tornava mais fácil reunir pessoas que compartilhavam interesses sexuais sem qualquer restrições, do que na época anterior à internet. (Agora o site foi fechado).
Um dos advogados de Gisèle comparou o site a uma "arma do crime", dizendo ao tribunal que sem ele o caso "nunca teria alcançado tais proporções".
Mas a internet também desempenhou um papel importante na mudança gradual de atitude em relação ao sexo em ambientes consensuais e não abusivos, normalizando o que antes era visto por muitos como algo extremo.
Na transição das revistas e filmes pornográficos comprados em sex shops obscuros para sites modernos como o PornHub, que registrou 11,4 bilhões de acessos pelo celular no mundo todo somente no mês de janeiro de 2024, as fronteiras da pornografia se expandiram enormemente.
A inclusão de atividades cada vez mais extremas ou de nicho aumenta a expectativa, de modo que o sexo "básico" pode se tornar mundano.
De acordo com uma pesquisa realizada com usuários online do Reino Unido em janeiro de 2024, quase um em cada 10 entrevistados com idade entre 25 e 49 anos relatou consumir pornografia na maioria dos dias, sendo a grande maioria do sexo masculino.
Daisy, uma universitária de 24 anos, me disse que a maioria das pessoas que ela conhece vê pornografia, inclusive ela. Ela prefere usar um site feminista cujos filtros de busca incluem "apaixonado" e "sensual", além de "bruto".
Mas alguns de seus amigos homens dizem que não consomem mais pornografia "porque não conseguiam desfrutar do sexo por terem assistido a muita pornografia quando eram jovens".
Um estudo de 2023 encomendado pela comissária da infância da Inglaterra, Rachel de Souza, constatou que um quarto dos jovens de 16 a 21 anos teve acesso à pornografia pela primeira vez na internet quando ainda estava na escola primária.
Na época, Souza disse: "O conteúdo adulto que os pais podem ter acessado na juventude pode ser considerado 'pitoresco' em comparação ao mundo atual da pornografia online".
A pornografia realmente molda atitudes?
As crianças que veem pornografia regularmente no celular antes da puberdade inevitavelmente crescem com expectativas sexuais diferentes daquelas despertadas pela Playboy no século 20.
Embora não tenha sido estabelecida uma relação direta de causalidade, há evidências significativas de uma associação entre o consumo de pornografia e atitudes e comportamentos sexuais prejudiciais em relação às mulheres.
De acordo com uma pesquisa do governo realizada antes da pandemia de covid-19: "Há evidências de que o uso de pornografia está associado a uma maior probabilidade de desejar ou se envolver em atos sexuais testemunhados na pornografia, e a uma maior probabilidade de acreditar que as mulheres querem se envolver nesses atos específicos."
Alguns desses atos podem envolver comportamento agressivo e dominador, como tapas na cara, asfixia, mordaças e cuspes. Daisy me disse: "A asfixia se tornou normalizada, rotineira, esperada, como beijar o pescoço. No caso da última pessoa com quem eu estava saindo, eu disse desde o início que não gostava de asfixia, e isso não foi um problema para ele."
Mas ela acredita que nem todas as mulheres vão se manifestar. "E, pela minha experiência, a maioria dos homens não quer que a mulher seja dominante no quarto. É aí que eles querem ter o poder."
Quarenta anos mais velha que Daisy, Suzanne Noble escreveu sobre suas próprias aventuras sexuais e agora tem um site e um podcast chamado Sex Advice for Seniors. Ela acredita que a disponibilidade de pornografia que retrata fantasias de estupro normaliza um ato que está enraizado na violência, e retrata o estupro como uma atividade que as mulheres desejam.
"Simplesmente não há educação suficiente sobre a diferença entre recriar uma fantasia que envolve um pseudoestupro e uma versão completamente não consensual do mesmo", ela argumenta.
De pequenos anúncios à vida real
Assim como a internet levou a pornografia do submundo para os quartos, ela também facilitou o acesso a eventos na vida real. Anteriormente, as pessoas que gostavam, por exemplo, de sadomasoquismo, podiam se conectar por meio de pequenos anúncios no verso de revistas, usando caixas postais em vez do endereço de suas próprias casas. Era uma maneira muito lenta e árdua de marcar um encontro sexual. Agora é muito mais fácil se conectar com esses grupos online, e depois planejar um encontro pessoal.
No Reino Unido, se tornou comum encontrar amor e relacionamentos por meio de aplicativos de encontros, e também é mais fácil se conectar com pessoas que desejam experimentar fetiches sexuais específicos, com uma infinidade de aplicativos sociais como o Feeld, voltado para quem quer explorar "desejos fora dos padrões existentes". Seu glossário online inclui uma lista de 31 desejos, incluindo poliamor, bondage e submissão.
Albertina Fisher é uma terapeuta psicossexual online que, no decorrer do seu trabalho, conversa com seus clientes sobre suas fantasias sexuais. "Não há nada de errado em ter uma fantasia sexual — a diferença é se a fantasia se tornar um comportamento sem consentimento", diz ela.
Segundo ela, as fantasias masculinas e femininas são diferentes, "mas muitas vezes incluem submissão e dominação". O principal aspecto das preferências sexuais como BDSM (sigla em inglês para bondage, disciplina ou dominação, sadismo e masoquismo) é que elas são seguras, sensatas e consensuais.
"O que duas pessoas querem fazer juntas é absolutamente aceitável". Isso, ela enfatiza, é o caso quando ambos consentem.
Tudo isso, é claro, é totalmente à parte do caso Pelicot. "Isso é violência sexual", diz ela.
"E é extremamente angustiante que isso possa acontecer dentro do que parecia ser um relacionamento amoroso. Realizar uma fantasia sem consentimento é uma forma extrema de narcisismo."
"Com o parceiro incapacitado, todas as suas necessidades são negadas. Assim, você tem uma fantasia de uma mulher que não precisa se preocupar em agradar."
Questionamentos sobre desejo
Um aspecto fundamental e problemático de toda a questão da fantasia é o desejo. Na era pós-freudiana, tornou-se uma obviedade que os desejos não devem ser reprimidos. E grande parte da teoria de liberação da década de 1960 enfatizava a autorrealização por meio da realização do desejo sexual.
Mas o desejo masculino se tornou um conceito cada vez mais contestado, principalmente por causa das questões de poder e dominação que muitas vezes estão envolvidas nele.
Os homens que foram julgados no caso Pelicot tiveram dificuldade em se ver como perpetradores. Alguns argumentaram que presumiram que Gisèle Pelicot havia consentido, ou que estavam participando de um jogo sexual libertino. Na visão de muitos deles, eles estavam simplesmente perseguindo seus desejos.
Há uma fronteira obscura em que uma forma muito básica de desejo masculino heterossexual (ou instinto primitivo de fazer sexo com uma mulher, ou mulheres, da maneira mais simples) pode se transformar em um esforço compartilhado, criando um esprit de corps de superação de limites que pode dar pouca atenção ou importância à experiência feminina.
Isso talvez explique por que Lily Phillips, artista da plataforma OnlyFans, recentemente atraiu uma fila enorme de participantes em sua tentativa de fazer sexo com 100 homens em um dia.
A tendência de objetificar as mulheres pode, em alguns casos, também se transformar em um desejo de aniquilar toda a questão do desejo feminino.
Obviamente, o desejo masculino assume muitas formas, a maioria de natureza totalmente saudável, mas tradicionalmente tem sido restringido por limites culturais.
Atualmente, esses limites mudaram radicalmente no Reino Unido e em outras partes do Ocidente, e a convicção subjacente de que a realização do desejo é um ato de autoliberação constitui uma combinação potente e, às vezes, preocupante.
O apelo de Andrew Tate
Andre de Trichateau, um terapeuta do bairro de South Kensington, em Londres, mencionou o apelo de influenciadores do movimento "masculinista" como Andrew Tate, um autoproclamado "misógino", que tem 10,4 milhões de seguidores no X (antigo Twitter).
Trichateau afirmou que encontrou homens que se sentiram humilhados e deslocados com a ascensão do feminismo. "Alguns homens não sabem quem devem ser", diz ele. "Os homens são socializados para serem dominantes, mas também se espera que estejam em contato com suas emoções, capazes de demonstrar vulnerabilidade."
"Essa confusão pode levar à raiva, direcionada ao movimento feminista, e [por sua vez, isso pode levá-los a] pessoas como Tate."
Com uma base de pacientes 60% masculina, Trichateau observa que "os homens podem ser socializados para enxergar o poder e o domínio como parte de sua identidade".
"Isso não é para justificar algo como o caso Pelicot", ele acrescenta.
"Mas objetivamente posso ver que tal comportamento é uma fuga da impotência e da inadequação. É tentador e proibido."
"O caso é perturbador porque mostra os extremos a que as pessoas vão."
Ele também destaca que grupos online, como o que Dominique Pelicot usou, podem ser muito poderosos. "Em um grupo, você é aceito. Ideias são validadas. Se uma pessoa diz que está tudo bem, todos concordam."
Muitas das conversas durante e após o julgamento do caso Pelicot se concentraram em como fazer a distinção entre sexo consensual e não consensual, e se isso deveria ser melhor definido na legislação — mas o problema é que o que significa consentimento é uma questão complexa.
Na opinião de Daisy, de 24 anos, algumas mulheres da sua idade tendem a concordar com as preferências sexuais dos homens, independentemente de seus próprios sentimentos. "Elas acham que algo é excitante se o homem com quem elas estão acha que é excitante."
Portanto, se os homens heterossexuais, em particular, estão realmente recebendo cada vez mais estímulos sexuais por meio da pornografia, isso gera mais questionamentos sobre a mudança na forma do desejo masculino.
E se as mulheres jovens sentirem que o preço da intimidade é aceitar esses desejos, por mais extremos que sejam, então, sem dúvida, o consentimento não é uma questão preto no branco.
Em última análise, pode haver um alívio generalizado pelo fato de o julgamento do caso Pelicot ter terminado e de os réus terem sido condenados, mas o caso deixa para trás ainda mais perguntas — perguntas que, dentro do espírito de uma mulher francesa incrivelmente forte, talvez sejam melhor discutidas abertamente.