O filme “Billy Elliot” (Universal, 2000) conta a história de um menino inglês de 11 anos que enfrenta a resistência de sua família diante da paixão dele pela dança. Depois do incansável esforço de sua professora de balé, o garoto venceu obstáculos e tornou-se um brilhante bailarino. Mas, a realidade pode se apresentar na sua forma mais cruel para os jovens que querem dançar: a discriminação.
Já imaginou se o prefeito de São Paulo proibisse alunos de frequentar aulas de balé simplesmente por suspeitar que eles fossem gays? Por mais absurdo que pareça, em 1987, Jânio Quadros, o então prefeito, fez esta proibição alegando que nas dependências da Prefeitura não se deveria admitir o “terceiro sexo”.
Além de vetar a entrada de alunos na Escola Municipal de Bailado, a medida também levou à expulsão de profissionais do Balé da Cidade de São Paulo e de outros órgãos municipais. No ano seguinte, em 1988, entrou em vigor a versão atual da nossa Constituição Federal, que no artigo 5º garante que todos são iguais perante a lei.
Marcos Bragato, professor no curso de Dança da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ensina que desde a antiga Grécia a dança era praticada por homens, inclusive como treinamento de soldados. Na Idade Média, a dança tornou-se, no Ocidente, uma forma de paquera nos salões da nobreza europeia. “Era algo parecido com nossa dança de salão de hoje”, exemplifica.
É a partir do século XIX, segundo o professor, que a mulher entra em cena literalmente, pois a dança deixa os castelos e passa a ser apresentada em teatros. A técnica de balé também virou instrumento para a educação de meninas. Então, a hegemonia feminina vive seu ápice na dança moderna. “A presença masculina se amplia com a dança contemporânea”, explica Bragato. A assimetria, no entanto, só começou a diminuir no século XX.
“Ainda há preconceito em qualquer lugar do mundo”, considera Pavel Kazarian, diretor geral da Escola do Teatro Bolshoi no Brasil. Segundo ele, “qualquer lugar do mundo” inclui mesmo a Rússia, famosa por revelar bailarinos como Nureyev, Vasiliev e Baryshnikov e por sua dança folclórica, na qual a figura masculina tem evidência.
Anselmo Zolla, diretor artístico da Cia. Sociedade Masculina, recorda que Vera Lafer, a fundadora do grupo, quis reunir os bailarinos que circulavam pela escola de dança Studio3 em uma proposta profissional inédita no País, uma companhia com um elenco exclusivamente masculino. “O desafio é conseguir mesclar as linguagens sem ter algum tipo de rótulo. A dança é universal e não tem sexo”, resume Zolla.
Antes de tornar-se professor, Bragato também foi bailarino e relembra suas dificuldades, rejeições e estigmas. “Tive resistência em entender que dança é uma profissão”, confessa ele, que foi o idealizador da mostra “Masculino na Dança”, no Centro Cultural São Paulo, nos anos 2000, que polemizou por abrir a discussão sobre gênero na dança.
Assumir a dança como profissão parece ser uma questão central. E, nisto, todos os entrevistados concordam. “Tentamos atrair os meninos para uma carreira que lhes trará grandes perspectivas e resultados”, revela Kazarian, informando que o Bolshoi já tem 40% de alunos do sexo masculino e que eles recebem apoio de suas famílias.
“A escolha da profissão não influencia a sexualidade”, diz o psiquiatra Jairo Bouer, justificando que nas diversas atividades profissionais há pessoas com diferentes orientações sexuais. Médico e comunicador, Bouer geralmente fala ao público adolescente na mídia e diz que a pior fase é na infância. “Estes meninos precisam começar cedo para ter um bom rendimento. O preconceito pode fazê-los desistir de uma carreira”, adverte.
“A profissão de dançarino/bailarino é como todas as outras, com vantagens e desvantagens”, afirma Bragato que também atuou como jornalista de dança. Kazarian destaca que meninos têm menos concorrência. “O mercado de trabalho para eles é muito mais amplo e convidativo”. Zolla confirma que os pequenos incentivados pelas famílias têm procurado o balé e lembra de grandes nomes como George Balanchine, Jerome Robbins, Mats Ek e Jirí Kylián. E também os brasileiros Henrique Rodovalho e Rodrigo Pederneiras. Todos com bem sucedida atuação como coreógrafos, confirmando a vastidão do campo profissional.