Depois de quatro anos de espera, o cantor, compositor e escritor Chico Buarque, de 78 anos, recebeu nesta segunda-feira, 24, em Sintra, Portugal, o prêmio Camões, o mais importante da literatura de língua portuguesa.
Um dos motivos da demora se deveu à recusa do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) em assinar a documentação necessária para que o artista recebesse o diploma em 2019, segundo explicou à BBC News Brasil o ministro da Cultura de Portugal, Pedro Adão e Silva. A entrega também ficou prejudicada pelo confinamento imposto pela pandemia de covid-19.
Em sua fala ao receber a premiação, em um salão nobre no Palácio Nacional de Queluz, Buarque, visivelmente emocionado, fez alusão a Bolsonaro, mas não o citou nominalmente.
"O ex-presidente (Bolsonaro) teve a rara fineza de não sujar o diploma de Camões, deixando o espaço em branco para a assinatura do presidente Lula", afirmou ele.
Segundo Buarque, "quatro anos de governo funesto duraram uma eternidade, porque foi um tempo em que o tempo parecia andar para trás. Aquele governo foi derrotado nas urnas, mas não podemos nos distrair, a ameaça fascista persiste", acrescentou.
"Recebo este prêmio menos como honraria pessoal, mas mais como desagravo pelos artistas brasileiros ofendidos por esse anos de estupidez e obscurantismo", finalizou.
Falando antes de Buarque, Lula disse que o prêmio corrigia "um dos maiores absurdos da cultura brasileira dos últimos tempos".
"O ataque a cultura em todas as suas formas foi uma dimensão do projeto que a extrema direita tentou implementar no Brasil. Se hoje estamos aqui para fazer essa espécie de celebração e reparação da obra do Chico é porque finalmente a democracia venceu no Brasil", disse.
"Não podemos esquecer que obscurantismo e a negação das artes também foi uma marca das ditaduras. Esse prêmio é uma resposta do talento contra a censura, do engenho contra a força bruta", acrescentou Lula.
Chico Buarque estreou como escritor de ficção em 1974, com a novela Fazenda Modelo. Em 1979, publicou o livro infantil Chapeuzinho Amarelo. Seu primeiro romance, Estorvo, foi lançado em 1991. Quatro anos depois, publicou o segundo, Benjamin. Em 2003, lançou Budapeste; em 2009, Leite Derramado e em 2014, Irmão Alemão. Ele escreveu as peças de teatro Roda Viva (1968); Calabar (1972, juntamente com Ruy Guerra); Gota D'Água (1974, com Paulo Pontes), e Ópera do Malandro (1978).
O prêmio Camões foi criado em 1988 "com o objetivo de consagrar um autor de língua portuguesa que, pelo conjunto de sua obra, tenha contribuído para o enriquecimento do patrimônio literário e cultural do idioma", segundo o Ministério da Cultura (Minc).
É considerado a mais importante premiação da língua portuguesa e contempla anualmente autores da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP). Seu nome homenageia o poeta português Luís de Camões (1524-1580), uma das maiores figuras da literatura lusófona.
O ganhador do prêmio recebe 100 mil euros (R$ 555 mil), sendo metade desse valor subsidiado pela Fundação Biblioteca Nacional, entidade vinculada ao Ministério da Cultura. A outra metade é paga pelo governo português.
O diploma entregue aos laureados contém o nome de todos os países lusófonos e é assinado pelos chefes de Estado de Portugal e do Brasil.
A escolha é feita por um júri de seis membros, dois do Brasil, dois de Portugal e dois escolhidos em comum acordo por outros países lusófonos (Angola, Cabo Verde, Moçambique, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe e Timor-Leste).
O primeiro a receber o prêmio, em 1989, foi o poeta e escritor português Miguel Torga.
Desde então, outros 33 escritores foram agraciados. Foram 14 do Brasil, 14 de Portugal, três de Moçambique, dois de Angola e dois de Cabo Verde (José Luandino Vieira, vencedor em 2006, é luso-angolano; ele recusou o prêmio).
Entre os brasileiros laureados, estão Raduan Nassar (2016), Ferreira Goulart (2010), Lygia Fagundes Telles (2005), e Jorge Amado (1994).
Devido à recusa de Bolsonaro em conceder o prêmio a Buarque, os seguintes escritores ainda não puderam recebê-lo: o português Vitor Manuel de Aguiar e Silva (2020), a moçambicana Paulina Chiziane (2021) e o brasileiro Silviano Santiago (2022).
Primeira mulher a publicar um romance em Moçambique, Chiziane é a primeira africana e a primeira negra a vencer a premiação. Niketche: Uma História de Poligamia é um de seus romances mais famosos.
'Viramos uma página'
Em declaração no sábado (22/4) em Lisboa por ocasião da abertura da 13ª Cúpula Brasil-Portugal, que já não acontecia havia sete anos, o primeiro-ministro português, António Costa, fez alusão ao prêmio Camões.
Ao lado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), Costa usou a recusa de Bolsonaro em entregar a premiação como um exemplo do esfriamento das relações entre Brasil e Portugal nos últimos anos. Segundo ele, no entanto, é momento de "virar a página".
"Queria sublinhar a importância do dia de hoje, em que depois de sete anos de interrupção retomamos as cimeiras (cúpulas) anuais entre Portugal e o Brasil. Retomamos estas cimeiras na segunda visita que em poucos meses o presidente Lula faz a Portugal e na primeira visita que o presidente Lula faz à Europa", disse.
Costa falou da "interrupção de contatos" entre os dois países. Em sua visão, a consequência mais clara disso foi o fato de "só na próxima segunda-feira (24/4) ser entregue a Chico Buarque de Holanda o Prêmio Camões, que ganhou há quatro anos, em 2019".
"Viramos, por isso, uma página", disse.
Lula está em viagem oficial em Portugal, aonde chegou na última sexta-feira (21/4). Ele fica no país até terça-feira (25/4), quando segue para a Espanha. Seu retorno ao Brasil está previsto para a noite de quarta-feira (26/4).