Por Lucas Rizzi - Curon Venosta é uma cidadezinha de 2,4 mil habitantes no extremo norte da Itália, em uma região onde é mais fácil ouvir alemão do que o idioma pátrio. Turistas em busca de selfies são atraídos por seu antigo campanário semissubmerso em um lago, sem saber que aquelas águas escondem um povoado que foi refém de Mussolini, de Hitler e de uma represa construída à revelia dos moradores.
Essa história é contada pelo escritor Marco Balzano no romance "Daqui não saio", finalista do Prêmio Strega em 2018 e que chega às livrarias do Brasil no dia 24 de fevereiro. A inspiração para a obra surgiu por acaso: Balzano passava férias no Alto Ádige, a única zona administrativa da Itália onde os falantes de alemão são predominantes, quando errou o caminho e deu de cara com Curon e o majestoso Lago di Resia.
Em entrevista exclusiva à ANSA, o escritor conta que sua primeira impressão ao ver a paisagem foi a de entrar em um quadro surrealista. O lago artificial é o maior da província autônoma de Bolzano-Alto Ádige e foi construído para gerar energia elétrica, submergindo os antigos vilarejos de Curon Venosta e Resia, que seriam reconstruídos mais acima.
A única estrutura ainda parcialmente visível é o campanário de Curon, uma obra do século 14 que emerge da água e pode ser alcançada a pé durante os meses de inverno. "Pensei que, se ali tinha um campanário e água em volta, embaixo devia haver um vilarejo que havia sido brutalmente submerso e, portanto, uma história. Parecia-me uma bela metáfora, a do escritor que, como um mergulhador, emerge para levar à superfície uma história que estava sob a água", diz Balzano.
O romance se constitui de uma longa carta da professora-camponesa Trina para sua filha, Márica, em um relato que é, sobretudo, uma história de resistência. Resistência contra o fascismo, contra o nazismo e contra a represa. "'Restare' [ficar] e 'resistere' [resistir] têm significado similar, porque é preciso ficar para resistir. Então, sim, é um livro de resistência. De resistência à ditadura, mas também uma resistência que se dá por meio das palavras", afirma o autor.
Ditaduras
Em seu relato para Márica, Trina narra a batalha de Curon contra a represa, a repressão do fascismo ao falantes de alemão e as tensões que surgem - inclusive dentro das famílias - quando o nazismo se instala na cidadezinha. Para muitos, Hitler é a libertação contra Mussolini e a hidrelétrica, mas Trina e seu marido, Erich, se negam a aceitar o horror emanado pelo Reich.
"Eu acredito que um escritor nunca pode contar uma história apenas por ela ser uma anedota. Eu não queria falar somente do Alto Ádige. Quis contar essa história quando entendi que ela é a história de tantas fronteiras, de tantos lugares destruídos pelo progresso furioso, pouco racional, desrespeitoso, violento. Isso pode acontecer no Brasil, na Itália, em Israel, em qualquer parte do mundo - e acontece", diz Balzano.
Segundo ele, as ditaduras manipulam o conceito de identidade e o idioma e os tornam armas para combater o outro. "Isso ocorre ainda hoje. Há governos particularmente conservadores, racistas e xenófobos, então me parece uma história atual. A literatura, diferentemente do noticiário, pode falar do presente mesmo quando conta uma história do passado", salienta.
Foram pouco mais de três anos entre a visita acidental do escritor a Curon Venosta e o lançamento do livro. A preparação do romance incluiu um extenso trabalho de pesquisa documental e bibliográfica e entrevistas com cinco testemunhas que vivenciaram aquela época.
Os personagens e a história humana da narrativa são fruto da imaginação de Balzano, mas todo o contexto que cerca a obra é real, como comprova o campanário semissubmerso do Lago di Resia, escolhido como capa do livro.
"Queria fazer com que a mãe, por meio dessa espécie de longa carta à filha, pudesse contar de uma maneira muito íntima um fato histórico muito amplo." Para Balzano, o ritmo mais lento da literatura permite parar por um momento, sair do presente e notar as histórias que se escondem sob seus pés - ou, no caso de Curon, debaixo da água.