Ainda Estou Aqui colocou o Brasil no radar de Hollywood na atual temporada de premiações internacionais de cinema.
O filme de Walter Salles, que há pouco mais de duas semanas consagrou a atriz Fernanda Torres no Globo de Ouro, recebeu o prêmio de filme internacional no Festival Internacional de Cinema de Palm Springs, nos Estados Unidos.
O longa, pré-selecionado entre os melhores filmes internacionais do Oscar, ainda tem chances de trazer uma estatueta inédita para o país.
Mas o caminho para o Oscar não depende apenas do mérito do filme ou da atriz, ressalta a crítica de cinema Isabela Boscov.
Boscov, que acompanha premiações de cinema há mais de 30 anos, diz que uma palavra é chave para levar o prêmio mais importante do cinema para casa: campanha.
Participação em eventos, entrevistas, aparições públicas, sessões do filme com debates para votantes da premiação. Tudo isso faz parte de um esforço estratégico para divulgar o filme e fazer a obra ser mais vista e comentada.
"[Esses prêmios] também são um concurso de popularidade. Não é só um concurso de merecimento", diz a jornalista.
"Se pensarmos friamente, é estranho você decidir qual é a melhor atriz do ano porque cada uma interpreta personagens que exigem coisas muito diferentes."
A lista definitiva de indicados ao Oscar deve sair nesta quinta-feira (23/1) após o anúncio ser adiado duas vezes por conta dos grandes incêndios em Los Angeles.
Os ganhadores serão conhecidos na 97ª cerimônia do Oscar em 2 de março, o domingo de Carnaval.
Em entrevista à BBC News Brasil, Boscov, que hoje se dedica ao seu canal no YouTube com mais de 900 mil inscritos, vê chances para Ainda Estou Aqui e Fernanda Torres no Oscar.
Mas prevê que o embate para Fernanda Torres será mais difícil desta vez do que no Globo de Ouro, porque a atriz brasileira deve enfrentar Demi Moore, que aparece em várias listas de favoritas, na mesma categoria desta vez.
Enquanto Fernanda Torres ganhou o Globo de Ouro na categoria de filmes dramáticos, a atriz americana levou o prêmio na categoria musical ou comédia — essa divisão não existe no Oscar.
"Moore entendeu uma coisa que talvez nem todo mundo entende, que um discurso de agradecimento em uma premiação anterior à votação do Oscar é uma parte importantíssima da campanha", diz Boscov.
"O discurso da Fernanda Torres foi muito bonito, mas foi de quem estava surpresa. Não foi um discurso de campanha como foi o da Demi Moore."
'Sentimento de justiça'
Boscov, no entanto, ressalta o impacto da vitória de Torres no Globo de Ouro para a corrida ao Oscar.
Fernanda Torres desbancou estrelas de Hollywood como Nicole Kidman, Kate Winslet, Angelina Jolie, Tilda Swinton e Pamela Anderson.
"As atrizes que estavam concorrendo com ela são do primeiríssimo escalão. Então a vitória dela realmente chamou muita atenção e foi considerada por todos os veículos especializados o grande tumulto da noite", diz Boscov.
"Isso vai mexer um pouco no jogo."
A crítica de cinema diz que considera a atuação de Torres fabulosa porque a atriz trabalha "sempre em dois níveis diferentes, pelo menos".
No filme, baseado no livro homônimo de Marcelo Rubens Paiva, ela interpreta a advogada Eunice Paiva, uma mulher que precisou lidar com o sequestro e o assassinato de seu marido — o ex-deputado Rubens Paiva — no período da ditadura militar (1964-1985).
"A interpretação da Fernanda tem que funcionar de maneira que ela projete o que Eunice mostra para os outros personagens", diz Boscov.
"Mas ela também tem que revelar de maneiras muito sutis, implícitas sempre, tudo aquilo que está se passando no íntimo dela", complementa.
"É um processo extremamente difícil, muito técnico, e vem cheio também da capacidade dela de entender a emoção de cada momento."
Após 25 anos da indicação de Fernanda Montenegro, mãe de Torres, a vitória no Globo de Ouro foi comemorada no país como final de Copa do Mundo. Quase uma revanche.
"Há um sentimento de justiça e de compensação", comenta Boscov.
Um novo fôlego para o cinema nacional
Ainda Estou Aqui representa um novo fôlego para a indústria nacional de cinema, diz a crítica.
Um papel semelhante ao que Central do Brasil — também dirigido por Walter Salles e estrelado por Fernanda Montenegro, mãe de Fernanda Torres — desempenhou quando foi lançado, em 1998.
"Naquele momento, a retomada do cinema brasileiro era algo recente", diz Boscov.
"Walter Salles fez um filme sobre o terror político e social do período Collor, que foi Terra Estrangeira. Depois, Central do Brasil surgiu como uma possibilidade de um novo pacto social, de uma retomada da ética e da valorização do cinema", prossegue.
"Estamos passando por algo parecido agora, depois de um período em que a cultura foi muito massacrada no país."
Com uma diferença, diz Boscov: hoje, o Brasil está mais polarizado.
Em novembro de 2024, quando foi lançado, Ainda Estou Aqui sofreu uma tentativa de boicote.
Perfis na rede social X de pessoas que se apresentam como de direita pregaram sabotar o filme, que já ultrapassou 3 milhões de espectadores nos cinemas brasileiros.
"O mundo é outro, o país é outro", afirma Boscov.
"Central do Brasil inaugurou uma fase de muita receptividade e boa vontade em relação ao cinema nacional", pontua.
"Depois vieram Cidade de Deus, que consta de muitas das listas dos cem melhores filmes da história de vários críticos ou de vários grupos de críticos; e O Auto da Compadecida, que foi superpopular também", continua a jornalista.
"Ainda Estou Aqui também é capaz de fazer isso. Mas em um Brasil mais polarizado do que era o país em 1998, 2002 ou 2004."
O olhar do diretor para a ditadura militar no Brasil é um dos grandes méritos do filme, diz Boscov.
Isso em um país onde prevaleceu o silêncio sobre o regime, enquanto países vizinhos, como a Argentina e o Chile, promoveram julgamentos e condenações aos responsáveis pelos crimes da ditadura — o que impactou no modo como cada país retratou o período.
"Muitas questões não foram discutidas e enfrentadas no Brasil, e isso também se reflete na forma como o cinema aborda o tema", afirmou.
Baseado no livro de Marcelo Rubens Paiva, o filme traz uma abordagem intimista e familiar à ditadura.
"Walter Salles consegue dar um rosto a essa história, o que torna a relação do público com o problema muito mais direta e psicológica. As pessoas se perguntam: e se fosse minha família?"
Para a crítica, o sucesso do filme também reacende debates sobre financiamento de produções nacionais.
"O cinema brasileiro vive de altos e baixos, porque não tem propriamente uma política de Estado para ele", diz Boscov.
"Normalmente é uma política de governo, que varia conforme a gestão — e algumas preferem jogar tudo fora, como aconteceu recentemente. Estamos sempre nessa gangorra."
O sucesso de Ainda Estou Aqui deve criar uma disposição maior de investimento no setor, "além de, lógico, tocar o público de maneira muito positiva", afirma Boscov.
"Isso faz com que produtores e entidades que produzem que este é um bom investimento."
Ainda com indicações do Oscar pendentes, o filme pode repetir a rivalidade com o longa Emília Pérez na categoria de melhor filme estrangeiro.
Embora seja visto como um "queridinho" da temporada, o filme tem sido alvo de duras críticas por parte da comunidade mexicana, principalmente sobre representatividade, que podem equilibrar a balança da competição com a produção brasileira, diz Boscov.
"O Globo de Ouro projetou não apenas o filme, mas também as objeções do México. Isso pode influenciar a votação do Oscar", ponderou Isabela.
Mais importante que a recepção internacional, no entanto, é que Ainda Estou Aqui existe, antes de tudo, para os brasileiros.
"Ele vem para dizer que é possível fazer um cinema relevante para o público brasileiro, reconhecido tanto no Brasil quanto fora."