Por falta de tempo, dinheiro ou apenas indecisão de onde passar o carnaval, muita gente deixou para comprar os ingressos para ver os desfiles nas arquibancadas da Marquês de Sapucaí, no Rio de Janeiro, em cima da hora. Para os ‘atrasados do sambódromo’, a emoção de ver as escolas brilharem na Avenida talvez não chegue --pelo menos em 2024.
O motivo é que os bilhetes para as arquibancadas especiais e cadeiras individuais dos dois dias de desfile do Grupo Especial acabaram ainda em dezembro. Isso por meio da venda oficial, pela Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa).
Na internet, o cenário é um pouco diferente. Ao pesquisar a disponibilidade de entradas para a Sapucaí, o folião interessado é bombardeado de ofertas vindas de agências de turismo da capital carioca.
Por um lado, a prática vai de encontro ao sugerido pela organização da Rio Carnaval. Por outro, o achado se apresenta como uma esperança para aqueles que não medem esforços --e gastos-- para assistir ao desfile direto da avenida.
Promessa de valor justo
Veterano de Sapucaí, o economista Rafael Braz, de 25 anos, já sabia o que tinha que fazer para garantir as entradas nos dias do desfile. Se quisesse pagar um preço justo pela festa, teria que se antecipar e comprar direto do ponto oficial indicado pela Liesa. Dito e feito. Assim que as vendas abriram para público geral, em novembro, ele conseguiu adquirir o bilhete.
A expertise veio com a vivência. “Por ter ido ano passado, eu já sabia que ficaria super caro deixar para comprar na hora”, admitiu. No primeiro carnaval que curtiu no Rio, ele passou perrengue para entrar na Marquês de Sapucaí.
“Em 2023, eu estava com uma amiga que comprou o ingresso no setor errado. Para tentar resolver, fui conversar com um cambista na porta e ele me cobrou R$ 800 pela entrada”, contou. O valor era muito maior que os R$ 130 que ele tinha desembolsado no ponto de venda oficial.
A diferença entre a folia deste ano e do passado, é que, para o carnaval de 2024, Rafael comprou o ingresso na Ticketmaster. Com a justificativa de facilitar a venda ao folião, a Liesa anunciou ainda em julho uma parceria de exclusividade com a plataforma para a comercialização das entradas do sambódromo.
Essa é a primeira vez que a Liga concentra as vendas para camarotes, arquibancadas e frisas em uma só empresa. A justificativa, além do acordo milionário, seria a de facilidade para o consumidor e maior controle da organização para evitar golpes e fraudes.
Isso porque, ao comprar o ingresso pela plataforma, o folião recebe um QR code dinâmico, que será atualizado várias vezes por minuto no dia do evento. Segundo as empresas, esse código de acesso diminui as chances de que o bilhete seja usado por quem não o comprou.
Pela Ticketmaster, Rafael pagou R$ 175 para ver os desfiles do grupo especial no setor 8 da Sapucaí. “Comprei lá porque fica perto do recuo da bateria e de alguns jurados”, argumentou.
O valor está dentro da tabela de preços divulgada pela Liesa. Entre os 13 setores de arquibancadas disponíveis para compra, os mais baratos são o 12 e o 13, com preços que variam entre R$ 7,50 na meia-entrada, e R$ 15 na inteira. O ticket mais caro é o do setor 9, único que garante lugar marcado nas cadeiras: R$ 550, sem divisão de meia-entrada.
Corrida pela meia-entrada
Assim como Rafael, muitos foliões bem informados fizeram de tudo para comprar os bilhetes com antecedência na Ticketmaster. No entanto, quem pensava em pagar meia-entrada acabou tendo dor de cabeça com a plataforma.
Mesmo assegurados a jovens de baixa renda, estudantes, idosos, pessoas com deficiência e professores municipais, a “meia” esgotou muito rápido. A situação gerou uma série de contestações no Reclame Aqui, site usado para empresas e consumidores resolverem problemas.
Curtir a Sapucaí a preço justo pareceu uma corrida de “quem chegar primeiro, leva”. Basta pesquisar “Rio Carnaval” e “Ticketmaster” na página para encontrar diversas reclamações.
“Tento comprar meia-entrada para o setor 10 desde ontem e não consigo, só estão disponíveis as inteiras”, escreveu um usuário apenas nove dias depois do início das vendas oficiais.
Outra pessoa também contestou a empresa pela falta de ingressos a 50% do valor total. “Ontem, no dia 23 de novembro de 2023, abriram as vendas pelo site e as meias esgotaram em questão de minutos. Isso é impossível. Compro todo ano e nunca aconteceu”, relatou.
A empresa, que comercializa os bilhetes para os desfiles na Sapucaí, respondeu às reclamações garantindo que 40% deles foram destinados, sim, à meia-entrada, conforme orienta a lei.
Já a Liesa, organizadora oficial do evento, anunciou que todos os ingressos para as apresentações do grupo especial estavam esgotados em 12 de dezembro, quase um mês após o início das vendas.
Para Rafael, mesmo com o monitoramento via site oficial e um forte esquema para evitar revenda de ingressos, o cambismo pode ser uma justificativa para a dificuldade enfrentada pelos foliões na hora de comprar os bilhetes.
“Tem muito cambista que vende entrada para o sambódromo e até acaba rápido na mão deles! Muitos ‘gringos’ vão na hora e acabam pagando o valor que eles cobram”, opinou.
O economista ainda acredita que o negócio informal por trás da venda de ingressos dá certo porque mexe com o sonho das pessoas. “Tem gente que está indo para realizar um sonho, infelizmente não se organizou, vai lá e compra mesmo”, garantiu.
Atraso que sai caro
Se Rafael conseguiu o ingresso a preço justo pela Ticketmaster, Arthur Lorenzo, de 24 anos, não teve a mesma sorte. Não é a primeira vez que o brasiliense sai da capital federal para curtir o carnaval no Rio de Janeiro. Nos anos anteriores, ele já tinha aproveitado a festa nos bloquinhos de rua. Dessa vez, queria conhecer o tão falado sambódromo.
No dia em que a Liesa abriu as vendas, Arthur entrou na bilheteria virtual, escolheu o setor 8, clicou em “comprar ingresso” e… erro na página. Por algum motivo, o site apresentou alguns problemas que o impediram de pagar pela entrada.
Por causa disso, deixou para comprar depois, quando talvez, quem sabe, a plataforma voltasse a funcionar para ele. No dia que resolveu tentar novamente, tomou um susto: “Quando eu vi, todos os ingressos para as arquibancadas estavam esgotados”, contou.
A saída foi procurar outras alternativas sem precisar esperar o dia do desfile para arriscar com cambista no portão de entrada. “Fui tentar procurar em agências de viagem, mas os preços cobrados estão impraticáveis. Vi de R$ 750 até R$ 1.500. São preços abusivos!”, reclamou.
Uma das agências encontradas por Arthur em sua pesquisa na internet foi a Luftur Eventos. Em seu site, a empresa de turismo revende os ingressos para os dias de desfiles do grupo especial. O valor mais baixo é para os setores 12 e 13 da Sapucaí: R$ 150.
Se comparado aos R$ 15 cobrados pela Liesa pelo mesmo espaço, a oferta pode ser considerada abusiva. E não basta pagar R$ 135 a mais que o tabelado pela Liga. O folião ‘atrasado’ também terá que desembolsar um valor expressivo para receber o bilhete em casa, se preferir.
Localizada em Copacabana, na zona sul do Rio, a agência de turismo cobra R$ 100 a mais para entregar o bilhete, mesmo se o endereço for na mesma região da cidade. Quem optar por retirar na loja, por outro lado, não pagará valor adicional.
O ingresso mais caro é cobrado justamente no setor 8, onde Arthur pretendia ficar. Enquanto Rafael pagou R$ 175 na meia-entrada da mesma localização pela Ticketmaster, a Luftur revende o bilhete a ‘salgados’ R$ 1.100.
Outra empresa considerada por Arthur na hora do “desespero” foi a Go Carnaval Rio. Cadastrada no Cadastur, um sistema de cadastro de pessoas físicas e jurídicas que atuam no setor de turismo, a agência também revende ingressos para todos os setores das arquibancadas especiais.
No setor 10, por exemplo, o preço cobrado pela Go Carnaval Rio é de R$ 604, enquanto a Liesa definiu o valor em R$ 290 a inteira e R$ 145 a meia-entrada. Já os setores 12 e 13 estão um pouco abaixo do valor cobrado pela Luftur, mas ainda assim muito acima do definido pela Liga. Quem quiser ver os desfiles por lá, deverá desembolsar R$ 127 no site.
Mesmo achando caro, Arthur admite que considerou comprar através das agências para viver a experiência de curtir um dia de desfile no sambódromo. No entanto, ele ressalta que a prática vai de encontro a ideia inclusiva de carnaval.
“Essa prática acaba indo contra a proposta das arquibancadas que, no geral, dão maior acessibilidade para a população curtir a festa”, afirmou. O brasiliense também confessou que se sentiu desestimulado a curtir na Sapucaí assim que abriu as tabelas de preços das empresas turísticas.
O que era para ser uma alternativa de esperança para os atrasados se tornou desânimo com preços tão acima dos oficiais. “São valores muito maiores e que me fizeram questionar se vale a pena ou não participar da festa. Isso não faz parte do propósito do sambódromo”, disse Arthur.
O brasiliense ainda considera que a revenda dos ingressos de carnaval por agências de turismo também pode se enquadrar em cambismo, prática vedada pela Lei nº12.299. “Acho que essa prática também pode ser considerada cambismo, mesmo que seja via internet e não presencial, como estamos acostumados”, opinou.
O que dizem os envolvidos
Procurada pelo Terra, a Liga Independente das Escolas de Samba do Rio de Janeiro (Liesa) ressaltou que a única forma legal e oficial de comercialização dos ingressos para o Rio Carnaval 2024 é pela Ticketmaster.
A exceção é o setor 9. As entradas para a arquibancada turística são contratualmente destinadas à Associação Brasileira de Agências de Viagens (ABAV). “Todos os demais sites e canais não são autorizados e, assim, aplicam golpes ou emitem ingressos falsificados, que não serão aceitos nos dias dos desfiles”, disse comunicado.
Sobre as agências que fazem a prática e estão cadastradas no Cadastur, o Ministério do Turismo informou que essas empresas podem, sim, oferecer serviços e produtos turísticos ao público interessado em acompanhar os desfiles, desde que seja em conformidade com normativas do setor por meio de parceria entre a Liesa e a ABAV-RJ.
Em relação ao Cadastur, o ministério explicou que cuida do cadastro e da fiscalização das empresas turísticas no que diz respeito às infrações estabelecidas na Lei Geral do Turismo . “Cabe reforçar que as demais questões referentes à obediência aos direitos do consumidor devem ser investigadas pelos órgãos de defesa do consumidor”, frisou em pronunciamento.
“O Ministério do Turismo possui uma parceria com o Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional do Consumidor (SENACOM), no qual são elaborados de forma conjunta informativos voltados ao Consumidor Turista, com orientações e dicas que buscam aprimorar as relações de consumo no setor do turismo”, detalhou.
Também contatada pelo Terra, a Luftur Eventos disse que não poderia ajudar na reportagem. A Go Carnaval Rio não respondeu às tentativas de contato.