Cerca de 15 mil profissionais trabalham como cordeiros nos circuitos do carnaval de Salvador e recebem uma diária de R$ 80. Para Rosy Santos e Jaciara Felipe, o trabalho proporciona ajuda no pagamento de despesas básicas da família.
Com camisas coloridas e luvas nas mãos, os cordeiros seguem enfileirados em volta de uma grande corda para delimitar o espaço para até cinco mil associados dos blocos no carnaval de Salvador. Faça chuva ou faça sol, cerca de 15 mil profissionais estão nos circuitos Dodô (Barra-Ondina) e Osmar (Campo Grande) para exercer essa árdua função em todos os dias de festa.
Por mais difícil que seja aguentar horas em pé e o barulho intenso dos trios, muitas pessoas veem no ofício temporário --com diária de R$ 80 paga pelos blocos--, uma oportunidade para ajudar no pagamento de despesas básicas. É o caso da cuidadora Rosy Santos, de 38 anos, que há uma década atua como cordeira no carnaval.
Esta é a terceira matéria da série de reportagem 'Invisíveis no Carnaval', que conta a história de profissionais negligenciados, mas essenciais para a folia em São Paulo, no Rio de Janeiro, em Salvador, no Recife e em Olinda.
Em entrevista ao Terra, Rosy Santos fala sobre as dificuldades enfrentadas na função. Neste ano, a baiana dividiu-se entre os circuitos durante os seis dias de trabalho nas cordas.
A gente sabe que trabalhar na corda não é fácil, né? E é muito importante, só que muitas vezes não é visibilizado, não é visto, mas é muito difícil - Rosy Santos
Sempre atenta ao ritmo do bloco e dos foliões, Rosy diz que também se preocupa com a violência, já que estão na linha de frente do trio elétrico na maior festa de rua do mundo. "Como você vê que hoje a violência está superando os limites, a gente tem que respeitar o momento de cada um", declara ela, que enfatiza a vulnerabilidade da função a humilhações.
Mas, ao mesmo tempo que têm foliões que os maltratam em meio à multidão, Rosy conta que há aqueles que se solidarizam --oferecem água e comida pelo trajeto. Tem até àqueles que o defendem e os exergam como o ser humano que são.
E, apesar da tensão sentida durante o percurso , o carnaval também aflora a admiração que ela tem pela festa. Inclusive, ela revela que a filha Yasmin, de 18 anos, foi com ela para trabalhar e curtir um pouco das atrações. "A gente tem que se divertir também, que a gente também não é de ferro, né? É um momento contagiante, a gente tem que aproveitar um pouco", fala aos risos.
Rosy conta que a quantia recebida nas diárias vai ser usada para comprar os materiais escolares dos filhos. Com os olhos marejados, a cuidadora diz que embora não tenha concluído o ensino fundamental, a educação é uma prioridade dentro de casa com as crianças.
"Esse trabalho é para ajudar no material deles. Eu só estudei até a quarta série, mas priorizo muito mais os estudos dos meus filhos. Porque não sei, futuramente, o que é que eu posso dar para eles."
Ela ainda projeta um futuro diferente para os filhos: "A dificuldade hoje em dia da gente que vem de baixo é muito forte. Eu sou mãe solteira. Então, a minha luta vem de muitos anos e eu luto por eles", revela.
Necessidade
Assim como Rosy, a ambulante Jaciara Felipe, de 62 anos, que também atua na área de reciclagem, conta que voltou à função após cinco anos pela necessidade. Segundo ela, a ideia é 'fazer um dinheirinho' e pagar as contas, considerando que a filha Jucilene, de 43 anos, tem deficiência e depende dela.
"A necessidade obriga a gente. Esse dinheiro já serve para quebrar um galho com a conta de luz, o gás. Agora, o valor que estão dando é muito pouco. Era para ser pelo menos R$ 150, porque não tem carnaval se não tiver cordeiro. A gente vem aqui porque precisa", afirma.
Com quatro diárias trabalhadas, ela comenta os desafios para chegar no circuito e aguentar a rotina do trabalho como cordeira. "Eu chego 12, uma hora, e, em dois dias, fui para casa às seis horas da manhã", diz Jaciara, que não esconde o cansaço da função no modo de andar e até de falar. No olhar, no entanto, a esperança de dias melhores para ela e para a família.
"É muito cansativo porque você tem que ficar esperando o horário de saída do trio. Às vezes, isso acaba atrasando porque o trio deu defeito. E aí fica ruim, mas a gente vai fazer o quê? A gente dá graças a Deus", relata ela, que explica que os horários não são fixos e dependem da dinâmica do dia.
É muito cansativo porque você tem que ficar esperando o horário de saída do trio. Às vezes, isso acaba atrasando porque o trio deu defeito. E aí fica ruim, mas a gente vai fazer o quê? A gente dá graças a Deus - Jaciara Felipe
Valorização
Ao longo do percurso do circuito, os cordeiros podem ser liberados para ir ao banheiro e beber água, de acordo com Jaciara, que ainda aguardava a manobragem do trio. Diante de tal cenário, a ambulante enfatiza o desejo pela valorização da classe. Ela acredita que, a partir do reconhecimento da importância da força de trabalho, a realidade pode mudar.
"Todos precisam ver o sacrifício da gente para poder aumentar a diária. Não só para mim, mas para outros cordeiros que precisam também. A gente puxou o Ilê e foi um trabalho para puxar as cordas, foi muito trabalho. A gente puxava a corda para frente e ela vinha para trás”, destaca.
A discussão sobre o aumento da diária dos cordeiros ganhou repercussão pouco antes do carnaval. O valor foi definido após uma reunião entre a Associação de Blocos e Trios e o Sindicato dos Cordeiros (Sindcorda). No entanto, o valor difere da quantia pedida pelos profissionais neste ano. A reivindicação era de R$ 150 por dia trabalhado. Em 2023, os cordeiros receberam o valor de R$ 64.
Desigualdade
Para a jornalista e doutora em antropologia, Cleidiana Ramos, o carnaval-- assim como, outras festas populares--, é reflexo das dinâmicas de vida das pessoas e da própria realidade do mundo. Ou seja, não dá para desvincular os fatores relacionados à desigualdade social, por exemplo.
"O cordeiro é aquele tipo de figura, se a gente for pensar, é mais um serviço que é essa questão terrível da desigualdade. E, claro, não dá para a gente desvincular do racismo. Porque quem vai ser o cordeiro é quem nunca esteve lembrado na questão do emprego formal. É quem vive de bico", analisa.
A partir disso, a doutora ressalta a influência de movimentos sociais na reivindicação e garantia de direitos da categoria que trabalha, muitas vezes, em algumas situações de vulnerabilidade como o uso de proteção auricular devido ao som alto por longo período.
"Que é um barulho que você, num primeiro momento, você pode achar que aquilo não causa nenhum tipo de impacto para a sua saúde. Mas imagine o que é você passar quatro dias ou mais submetido àqueles altos decibéis de um trio elétrico?", aponta.