Enquanto seres humanos que vivem de memórias e registros passados de geração em geração, costumamos ter dificuldade em imaginar o que veio antes de nós. No sentido mais amplo, falo aqui sobre o universo, a Terra e nossos ancestrais. Diminuindo o raio dessa reflexão, me peguei fazendo um grande esforço para assimilar que o Axé não nasceu junto com todos os baianos e que existia carnaval muito antes do surgimento do gênero.
- - Este é o terceiro episódio da série de reportagem Vozes do Axé, que resgata os 40 anos do gênero musical a partir da história de cantores e cantoras --Armandinho, Daniela Mercury, Margareth Menezes, Gilmelândia e Léo Santana-- que levaram esse som baiano para o mundo.
Graças ao jornalismo, fui posta cara a cara com Armandinho Macêdo, que, no meio do evolucionismo musical, é hoje uma das referências do Axé, mesmo tendo começado a fazer sucesso na era pré-Axé. Armandinho é filho de Osmar, que criou o Trio Elétrico junto com Dodô em 1950. Apenas alguns anos mais tarde veio o Axé, cujo marco é a música Fricote, criada por Luiz Caldas em 1985.
“Frevo e marcha era o que rolava no carnaval, era o que rolava no Trio Elétrico”, relata Armandinho. Mas aí veio o primeiro cantor de trio, Moraes Moreira, e na levada “uma meninada nova” fazendo uma “mistura diferenciada” que originaria o Axé.
“Cada um tinha a sua onda musical e começa a acontecer essa mistura, que tem como marco o próprio Luiz Caldas. Ele lança um disco onde já não tem mais guitarra baiana, é teclado, onde ele estabelece já outro ritmo, que ele chamou de Fricote. Essa é a marca do início do Axé. Por isso que temos o rei do Axé, Luiz Caldas, depois vem a rainha Daniela Mercury”, afirma.
Da ebulição musical que vivia a Bahia para o estouro nacional foi como num estalo. Daniela, Carlinhos Brown, Timbalada, Chiclete com Banana, Margareth Menezes e tantos outros estavam em plena ativa, lançando hits atrás de hits. Tudo convergia para o Trio Elétrico, diz Armandinho. Tudo convergia para o carnaval.
Pré e pós-Axé
Se Luiz Caldas é o pai do Axé, Moraes Moreira e Armandinho Macêdo pavimentaram o caminho para a chegada do novo gênero. Juntos, os dois assinam as músicas que faziam o carnaval desde os anos 1970.
“Todo mundo que faz parte dessa história do Trio Elétrico acaba virando Axé. Nós viramos Axé. O Moraes dizia, ‘Não, nós não somos Axé. Nós somos anteriores ao Axé’. Nós fomos a base de tudo o que aconteceu até a mistura”, conta Armandinho.
Fosse ou não do gosto de Moraes, a verdade é que os dois se tornaram, sim, sinônimos de Axé. Chame Gente, gravada originalmente no mesmo ano de Fricote, em 1985, é até hoje um dos maiores hinos do gênero.
Para Armandinho, é a música que melhor retrata o espírito baiano e o carnaval. “Primeiro, foi a primeira melodia que eu fiz como saudação, querendo renovar a sonoridade do Trio Elétrico. Em seguida, a letra do Moraes Moreira consagra essa música. Porque ela traz todo esse espírito, o sagrado e o profano, essa mistura e toda a alegria que acontece na Bahia. É a música que melhor representa o Trio Elétrico”, diz.
A história de vida de Armandinho se confunde com a do carnaval. Juntos, ele e seus irmãos compõem a banda Armandinho, Dodô e Osmar, formada lá em 1974. Apesar de sempre ter sido o solista do grupo e quem fazia as composições, o músico só aceitou que seu nome encabeçasse a banda por uma exigência do pai.
“No primeiro disco, meu pai disse, ‘Meu filho, é você que grava, é você que toca. Tem que ter você na capa, o seu nome, é sua história’. Mas o trio elétrico para mim era uma história tão importante que eu não me dava esse valor. ‘O disco não é meu, o disco é seu, é de Dodô’. Apesar de que Dodô nem tocava. E aí, no segundo disco, meu pai exigiu, ‘Se você não botar seu nome aí, eu não vou permitir’”, relembra.
Hoje, a banda tem mais de 50 anos de carreira, mantendo vivo o legado dos criadores do trio elétrico. Todos os anos, os irmãos Macêdo saem com um trio para os foliões pipoca. Mesmo levando esse sobrenome, é uma luta para colocar o trio na rua por falta de patrocínio e perda de espaço para os grandes blocos. “Virou comércio”, se queixa Armandinho.
Ainda assim, a vinda de artistas de outros ritmos para o carnaval de Salvador é, para o músico, a maior prova de que o Axé está vivo nos mesmos moldes que em seu início: vindo da mistura.
"Você acha que o carnaval está morrendo? Carnaval de Salvador é o Axé. A manifestação maior do Axé é o carnaval. E o carnaval está em alta, todo mundo chegando, os artistas querendo. Vem Anitta, vem Gusttavo Lima, vem DJ. Vem tudo para cá participar dessa história. Isso é o Axé. Essa mistura, esse convite espontâneo desses artistas todos. Tudo isso é o Axé em alta, vivo" - Armandinho
Armandinho resume que o Axé não tem uma definição rítmica assim como outros gêneros musicais. É algo que vem “desse swing, que mistura Caribe, reggae e tudo”, afirma. Por essa descrição, ele responde minha inquietação do começo desse texto: o Axé sempre esteve aqui.