Daniela Mercury é rainha. A frase não precisa de continuação. É inquestionável, incontestável e mais todos os sinônimos possíveis. E Daniela sabe disso. Sem recorrer a meias palavras, ela descreve ao Terra, com orgulho, toda a grandiosidade de sua trajetória – de artista desconhecida à propagadora de um novo gênero musical.
- - Este é o terceiro episódio da série de reportagem Vozes do Axé, que resgata os 40 anos do gênero musical a partir da história de cantores e cantoras --Armandinho, Daniela Mercury, Margareth Menezes, Gilmelândia e Léo Santana-- que levaram esse som baiano para o mundo.
“O fato de eu ter recebido esse título foi porque eu consegui, como artista baiana, que quando o Axé ainda não era chamado de Axé, me tornar uma artista nacional e internacional”, conta.
Foi ela quem deu aval para que o termo fosse usado para o gênero que surgia na Bahia, lá pela metade da década de 1980. Quem o batizou, na verdade, foi o jornalista Hagamenonn Brito, mas de forma pejorativa. O termo, para ele, era sinônimo de “brega” e contrapunha o rock brasileiro que fazia sucesso na época. Mas a expressão acabou abraçada pelos artistas.
“Um jornalista me perguntou, posso chamar isso de Axé? Eu disse, ‘É um nome muito bonito’, já tentavam usar em Salvador para desmerecer o que a gente faz. Há outro tipo de música, de Luiz Caldas, mas eu me sinto conectada com Luiz e acho que o que eu estava fazendo no Canto da Cidade poderia ser chamado de Axé e assim foi”, relembra Daniela.
O Canto da Cidade, mencionado pela cantora, foi lançado meses após o show que impulsionou sua carreira para o cenário nacional. Em 1992, Daniela Mercury se apresentou no vão do Museu de Arte de São Paulo (Masp). Na ocasião, ela havia sido contemplada em um edital lançado pela prefeitura paulistana para jovens artistas performarem em um dos pontos mais relevantes da Avenida Paulista.
A então pouco conhecida Daniela reuniu uma multidão e foi parar nas capas dos jornais no dia seguinte. Até aquele momento seu maior sucesso era O Swing da Cor, mas depois disso veio uma leva de grandes músicas: O Canto da Cidade no mesmo ano e, em 1996, o álbum Feijão com Arroz levou para o mundo os hits Rapunzel, Nobre Vagabundo e À Primeira Vista.
“O gênero não existia como gênero. Com o sucesso do Canto da Cidade, do Música de Rua e do Feijão com Arroz, nacional e internacionalmente, isso aconteceu e ficou. Aí as pessoas me chamam [de rainha], ficou por causa da representatividade, pelo fato de eu ter aberto definitivas portas nacionais e internacionais e o gênero ter se tornado gênero a partir do sucesso dos meus álbuns” -- Daniela Mercury
Em mais de 40 anos de carreira, Daniela lançou onze álbuns, com muitas músicas que fazem parte da memória de muitos brasileiros. Além de o Canto da Cidade, quem nunca ouviu 'Ê, Pérola Negra, Pérolas Negra Ilê Ayê, Minha Pérola Negra' , sucesso de 2000? Teve ainda Balé Mulato (2005), que rendeu à cantora baiana o Grammy Latino, na categoria Melhor Álbum de Música Regional ou de Raízes Brasileiras.
É símbolo do Axé, da Bahia, do carnaval e do Brasil. Uma potência nacional e internacional, que já cantou com grandes artistas, como Alejandro Sanz, Ray Charles e Paul McCartney. Uma baiana arretada --como ela mesmo se define-- que também usa sua influência artística para defender os direitos LGBT e para combater o racismo.
O que é Axé por quem o faz e por quem o ouve
É difícil definir o Axé em poucas palavras. Entre os artistas entrevistados pelo Terra, houve unanimidade em dizer que o gênero baiano é uma mistura de ritmos. As músicas de Daniela são uma síntese disso, da fusão entre o samba, reggae, galope e MPB.
“Tudo que é música dançante do mundo nos interessa. Nós somos muito antropofágicos, absorvemos e tocamos os tambores, tocamos com banda ao vivo. E a gente absorve porque a gente é um músico muito treinado para fazer esse tipo de música. A gente faz isso melhor que qualquer pessoa na face da Terra”, diz.
Mas para quem ouve do chão da avenida, Axé é sentimento. Entre os foliões entrevistados pelo Terra, as memórias de carnaval sempre se confundiam com amor por determinado artista ou uma apresentação inesquecível. Foi o caso da professora Sandra Rosário.
Sua lembrança mais forte com o carnaval é do ano de 2004, quando, dois anos após perder o marido, saiu pela primeira vez no Bloco Crocodilo, puxado pela rainha. “Eu chorei de lá do Farol da Barra praticamente até aqui o Morro do Cristo. Mas não foi um choro de tristeza, não, foi um choro de alegria”, conta.
Sair no bloco de Daniela era um sonho do casal, que não foi concretizado a tempo. Sandra perdeu o marido, policial militar, assassinado. Mais de 20 anos depois, ainda é o momento que era para ser vivido entre os dois que dá compasso ao seu carnaval. Agora, ela curte os dias de festa acompanhada da filha, Alice, que já cria suas próprias lembranças embaladas pelo Axé.
Sem sombra de dúvidas, Daniela deu boas explicações para o seu título de rainha. Mas, para além de feitos na indústria da música, uma verdadeira realeza precisa se entregar aos seus súditos para receber de volta a adoração merecida. Nisso, nós baianos podemos dizer que estamos muito bem servidos.