A primeira cena de "A Substância" é daquelas que sintetizam com uma precisão absurda o teor do filme que virá a seguir. Trata-se da confecção da estrela de sua protagonista, Elisabeth Sparkle (Demi Moore), na calçada da fama. Da sujeira sem forma do cimento vimos ir surgindo aquele objeto que a coloca na eternidade, reluzente e moldado com atenção rigidamente perfeita aos detalhes e aos brilhos. Aos poucos, a ação do tempo e dos milhares de pés que passam sobre aquela estrela deixam para trás um rastro de imundície que faz com que aquele quadrado passe a ser só mais um. Sem nome, sem forma e sem importância.
É assim que "A Substância" enxerga e representa a crueldade da indústria da beleza e do mundo do entretenimento em seu tratamento às mulheres. Na trama, Moore interpreta uma celebridade que, após chegar aos 50 anos, se vê escanteada de seu próprio programa de TV por seu corpo não ser mais considerado atraente. Irritada com a própria obsolescência, ela decide testar uma nova droga que chega ao mercado, que cria uma versão mais jovem e mais bonita dela mesma. Para usar este medicamento, chamado de A Substância, há apenas uma condição: a troca é temporária e, a cada sete dias, as duas precisam se alternar para que um corpo descanse enquanto o outro está acordado e vivendo.
Não é por acaso que a sinopse não demonstra nenhuma sutileza. Nesta fábula da diretora francesa Coralie Fargeat, nada realmente é sutil, e não parece ser a pretensão da cineasta que o fosse. Aqui, Demi Moore e Margaret Qualley se alternam em cena e cada uma demonstra um polo oposto ao outro. Se a Elisabeth são reservadas as cenas em que ela esconde o corpo e tudo remete ao grotesco, frio, obscuro e raivoso, Sue representa o contrário: quando esta versão mais jovem entra em cena, tudo é colorido, bonito e angelical, e os tons fechados dão lugar a cores vivas, vibrantes e alegres.
Esta falta de sutileza, ao contrário do que muitos podem pensar, não representa um problema, uma vez que é exatamente a ultra exposição que faz desta fábula de exageros um filme de terror potente e dolorosamente próximo à realidade. Dennis Quaid, por exemplo, interpreta um executivo de um canal de TV chamado Harvey, em uma alusão bem clara ao condenado Harvey Weinstein. Em uma cena em um restaurante, ele se esbalda comendo uma porção de camarão com molho, de boca aberta e espalhando sujeira por toda a mesa, enquanto diz a Elisabeth como mulheres devem se comportar para serem desejadas. É por meio deste aglomerado de lugares-comuns elevados ao extremo que percebemos a crueldade da relação entre o corpo feminino e as máculas reservadas a ele enquanto envelhece.
É também este jogo de contrastes, de câmeras exageradamente próximas a partes do corpo e que replica enquanto tira sarro da estética da publicidade e do marketing, que faz de "A Substância" um filme ao mesmo tempo ousado e de mensagem simples e eficaz. É gritante o quanto Elisabeth fica cada vez mais frágil e enrijecida enquanto Sue é alçada aos holofotes e se torna um bibelô diante das câmeras. Neste sentido, a grande exposição de Demi Moore neste filme não é necessariamente o fato de ela aparecer nua em determinados momentos, mas sim o quão próximo de sua realidade esta história realmente está; outrora uma grande estrela dos anos 90 e um símbolo sexual, a atriz hoje aos 61 anos ficou escanteada em Hollywood e limitada a papéis menores --como se o fato de ter ficado mais velho de alguma forma significasse que seu talento perdesse valor.
Ainda dentro da discussão sobre culto ao corpo, é interessante observar como o filme critica o uso do avanço tecnológico em detrimento às mulheres. Na história, Elisabeth não tem problemas para adquirir A Substância em momento algum, e todo o seu acesso a ela é feito de forma bastante prática. Mas o que no início parece ser uma solução simples para a rejeição social causada pelo envelhecimento logo se revela como apenas mais uma parte do problema, já que a própria Substância cobra um alto preço a Elisabeth pela juventude de Sue. Aos poucos, ela vai trocando a própria vida pela beleza de sua contraparte mais nova, quer queira ou não --apesar de serem corpos diferentes, a Substância faz questão de recordar que elas são uma mente só, o que dá à história uma outra camada de reflexão sobre o ódio autoimposto por cobranças externas. Afinal, o quanto não aprendemos a odiar a nós mesmas por ideias e conceitos impostos por um culto ao capital?
Apesar de tudo isso, "A Substância" passa longe de ser uma fábula empoderadora do pós #MeToo, em que se encaixa toda uma leva de filmes com mulheres redefinindo seu próprio espaço diante da câmera do modo que desejam. Longe disso, trata-se de um body horror desconfortável que vai elevando o nível e se transformando até o ponto de não-retorno, desafiando o público a permanecer na história enquanto provoca cada um a refletir o que realmente entende e espera de narrativas feministas. À medida que se aproxima mais e mais da ultra violência que o conduz a um extremo de revirar os olhos, o filme se desprende totalmente de qualquer conveniência que poderia ser esperada dele, como que se unindo à própria revolta de sua protagonista para um grito final que deseja escancarar os rastros de sangue que os padrões de beleza deixam pelo caminho. E como em qualquer fábula, ele deixa sua mensagem de que vale mais a liberdade que a beleza.
"A Substância" chega aos cinemas de todo o Brasil nesta quinta-feira, com distribuição da Imagem Filmes em parceria com a MUBI.