É inevitável. Pedro Almodóvar pode até dar seus passeios pelo universo masculino, como no sublime “Dor e Glória”, mas são as mulheres o tema preferido do seu cinema. E desta vez ele retorna numa rara veia política em “Mães Paralelas”, que estreou na última quinta nos cinemas e chega no próximo dia 18 à Netflix.
Se cineastas como Jordan Peele provam que o terror pode ser 100% político, Almodóvar chega para mostrar que o melodrama, seu gênero por excelência, também pode sê-lo. Mas nem tudo é política em seu novo filme. A essência de “Mães Paralelas” é um tema de ouro do gênero, conhecido até dos espectadores de novelas de Manoel Carlos: a troca de bebês na maternidade.
Janis (Penélope Cruz) é uma fotógrafa interessada em desencavar a ossada de seu bisavô, morto logo no início da ditadura do general Francisco Franco na Espanha – uma das mais longas da história, ela durou 35 anos, de 1938 a 1973. Ela dá à luz no mesmo dia que Ana (a novata Milena Smit). Os bebês são trocados e isso é apenas o início de uma série de conflitos e revelações. Como sempre em Almodóvar, o fato vai aproximá-las cada vez mais, e aos poucos elas irão encontrando soluções que só as mulheres parecem capazes de dar. Se o tema pode remeter a um conflito de novela, importa mais o “como” tudo irá acontecer do que “o quê”. E Penélope entrega mais uma das suas atuações intensas das quais só parece capaz com seu diretor amigo há mais de 30 anos.
Outras mulheres se juntam à dupla, como Teresa (Aitana Sanchez-Gijón), mãe de Ana, uma atriz sempre culpada por colocar a carreira à frente da filha. E o que surpreende a cada passo é a maneira franca e sincera com que essas mulheres irão agir, muitas vezes colocando a própria felicidade em risco.
Se em “Dor e Glória” o grande entrelaçamento era a vida pessoal do diretor vivido por Antonio Banderas e o cinema que ele criava, aqui temos este inusitado e misterioso entrelaçamento entre família/maternidade e política. Quando Almodóvar nasceu, em 1949, a ditadura de Franco já sufocava a Espanha com sua truculência há 11 anos. E, ainda que boa parte do seu cinema não seja político na aparência, o cineasta é filho da “movida” madrilena, o movimento da contracultura que gerou uma explosão criativa nos anos 70 e 80, com artistas de todas as áreas pregando a liberdade política, afetiva e sexual. Isso faz da sua própria obra uma inimiga do período franquista e de todo e qualquer autoritarismo.
Num desfecho surpreendente, Almodóvar parece nos dizer que o passado importa tanto quanto o futuro, e que é preciso desenterrar todas as feridas, de uma família ou de um país, para que os caminhos do futuro sejam realmente abertos. Uma lição que só os artistas veteranos, com sua longa estrada de vida e de cinema, conseguem transmitir com força.