Houve um momento em que as notícias se tornaram tranquilizadoras. Paulo Gustavo estava estabilizado no hospital, reagindo bem ao tratamento contra o coronavírus. E, depois, a situação complicou-se. Não adiantaram os pedidos de orações de amigos e fãs. Nunca mais Dona Hermínia. Paulo Gustavo morreu nesta terça-feira, 4, aos 42 anos. Astolfo Barroso Pinto, a Rogéria, gostava de se definir como a travesti da família brasileira. Paulo Gustavo poderia dizer o mesmo. Era o gay amado da família brasileira. Conseguiu se tornar uma unanimidade.
Unanimidade, não. Ainda havia críticos que reagiam mal a suas comédias. Eu mesmo, que o acompanhei desde o primeiro Minha Mãe É Uma Peça, direção de André Pellenz, e o vi galgar a escadaria do sucesso, batendo recordes sucessivos, achei excessivo o final de Minha Mãe É Uma Peça 3. O casamento do filho, o discurso amoroso de Dona Hermínia, os intermináveis agradecimentos à família, as fotos do marido, dos filhos do próprio Paulo, tudo me pareceu um pouco demais. Não acreditava que o filme fosse bater recordes. Superou os 11 milhões de espectadores. Virou a terceira maior bilheteria do cinema brasileiro.
Havia falado com Paulo na estreia e voltei a falar quando bateu o recorde. Ele estava fora do Brasil, em férias, mas concordou em falar comigo. Fiz meu mea culpa. Ele riu. Disse, o que poderia até parecer arrogante, que sabia. Sabia o quê, Paulo Gustavo? Até onde ir, com certeza. No palco, com Minha Mãe É Uma Peça, na série de filmes, no Vai Que Cola, ele tinha aquele incrível domínio de cena. Trabalhou, na TV e no cinema, com diretores como Pellenz, César Rodrigues e, ultimamente, com Susana Garcia. A irmã de Monica Martelli virou sua alma gêmea. Paulo não poupava elogios ao timing de humor, ao seu olho para detalhes visuais. Continuou estourando na bilheteria com a série de Mônica - Os Homens São de Marte, Minha Vida em Marte.
Num debate em Tiradentes, houve réplica e tréplica quando disse que, no futuro, as comédias de Paulo Gustavo iam revelar um Brasil que os críticos se recusavam a encarar, atualmente. Como as chanchadas carnavalescas dos anos 1950 - hoje em dia aqueles filmes revelam não só comportamentos, como atitudes políticas. O Petróleo É Nosso, 60 e tantos anos depois, ajuda a entender a crise de combustíveis de 2021.
Uma crítica, em Tiradentes, reclamou da voz de Paulo Gustavo como Dona Hermínia. Achava irritante. Era uma ferramenta de ator para criar a personagem. Paulo era um artista, e gay. Ao se travestir, emulando a própria mãe - inspirou-se nela para criar Dona Hermínia -, ele estava menos dando vazão a uma necessidade de afirmação do próprio gênero como estava dando a sua versão do amor de mãe. Dona Hermínia tem qualidades e defeitos. Desdobra-se em Lourdes, Telma e Vitória. Se não fosse o preconceito, que mesmo Paulo sofreu, ele teria ganhado não o prêmio de comédia, mas o de melhor ator da Academia Brasileira de Cinema.
Antes dele, Ary Fontoura já criara uma mãe incrível em A Guerra dos Rocha, remake de um êxito argentino - Esperando la Carroza -, por José Fernando. Na França, e por um filme muito menos engraçado - e rico em observações -, Guillaume Galienne ganhou um monte de César (melhor filme, diretor, ator, etc) por Eu, Mamãe e os Meninos, no qual era a mamãe. Paulo Gustavo estava aberto a novos desafios. Dizia que não faria um quarto episódio da série com Dona Hermínia. Ela seguiria vivendo como série, na TV. Na pensão de Dona Jô, no Vai Que Cola!, batia aquele bolão com Marcus Majella, Samantha Schmutz e Emiliano D'Ávila. Valdomiro, Ferdinando, Jéssica e Máilcol. Fazia aquele um gay sem papas na língua. E, lá como cá, a casa, a pensão, era o local de tretas memoráveis quando Jéssica e Ferdinando disputavam o corpão de Máilcol.
Há mais de 50 anos, Carlos Drummond de Andrade escreveu que Leila Diniz libertara as mulheres brasileiras do jugo de uma particular escravidão. Com todo respeito, Paulo Gustavo fez um movimento parecido em relação ao universo gay. Durante a pandemia, abriu suas redes sociais para que a feminista negra Djamila Ribeiro colocasse o Brasil racista, sexista e brutalmente desigual, do ponto de vista social, no espelho. Quem poderia imaginar que Paulo seria uma vítima da pandemia que chegou ao crítico momento atual por descaso e mau planejamento das autoridades que deveriam manejar a crise sanitária. Era jovem, rico. Com certeza não morreu por falta de recursos. É lugar comum, quando morrem as pessoas, dizer que farão falta. Paulo vai fazer, mas agora o que se deve fazer, com tristeza, é refletir sobre os efeitos devastadores da pandemia no Brasil.