'Anora' destrói conto de fadas em filme hilário e caloroso sobre fim do sonho americano

Vencedor da Palma de Ouro é novo filme do diretor de 'Projeto Flórida'; leia a crítica.

21 out 2024 - 17h00
'Anora'
'Anora'
Foto: IMDb/Reprodução

Se você conhece o cinema de Sean Baker, já deve estar familiarizado com o teor de suas obras. O cineasta, diretor de filmes delicados como "Tangerine" e "Projeto Flórida", costuma optar por um caminho particularmente humanista em filmes que jogam luz sobre pessoas à margem da sociedade. Em seu longa mais recente, o vencedor da Palma de Ouro "Anora", Baker continua a investigar as figuras invisíveis do mundo, e o resultado é tão emocionante e cômico quanto se poderia esperar. 

No filme, a excelente Mikey Madison vive Ani, uma dançarina erótica que trabalha em um clube em Nova York e ocasionalmente faz trabalhos paralelos como profissional do sexo. Certo dia conhece o herdeiro russo Ivan "Vanya" Zakharov (Mark Eydelshteyn), um rapaz educado, divertido e tão empolgado quanto inocente na vida sexual. Animado com a atenção que recebe de Ani no clube, ele a convida para passarem mais tempo juntos, ao que ela não hesita em cobrar seu preço. Mas dinheiro não é problema para o rapaz, e ele acaba a contratando para passar uma semana como sua namorada, em sua mansão gigantesca – o que soa para ela como uma versão da Cinderela com muito dinheiro e infinitas possibilidades.

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Baker faz questão de ressaltar que a vida de Ivan é diametralmente oposta à de Ani. Enquanto ele vive em uma mansão com uma bela vista e muita iluminação natural, com tudo a seu dispor em um mundo que parece mágico, ela divide uma pequena casa com uma amiga nas proximidades de uma linha de trem, que contempla a residência com uma trilha sonora natural do barulho do veículo sobre os trilhos. A vida de Ani com Ivan é deslumbrante e empolgante, e o público é convidado a embarcar neste conto de fadas pela perspectiva dela. 

O ponto de vista de Ani, aliás, é a chave do sucesso de "Anora". Se a premissa te faz pensar em títulos como "Uma Linda Mulher" ou até mesmo os contos de fadas da Disney, não é por acaso. O filme constrói este mundo iluminado e colorido pelo qual Anora se encanta, em que tudo parece dar certo, apenas para puxar o tapete sob nossos pés no último segundo. 

'Anora'
Foto: IMDb/Reprodução

A atuação de Madison é essencial para que o público embarque nesta jornada de forma completa, e ela é ótima nisso. Mikey já esteve nos filmes "Era uma Vez em... Hollywood", "Pânico V" e na série "Better Things", e em todos os seus trabalhos ela mostra uma capacidade impressionante de hipnotizar a audiência. Afinal, ela é extremamente expressiva, e transita com facilidade entre a garota mimada e a menina inocente. Mas em "Anora", seu primeiro filme como protagonista, ela está um nível acima. O filme exige dela uma energia e um magnetismo que preencham a tela, e é mérito da atriz que o excesso de sentimentos e opiniões da personagem não soe em momento algum cansativo ou fora do tom. Madison está encantadora e deslumbrante, e pronta para receber o nível de atenção que merece. 

É por isso que, quando conhece Ivan, entendemos e aceitamos por que Ani não faz questão de esconder seu encantamento pelo dinheiro, e isso está posto na mesma velocidade com que ele também não tenta se fingir de polido – o rapaz aparenta ter no máximo 15 anos, e a empolgação que demonstra para absolutamente tudo deixa claro que ele entende que o dinheiro é seu maior trunfo.

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Essa dinâmica, que conduz o espectador pela ideia fragmentada e adolescente de romance de Ani e Ivan, estabelece o tom do primeiro ato do filme, dividido em três partes. Aos poucos, o longa vai despedaçando o que compreendemos destes personagens, primeiro com humor e depois com o baque da protagonista ao se deparar com a realidade de sua história. 

A forma leve e aparentemente despreocupada de transitar entre os vários tons do filme, ora romântico, ora cômico e ora trágico, é o grande segredo de Baker com seu mais recente projeto. Dotado de muita intensidade, o cineasta corre pela história e compreende que a energia da sua protagonista também precisa se repetir no longa.

Baker, inclusive, apresenta em "Anora" seu filme mais maduro, cinematograficamente falando. A direção trabalha a favor da história, e a fotografia conduz a transição de momentos da narrativa; primeiro, vimos um filme intenso, brilhante e colorido; em seguida, as cores tornam-se mais sóbrias e uniformes; por fim, tudo se transforma novamente, com uma intensidade oposta à inicial. É como se ele te preparasse o tempo todo para o final surpreendentemente singelo. E, mesmo assim, nada te prepara para aquele desfecho. 

Desta forma, "Anora" cria uma fábula moderna sobre o que o amor pode ou não vencer, face ao dinheiro, ao poder e ao privilégio que nos separa. Como os demais filmes de Baker, trata da desconstrução do sonho americano, e dos muros que separam aqueles que podem ou não podem sonhar com o inatingível. Entre o humor e o baque surdo da queda, também é um filme que aumenta um ponto na angústia que o cineasta nos presenteou em seus trabalhos anteriores: deixa um vazio no lugar do coração ao permitir que Anora vislumbre, mesmo que brevemente, o que há do outro lado do muro. 

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"Anora" está em cartaz na 48ª Mostra de Cinema de São Paulo, e chega aos cinemas de todo o Brasil em janeiro. 

Fonte: Redação Entre Telas
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