O avanço da pandemia foi sentido em tempo real no Festival de Berlim do ano passado, entre 20 de fevereiro e 1.º de março, o último grande evento de cinema realizado antes das restrições e cancelamentos provocados pelo coronavírus. Na primeira semana, todo o mundo estava relativamente calmo. Farmácias faziam oferta de álcool gel e não faltavam lenços desinfetantes. Na segunda, os artigos já não eram mais encontrados. É bem diferente a Berlinale de 2021, que começa sua versão virtual hoje.
Com a nova onda de covid-19 na Europa, o festival decidiu em dezembro se dividir ao meio. De hoje a sexta-feira, ocorre o mercado de filmes, de maneira virtual. Apenas os júris estarão presentes em Berlim e anunciarão os vencedores na quinta (Curtas e Geração) e na sexta-feira (Encontros e Competição), causando calafrios nos jornalistas cobrindo o evento, que terá cinco dias em vez de dez. O número de longas em competição não variou tanto: são 15 ante 18 no ano passado. Em junho, há expectativa de que a segunda parte do festival aconteça, com os filmes ganhando os cinemas da capital alemã e trazendo seu público sempre fiel de volta.
Entre os títulos na disputa pelo Urso de Ouro estão Introduction, o novo filme do sul-coreano Hong Sangsoo, vencedor do Urso de Prata de direção no ano passado por A Mulher Que Fugiu, e Petit Maman, o mais recente de Céline Sciamma (Retrato de uma Jovem em Chamas). Não há nenhum título americano na competição, e o único latino-americano é o mexicano A Cop Movie, de Alonso Ruizpalacios. Mas o Festival de Berlim traz títulos de apelo maior fora de competição, seja The Mauritanian, que concorreu a dois Globos de Ouro, ou o documentário Tina, sobre Tina Turner.
A Berlinale também está menos verde e amarela neste ano, um provável reflexo das dificuldades encontradas pelo setor audiovisual desde o início do governo Bolsonaro. Em 2020, foram 19 filmes, entre curtas e longas-metragens. Desta vez, participam a série Os Últimos Dias de Gilda, de Gustavo Pizzi, a instalação Se Hace Camino Al Andar, de Paula Gaitán, na seção Forum Expanded, e o documentário A Última Floresta, de Luiz Bolognesi, na mostra Panorama.
Ianomâmi
Assim como seu longa anterior, Ex-Pajé, que participou da mesma seção em 2018, A Última Floresta também mergulha no universo indígena, só que de uma perspectiva diferente. "Em Ex-Pajé, contei a história de um pajé que estava desqualificado, destituído do seu poder científico, religioso e mitológico pela igreja evangélica, e os efeitos disso na comunidade", disse o cineasta em entrevista ao Estadão. Seu trabalho anterior focava em Perpera, um xamã obrigado pelos pastores a abdicar de seus poderes e se tornar zelador do templo. "Decidi que precisava fazer o contrário. Porque existem muitos xamãs e pajés que estão conseguindo impedir a entrada dessas igrejas e manter a cultura xamânica funcionando. Queria filmar num lugar onde o xamã estivesse na sua potência política, econômica, científica e religiosa", completou Bolognesi.
O diretor tinha lido A Queda do Céu, de Davi Kopenawa Yanomami, que define como o Grande Sertão: Veredas do século 21. "Resolvi fazer na terra dele, onde os xamãs estão potentes, apesar de mil dificuldades e lutas. E na potência dos xamãs, dos pajés, tem uma maneira de pensar o mundo, de lidar com o conflito, com o tempo. São mais de 4 mil anos de sabedoria."
Para Bolognesi, não bastava mais apenas se desarmar do seu modo de ver e pensar e se deixar impregnar pelo ponto de vista do outro, entendendo suas explicações do mundo mágicas como reais. "Senti que tinha de dar um passo além, que era dividir a autoria. O mundo está me ensinando isso", disse. "Sou um homem de 55 anos, e o mundo está mudando. E para mim está muito claro que esse lugar de fala precisa ser respeitado. Precisamos aprender com os povos que estavam aqui antes de os europeus chegarem. Para mim está claro que o papel é passar a palavra, se colocar na escuta e ajudá-los, na medida em que eles enxergam a câmera como mais uma flecha." Davi Kopenawa Yanomami é corroteirista do filme.
A primeira coisa que ele disse a Bolognesi é que não gostava de Ex-Pajé. Kopenawa acha que fazer um filme em que o pajé está fraco é bom para o pastor, não para os indígenas. "Ele falou para mim: eu não quero fazer um filme de índio coitado. Eu tenho garimpo na minha terra. Tem aldeia com gente doente de garimpo, com a pele descamando. Tem aldeia com gente morrendo. Eu não quero filmar isso. Eu quero falar disso, mas quero mostrar o meu povo bonito, forte", contou Bolognesi.
O cineasta passou dez dias na isolada aldeia de Kopenawa, onde não há registro de homem branco num raio de 200 quilômetros, a não ser pelos garimpeiros que continuam invadindo suas terras. Estima-se que até 20 mil tenham entrado no território ianomâmi, levando doenças como malária e covid-19 e contaminando os rios com mercúrio. Os problemas estão lá no filme. Mas também a beleza, a cultura, o modo de pensar. Davi Kopenawa explica, por exemplo, que os minérios foram feitos para ficar na terra. Quando retirados, eles trazem a fumaça da doença. O que é parte da filosofia ianomâmi acaba sendo um paralelo bem fiel da realidade.
Há sequências de sonho que reproduzem a visão de mundo dos ianomâmis, com seus mitos sobre a formação dos rios e lagos, e as divindades que fazem coisas boas e más. Ehuana contou a Bolognesi sobre o desaparecimento de seu marido. Sua história é encenada no filme, refletindo a maneira de pensar ianomâmi. O marido pode ter sido vítima de onça ou queixada, mas também pode ter sido sequestrado pela divindade que mora no fundo das águas.
O cineasta temeu que os brancos não fossem capazes de assimilar os conceitos, mas a seleção para Berlim mostrou que seu temor era infundado. Do anúncio para cá, choveram convites para outros festivais. E, assim, Luiz Bolognesi espera que o documentário seja a flecha que vai apresentar a rica cultura ianomâmi para o mundo, ajudando esse povo a fazer valer a Constituição, que protege suas terras. "No fim, eles estão tentando salvar o planeta e nos salvar", disse Bolognesi.