Grandes cineastas, autores importantes, fizeram o caminho das Índias, nos anos 1950. Jean Renoir iniciou a década filmando Rio Sagrado, Roberto Rossellini e Fritz Lang encerraram-na fazendo Índia e o díptico O Tigre da Índia/O Sepulcro Indiano. Renoir e Rossellini foram em busca dos ensinamentos da Índia milenar, Lang foi à procura de excitação e aventura, mas, iluminado por seu guru, o despótico marajá de Eschnapur descobre, um pouco à maneira de Antoine de Saint-Exupéry, que o essencial é invisível para os olhos.
A Índia sempre foi, e continuou sendo, nos anos e décadas seguintes, um mistério para os ocidentais. James Ivory dirigiu todos aqueles filmes intimistas, Richard Attenborough e David Lean fizeram épicos grandiosos, mas também com um toque de intimismo - Gandhi e Passagem para a Índia. Apesar disso, ninguém revelou tanto, e aparentemente com tão pouco, como Satyajit Ray. Entre 1955 e 59, ele se baseou no livro de Bibbhuti Bandapaddhay, Aparajito, para realizar um projeto único. A trilogia de Apu colocou o cinema da Índia, feito por indianos, no mapa. Pather Panchali/Canção da Estrada, Aparajito/O Invencível e O Mundo de Apu tornaram-se clássicos. Foram restaurados e resgatados em Cannes Classics.
Não se assemelham a nada que o espectador tenha visto, mesmo tanto tempo depois. Um tanto de neo-realismo, pode ser, porque Ray conta com pobreza de recursos a história de gente pobre. A pobreza pode ser de meios materiais, mas a riqueza artística e humana é insuperável. 1. Pode-se ver e amar cada filme isoladamente, mas o importante é vê-los em bloco, os três, e na ordem. Contam a história de Apu. Ele começa menino, aos 5 anos, no vilarejo em Bengala (Pather Panchali). A família, brâmane e empobrecida, transfere-se para a cidade, o pai morre, seguimos Apu dos 10 aos 17 anos (Aparajito). E Apu adulto que aceita um casamento arranjado (O Mundo de Apu). Em cada um desses segmentos, Apu é interpretado por um ator diferente. Todos têm em comum a expressividade do rosto, e dos olhos. O rosto da mãe, Karuna Banerji, é uma máscara - de contenção, de dor. Extrair um sorriso dessa mulher é tarefa gigantesca. Mas, quando ela sorri, a tela ilumina-se como nem na mais feérica das fantasias.
Todos os filmes abordam a dificuldade, o sofrimento. Sem dor não há crescimento, ou superação. Tem gente que já deve estar querendo parar de ler, que talvez nem queira seguir a história de Apu. Não sabem o que estarão perdendo. O primeiro filme, as descobertas de Apu, é muito marcado pela presença da velha tia. As crianças passam o tempo brincando, o pai trabalha, o dinheiro é curto, a mãe desdobra-se. A tia é um fardo. Chunibala Devi é outra atriz extraordinária. Pauline Kael conta, em 1001 Noites no Cinema, que ela retomava a carreira após um hiato de décadas. Consumia o salário em drogas. A idosa come demais, exerce má influência sobre a irmã de Apu, que rouba um doce para ela. Mas, quando surge o tema de deportá-la para a casa de outros parentes, a mãe se opõe com veemência. A tia é responsabilidade deles - dela. A velha esboça um sorriso que se fecha diante da máscara da mãe. É o filme que fala, sem que as palavras precisem ser ditas.
No 2, a história gira basicamente em torno de mãe e filho. A família mudou-se para Benares, o pai morre e a mãe arranja emprego como cozinheira num vilarejo próximo. Leva Apu com ela. O garoto a ajuda, mas quer estudar, ir à escola. Tem sede de conhecimento. Aos 17 anos, está numa escola distante. A mãe está doente. No fundo, gostaria que o filho seguisse a carreira religiosa do pai e estivesse próximo, para cuidar dela. Nas férias, reaproximam-se. Apu parte e, de repente, está de volta. Diz que perdeu o trem, mas na verdade quer ficar mais um dia porque se sente culpado. Sabe quanto sua presença é necessária para a mãe. Ela tem um de seus raros sorrisos quando o filho comenta como sua comida é muito melhor que a da escola. O tema que corre em filigrana, e já estava em Pather Panchali, é - por que causamos mal àqueles a quem amamos? A relação da mãe e da tia é outro exemplo desse sofrimento que as pessoas podem se causar.
Cada um tem de viver a sua vida, mas, no 3, Apu faz o supremo sacrifício. Agora adulto, é interpretado por Soumitra Chatterji. Por falta de dinheiro, parou de estudar. Sonha ser escritor e escreve um romance autobiográfico porque quer contar a história dos pais, da velha tia, da irmã - com quem tem uma cena pungente no fim do primeiro filme. Para ajudar o amigo, Apu aceita o casamento forçado. Com qualquer outro diretor, seria mais uma fonte de renúncia e sofrimento. Com Ray é, finalmente, a iluminação. A noiva, Sharmila Tagore, entra na vida de Apu como um raio de sol. Deixa a família abastada para viver com ele, sem queixa, num quarto humilde. Amam-se, completamente. Muito já foi escrito, por críticos de diferentes línguas, em diferentes países, sobre a universalidade - e singulartidade - desse amor.
A mulher, que se apaixona sinceramente pelo marido, e ele retribui, arranja 1001 maneiras de expressar o afeto. A delicadeza do amor. Juntos superam os novos problemas. O casal tem um filho rebelde e, numa cena memorável, Apu, colocando-se no lugar do outro, consegue se comunicar com o menino. Coloca-o nos ombros, ambos sorridentes. O sentido de uma vida inteira. O sentido dos três filmes que formam um só para chegar a esse momento de harmonia e felicidade. A milenar sabedoria oriental. Humildade e resiliência. Perfeito para a época atual - conseguirá a humanidade reencontrar seu caminho, após a pandemia? Retomará a corrida desenfreada pelo consumismo? A história dirá. Ray constroi o primeiro filme quase como um documentário. A ficção introduz-se - nas bordas -, o nada vira tudo. Nos filmes seguintes, mais ficcionais, permanece o compropmisso do autor com a autenticidade.
Por mais de 30 anos Satyajit Ray construiu uma obra que não é patrimônio apenas da Índia. Pouco antes de morrer - em 23 de abril de 1992, prestes a completar 71 anos, em Calcutá - , ganhou um Oscar especial da Academia, em reconhecimento à sua grande carreira. A trilogia de Apu recebeu algumas críticas restritivas, especialmente no país de origem do diretor. Ray foi acusado de não retratar a convulsão que agitava o país, mas está tudo lá. É só uma questão de olhar. Um mundo em ruínas e outro que pede para florescer, a industrialização, a ameaça de greve, a denúcia do trabalho escravo. A imagem do trem com frequência atravessa o mundo de Apu - progresso ou fatalidade? Destino? O mundo, a crise, se fazem presentes, mas o foco está no rosto do menino que, ao cabo de muitas etapas, vira homem maduro. No Dicionário de Cinema, Jean Tulard considera merecido o sucesso da trilogia, mas não deixa de lamentar que tenha ofuscado outras obras-primas do grande diretor.
Cita A Sala de Música, de 1958, quando ele ainda não havia feito O Mundo de Apu. A história de um dos últimos rajás, que dissipa a fortuna da família em busca de determinada melodia. A música é fundamental na trilogia, como o preto e brranco. Mas não a cantoria de Bollywood, com a qual o cinema de Ray não tem nada a ver. A trilha, nos três filmes, foi composta por Ravi Shankar, antes de se transformar no guru de George Harrison. Shankar foi o mestre da cítara, que integrou ao rock. Os registros de suas apresentações nos festivais de Monterey e Woodstock são conta da criatividade exuberante que o levou a ser chamado de mestre - pelos Beatles e outros fenômenos do pop. Sua trilha na trilogia de Apu é delicada como os olhares, os pequenos gestos. Não é um adorno. Acaricia a alma e adoça o sofrimento.
Onde assistir:
- à venda em DVD