Xuxa é uma das personalidades entrevistadas na série Em Nome de Deus, da GloboPlay. Conta que buscou ajuda do médium João de Deus na casa de Abadiânia, para sua mãe. Viu-o operar. Confessa sua gratidão, mas, como diz, é uma gratidão envergonhada. "A gente não pode ser grata a um monstro." Também entrevistado para a série, Drauzio Varela, uma referência de medicina no Brasil, diz que a tesoura que João de Deus usava em suas cirurgias é um truque. Hoje em dia todo mundo tem uma percepção diferenciada do Caso João de Deus, mas quando começaram a pipocar as denúncias de abusos, todo cuidado era pouco. O homem era uma verdadeira instituição.
Internacionalmente era reconhecido como homem santo, seu nome virara sinônimo de bondade, de compaixão. O repórter tem de admitir que também sente vergonha. Pouco antes de estourarem as denúncias, o documentário O Silêncio É Uma Prece, de Candé Salles, estava em exibição nos cinemas. Por mais hagiográfico que fosse, e é, parecia tão bonito. Todos aqueles depoimentos, o olhar compassivo de João para a câmera. Mesmo sem duvidar da honestidade do diretor, como foi possível filmar na Casa de Abadiânia sem perceber que algo havia ali, e era sinistro? O cinema possui essa capacidade de construir/ratificar mitos. O trabalho de Mônica Almeida, Ricardo Calil e Giancarlo Bellotti recoloca em perspectiva toda essa história. Desmistifica. Mônica conta - "Era uma coisa muito forte. Não foi só você (o repórter). Oprah Winfrey veio fazer um especial sobre ele e, na saída, temos o depoimento dela, a Oprah!, dizendo como o encontro mexera com ela. Mas, justamente por isso, foi tão impactante para a gente quando essa história começou. Sabíamos que tínhamos uma grande história, mas foi preciso se cercar de muito cuidado, ir fundo, pesquisar. Não que a gente não faça isso sempre, mas era o João de Deus. Parecia inacreditável."
Parecia - mas era verdadeiro. O próprio Pedro Bial, em cujo programa nasceu a denúncia (em 2018), conta que há tempos tentava fazer um programa - Conversa com Bial - com o médium. João de Deus chamou-o para ir a Goiás. "Fiz a minha lição de casa, pesquisei. Assisti ao documentário e cancelei. Não tinha fé no que João de Deus fazia." Roteirista do programa, Camila Appel, também estava iniciando um processo de pesquisa. De uma amiga que trabalhou em Abadiânia ela ouviu os rumores sobre possíveis estupros cometidos pelo médium. Ligando os fios, chegou a uma história escabrosa. "As denúncias seguiam sempre o mesmo protocolo, como as coisas ocorriam", conta Mônica. "Uma mulher não estava sabendo da outra, os relatos coincidiam. Eram idênticos. Seguiam um padrão que dava consistência ao caso, não havia como recuar."
Como reconstituição de um trabalho de investigação jornalística, Em Nome de Deus é brilhante. "Tínhamos um caso, mas estávamos amarrados porque não era possível contar essa história sem dar um rosto às denúncias."Foi só quando a holandesa Zehira Lienike Mous, que fizera uma postagem nas redes sociais, resolveu dar seu depoimento frente às câmeras, que outras mulheres também tiveram coragem para romper o silêncio." A série é a primeira de uma unidade jornalística comandada por Bial na Globo. Nesse período de pandemia, foi toda feita de maneira remota. Mônica teve a valiosa colaboração de Ricardo Calil, o grande documentarista - de Uma Noite em 67 (parceria com Renato Terra) e Cine Marrocos. "Foi muito bom trabalhar com o Ricardo, que é realmente esse grande documentarista que você fala. E ele foi fundamental, porque veio do Ricardo a ideia de reunir as mulheres naquele círculo, contando histórias, trocando e confrontando experiências. Isso terminou fazendo toda a diferença na série."
Em Nome de Deus estreou na TV aberta, na Globo, só o primeiro episódio. O bloco de seis capítulos está disponível na Globoplay. Mesmo no formato jornalístico, transcende o caráter informativo para tentar ir além dos fatos. Quem são essas pessoas. As abusadas, o abusador. Como isso foi possível - o silêncio, durante tanto tempo? A série foi idealizada por Pedro Bial, e ele tende a ser subestimado pela crítica como homem da Globo. Por anos, apresentou o Big Brother na emissora. Na ficção e no documentário, com títulos como Outras Histórias, do final dos anos 1990, e Jorge Mautner - O Filho do Holocausto, de 2012 (em dupla com Heitor D'Alincourt), Bial deu mostras inequívocas de um talento especial.
No primeiro, e de forma ousada, adaptou o cinema a Guimarães Rosa, indo na contramão das adaptações reverentes. Permanece apresentador - 'âncora' - de Em Nome de Deus. A história que está sendo contada ainda não acabou. João de Deus foi preso e condenado, mas não está preso por causa da pandemia. Em Nome de Deus narra tudo isso e permanece um work in progress. A série deixa aberta a possibilidade de Bial ter sua conversa, até aqui adiada, com João de Deus. Além dos crimes de abusos, tem a questão das armas. O caso não terminou, mas Em Nome de Deus já deixou uma marca como produção audiovisual e exemplo vigoroso de jornalismo investigativo.