'Fedro': Zé Celso e Gianecchini se reencontram após 20 anos

"Hoje, olho o documentário e vejo que muita coisa já mudou em mim em relação ao conceito de liberdade", diz Reynaldo

10 jan 2022 - 05h10
(atualizado às 07h58)

Entre fato e ficção - 'faction', como dizem os norte-americanos. Há uma cena de 'Fedro', o belo documentário de Marcelo Sebá que entrou em cartaz no streaming do Star +, em que José Celso Martinez Correa chama Reynaldo Gianecchini para se deitar a seu lado.

Zé disserta, com erudição, sobre Platão. De repente, uma voz detrás das câmeras - a do diretor? - interrompe a cena. "Para, para, para. Vocês estão deitados sobre o microfone e o som é inaudível." Uma cena dessas poderia ter sido eliminada na montagem. Poderia ter virado um daqueles erros de gravação que tanto divertem o público. Não é o caso. A cena está ali por outro motivo.

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Gianecchini conversa com a reportagem do Estadão, pelo telefone, do Rio. Sobre a cena específica, destaca o que há nela de imprevisível. "Foi uma coisa espontânea. Ilustra o clima em que trabalhamos."

Zé Celso e Reynaldo Gianecchini em cena do documentário 'Fedro', de Marcelo Sebá
Zé Celso e Reynaldo Gianecchini em cena do documentário 'Fedro', de Marcelo Sebá
Foto: Pedro Pereira/Divulgação / Estadão

Giane conta como chegou ao projeto. "Sebá me chamou, mas eu vacilei. Cheguei a dizer-lhe que não. Comecei no Oficina, fazendo uma substituição em 'Cacilda!!!', quando a montagem foi apresentada num festival de teatro, em Porto Alegre. Depois, foi um texto do Nelson (Rodrigues), Boca de Ouro, no próprio Oficina. Há 20 anos, não falava com Zé Celso. Cheguei a dizer ao Sebá que não estava preparado para fazer um filme sobre a loucura do processo criativo do Zé e do Oficina. Ele mudou a própria perspectiva. Disse que ia fazer um filme sobre o afeto."

Mestre

Sebá, só para contextualizar, é o nome artístico de Marcelo Sebastião Luz Barroso. Em 2010, foi o primeiro brasileiro a assumir a direção artística do Calendário Pirelli. Sob sua direção, Giane e Zé Celso gravaram durante um dia e parte da noite. Uma leitura de 'Fedro', conversas entre mestre e discípulo, tudo a ver com o texto clássico. "No final, o Zé, decepcionado, achava que não tínhamos um filme." E ele explica - "Em momento algum, pensei em usar esse personagem - na verdade, eu, a minha persona - para brilhar.

O Zé é um mago, um bruxo, um homem de grande cultura e erudição. Não queria contracenar com ele para que as pessoas dissessem 'Olha como ele é bom'. Com o Zé, a gente sempre aprende, é inevitável. O máximo que quis, em alguns momentos, foi responder às suas provocações, acrescentando algo meu ao debate. Queria reatar um elo perdido. Quando deixei o Oficina, há 20 anos, não pensava numa carreira na TV. Não era uma prioridade minha, sempre preferi o teatro. Mas as coisas aconteceram. Emendei novelas e peças. Afastei-me do Oficina, criou-se um buraco. Nunca mais voltei. Foi a minha chance de retomar o contato. Foi mágico."

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Redes sociais

Nos últimos dias, viralizaram na internet as imagens de um Gianecchini grisalho, com cabelos, e barba, embranquecidos. Trata-se de um novo papel ou simplesmente uma forma de alimentar a participação de Giane nas redes sociais?

"É um pouco dos dois. Não estou mais fixo na Globo e esse visual veio para um trabalho que fiz no streaming, mas ainda não posso falar. Estou voltando ao teatro, com uma livre adaptação de 'O Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças', por Jorge Farjala. O Jorge me viu assim grisalho e resolveu incorporar. Estou adorando. Sou eu de um jeito que o público nunca viu."

"E 'Brilho Eterno' não é bem uma adaptação, mas uma inspiração." Gianecchini se refere ao longa de Michel Gondry, de 2004, com roteiro de Charlie Kaufman e interpretações de Jim Carrey e Kate Winslet. Carrey como o homem que tenta apagar da lembrança a mulher que foi, é, seu amor.

"É um filme sobre afeto e estamos num momento em que o amor é decisivo para superarmos todos os problemas que enfrentamos, por conta da pandemia. Fiquei oito meses completamente isolado, no Rio, cuidando de minha mãe. Estou agora nessa ansiedade do retorno. O teatro foi sempre importante em minha vida. Como artista, necessito dessa troca com o público", explica.

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Por um bom período, ele foi contratado da Globo. Agora que acabou a exclusividade, curte a nova liberdade. "Estou livre para fazer o que mais me atrair."

De volta a 'Fedro', destaca a riqueza do texto platônico. Sócrates e Fedro discutem o amor como metáfora para o uso adequado da retórica. A discussão aborda ainda temas como a alma, a loucura, a inspiração divina, e a prática e o domínio da arte.

Libertário

"Tem tudo a ver com o momento que vivemos no Brasil, que não tem feito outra coisa senão hostilizar a arte e os artistas." Gianecchini debruça-se sobre o caráter libertário da persona do Zé. "Ele ultrapassa nossa noção do diretor. Virou um guru e, com sua vivência do dionisíaco, desafiou sempre as normas estabelecidas de comportamento artístico e social. Seria fácil falar na sua loucura, mas importante é encarar sua lucidez."

O assunto não chega a emergir, mas essa era uma fala de Glauber Rocha, pouco antes de morrer - "Estão confundindo minha loucura com minha lucidez". Nenhum outro projeto, como esse, fez Giane encarar a questão da nudez de forma tão visceral. "Esse papel reverberou de várias formas em minha vida. Hoje em dia, olho o documentário e vejo que muita coisa já mudou em mim em relação ao próprio conceito de liberdade."

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Ao contrário do Zé, ele chegou ao final da gravação com um pensamento positivo. O próprio Zé, ao ver o filme, admitiu. "Criamos alguma coisa. Ficou bom - muito bom."

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